Margarida Medina Martins é a Presidente da Associação de Mulheres Contra a Violência. Trabalhou a vida toda para apoiar quem estava em maior vulnerabilidade. Passou pela função pública mas apercebeu-se que as suas competências eram melhor utilizadas na promoção e implementação dos direitos humanos das mulheres e das crianças, trabalhando na área da violência há 25 anos com uma energia e um entusiasmo contagiantes.
Qual é a sua história? O que é que devemos saber sobre si?
Antes de mais deixem-me agradecer o convite! O meu nome é Margarida Medina Martins e tenho 63 anos. Trabalho há cerca de 25 anos na área dos direitos humanos das mulheres e das crianças. Antes disso trabalhei na função pública e na área da saúde mental, com pessoas esquizofrénicas. O que eu posso dizer sobre esse percurso é que essas 3 áreas foram uma ótima experiência para mim. A função pública foi muito importante porque me permitiu perceber como é que o sistema está organizado, como é que são geridas prioridades e como é que se constroem políticas. Portanto foi uma grande escola para mim. Depois dei o salto para a sociedade civil e comecei a trabalhar com ONGs. A organização onde trabalhava com pessoas com esquizofrenia foi uma grande escola para mim porque era tão diferente do que já tinha feito. Tive de desenvolver imensas competências que ainda não tinha para conseguir perceber os seus direitos. Também tive de desenvolver a capacidade de ouvir. É realmente importante, porque falam de uma forma diferente da nossa. Comecei a perceber o seu silêncio e as suas palavras e consegui finalmente compreendê-las. Foi um trabalho extremamente importante e uma grande oportunidade. Nos últimos 25 anos tenho trabalhado na área dos direitos humanos das mulheres e crianças, ainda que nunca me esqueça de outros problemas como as questões ambientais ou os direitos das pessoas portadoras de deficiência. Tento sempre ser ativa em todos os campos, tento não me fechar numa só área. Sinto que talvez tenha conseguido aprender a olhar para a vida como um todo, de uma forma holística. O que acontece com uma pessoa pode atingir uma outra, portanto não olho para a sociedade de uma forma fechada, tento sempre ser geral e holística.
Como é que acabou a ficar envolvida nos direitos humanos das mulheres e crianças?
Começou com um grupo de colegas, na associação onde eu trabalhava com pessoas com esquizofrenia. Apercebemo-nos que na verdade o grande problema para muitas mulheres e crianças que estavam em hospitais psiquiátricos era o facto de serem sobreviventes a situações de violência. A questão era que não existiam respostas especializadas para estas pessoas. Isto foi nos anos 80, e nessa década Portugal tinha cerca de 10 mil pessoas em instituições psiquiátricas, 60% das quais não tinham doenças mentais. Tudo o que acontecia na sociedade e que não era concordante com o sistema era tratado em hospitais psiquiátricos. Era tão estranho como inacreditável. E por isso tornei-me muito ativa na criação de documentação e nos direitos das pessoas com doenças mentais. Lembro-me que estava envolvida nisto com outras três pessoas. Uma era advogada e outra uma ex-presidente de uma instituição psiquiátrica. Criámos um livro dos direitos das pessoas com doenças mentais dentro dessa instituição. Trabalhámos uns 3 ou 4 anos nesse livro, e no fim foi publicado pelo Ministério da Justiça. Foi uma coisa muito importante porque estas pessoas estavam tão sozinhas, nenhumas organizações trabalhavam para elas. Quando começámos a trabalhar os direitos das mulheres em Portugal o grande problema era que não existiam números. Portanto começámos a trabalhar numa organização local aqui em Lisboa. O primeiro grupo que integrámos foi um grupo para sobreviventes de violação. Depois disso passámos a criar grupos de ajuda mútua. Foram as sobreviventes que quiseram criar uma organização. Disseram “OK, isto é importante para nós e acreditamos que seja importante para outras pessoas também”. Portanto embarcámos na construção de uma ONG de direitos de mulheres. Um ano depois registámos a organização e agora estamos num ponto em que é importante pensar no que é que temos após 25 anos. Decidimos adotar as referências das Nações Unidas da área e estar abertas para todos os tipos de violência contra mulheres e crianças. Depois o segundo grupo que abordámos através desta organização foram as mulheres com crianças que tinham sido vítimas de abusos sexuais na vizinhança. E depois partimos para a violência doméstica no geral. Continuamos a dar apoio a sobreviventes de violação e violência sexual, mas a grande maioria das situações são de violência doméstica e de género. Ainda assim apercebemo-nos que era uma situação mais comum do que estávamos à espera no início. A violação no seio de relações de intimidade é ainda um grande problema. A parte boa é que os tribunais estão a começar a trabalhar nisso, mas ainda há um grande caminho a percorrer a nível de justiça. Temos de fazer lobbying sobre estas questões e temos de trazer as provas académicas e as investigações acerca destes temas para os tribunais.
Uma coisa é a cultura. Mas se passas a vida a comer batatas nunca pedes caviar. Porque te habituaste a esse tipo de comida… Não se podem culpar as vítimas e as sobreviventes. A responsabilidade recai toda no sistema, na educação, nos serviços sociais e na justiça. Todos esses sistemas devem funcionar enquanto instrumentos de desenvolvimento. Isto é também um problema em Portugal, onde temos os instrumentos mas os e as advogadas não os usam. Não sabem como utilizar as convenções. As universidades também têm de mudar muitas coisas para se tornarem mais úteis para os direitos humanos e para a sociedade no geral. A questão central deviam ser os direitos humanos, e a mudança tem de começar na educação.
Qual é a sua maior conquista? Do que é que se sente mais orgulhosa?
Antes de tudo, estar viva! Não estou a brincar, sou uma sobrevivente de tantas coisas, tive tantos obstáculos na minha vida. Tive de ganhar algumas competências para sobreviver. Também penso que contribuí, juntamente com outras colegas, para deixar uma marca nos direitos humanos das mulheres e das pessoas com doenças mentais em Portugal.
A minha primeira conquista é estar viva. Por volta dos 20 anos foi-me diagnosticada leucemia, e todos os dias eram um enorme desafio. Foi muito importante e é uma marca na minha vida. Depois apercebi-me que não podia perder o meu tempo com coisas parvas que não eram realmente importantes na vida. Acho que no fim todas as pessoas sentem isto, esta mudança na forma como vemos a vida. Mudei-me para um área de trabalho onde sentia que o que fazia era mesmo importante para alguém. Nessa altura ainda estava na função pública, e passei a envolver-me em ONGs. Apercebi-me que sou mais bem sucedida fora do sistema, e portanto decidi ficar fora dele. A minha estratégia era construir coisas onde não existia nada, algo como um instrumento de lobbying que qualquer pessoa pudesse utilizar como ferramenta para se defender. Estive envolvida no primeiro plano nacional na área da violência doméstica e de género e agora estamos a caminhar para o 5º plano, portanto é uma grande viagem. Estou orgulhosa do que atingi, mas não fiz este caminho sozinha, fui sempre acompanhada pelas minhas colegas e pelas organizações.
O que é que é preciso trabalhar e como? Quais é que são os seus planos para o futuro?
Temos de mudar a educação e a abordagem à cidadania. Por exemplo, hoje em dia (em Portugal e na Europa) muitas crianças são retiradas às famílias. As instituições e o Estado têm a responsabilidade de salvar estas crianças, mas se não souberem o que estão a fazer podem-se fazer grandes erros. O que estamos a ver é que estamos a criar órfãos com pais e mães vivos, uma situação irónica que não faz sentido e que me deixa muito desapontada. Temos de mexer-nos para apoiar as famílias. Hoje em dia retiram crianças em vez de educar as famílias sobre como lidar com o bebé. Os miúdos são diferentes hoje em dia, utilizam coisas diferentes para desenvolver ideias, e as escolas são um sistema um pouco autista, fora desta realidade. Ensinam matemática, literatura e tudo isso mas ninguém fala com as crianças sobre a vida real. Elas acabam a ser abandonadas na sociedade, ficam confusas e não há pessoas adultas que falem com elas. A minha prioridade são os direitos humanos e a educação das crianças.
As pessoas acham que está sempre a trabalhar… mas às vezes faz outras coisas, não é?
Eu reconheço isso, estou sempre a trabalhar, mas não sempre em ativismo. Nem as minhas colegas sabem que de vez em quando faço outras coisas, como cozinhar ou pintar. Apercebi-me que já devo ter uns 200 quadros em casa. A pintura era uma coisa de que eu necessito para me expressar, passei noites e noites a pintar. Às vezes ficava a pintar até às 3 ou 4 da manhã, e só depois conseguia ir dormir porque já tinha conseguido resolver os meus problemas enquanto pintava. Um dia perguntei a uma galeria como é que se fazia uma exposição. Eventualmente, na Betrand do Chiado pediram-me para preparar 7 quadros para uma exposição! Mas eu não queria que ninguém comprasse os meus quadros, eles não estavam à venda. Tive uma outra exposição depois, mas ofereci sempre os meus quadros, nunca os vendi. Hoje em dia sinto que preciso de pintar, mas não tenho tempo. Gostava de pintar alguma coisa que fosse maior que eu. Tenho 200 papeis pequeninos, porque desenhava sempre enquanto estava à espera do metro, mas agora quero uma coisa maior!