Margarida Medina Martins: “Se passas a vida a comer batatas nunca pedes caviar. Porque te habituaste a esse tipo de comida…”

Margarida Medina Martins, presidente da AMCV - Associação de Mulheres contra a ViolênciaMargarida Medina Martins é a Presidente da Associação de Mulheres Contra a Violência. Trabalhou a vida toda para apoiar quem estava em maior vulnerabilidade. Passou pela função pública mas apercebeu-se que as suas competências eram melhor utilizadas na promoção e implementação dos direitos humanos das mulheres e das crianças, trabalhando na área da violência há 25 anos com uma energia e um entusiasmo contagiantes.

 

 

Qual é a sua história? O que é que devemos saber sobre si?

Antes de mais deixem-me agradecer o convite! O meu nome é Margarida Medina Martins e tenho 63 anos. Trabalho há cerca de 25 anos na área dos direitos humanos das mulheres e das crianças. Antes disso trabalhei na função pública e na área da saúde mental, com pessoas esquizofrénicas. O que eu posso dizer sobre esse percurso é que essas 3 áreas foram uma ótima experiência para mim. A função pública foi muito importante porque me permitiu perceber como é que o sistema está organizado, como é que são geridas prioridades e como é que se constroem políticas. Portanto foi uma grande escola para mim. Depois dei o salto para a sociedade civil e comecei a trabalhar com ONGs. A organização onde trabalhava com pessoas com esquizofrenia foi uma grande escola para mim porque era tão diferente do que já tinha feito. Tive de desenvolver imensas competências que ainda não tinha para conseguir perceber os seus direitos. Também tive de desenvolver a capacidade de ouvir. É realmente importante, porque falam de uma forma diferente da nossa. Comecei a perceber o seu silêncio e as suas palavras e consegui finalmente compreendê-las. Foi um trabalho extremamente importante e uma grande oportunidade. Nos últimos 25 anos tenho trabalhado na área dos direitos humanos das mulheres e crianças, ainda que nunca me esqueça de outros problemas como as questões ambientais ou os direitos das pessoas portadoras de deficiência. Tento sempre ser ativa em todos os campos, tento não me fechar numa só área. Sinto que talvez tenha conseguido aprender a olhar para a vida como um todo, de uma forma holística. O que acontece com uma pessoa pode atingir uma outra, portanto não olho para a sociedade de uma forma fechada, tento sempre ser geral e holística.

 

Margarida Medina Martins, Associação de Mulheres contra a Violência

 

Como é que acabou a ficar envolvida nos direitos humanos das mulheres e crianças?

Começou com um grupo de colegas, na associação onde eu trabalhava com pessoas com esquizofrenia. Apercebemo-nos que na verdade o grande problema para muitas mulheres e crianças que estavam em hospitais psiquiátricos era o facto de serem sobreviventes a situações de violência. A questão era que não existiam respostas especializadas para estas pessoas. Isto foi nos anos 80, e nessa década Portugal tinha cerca de 10 mil pessoas em instituições psiquiátricas, 60% das quais não tinham doenças mentais. Tudo o que acontecia na sociedade  e que não era concordante com o sistema era tratado em hospitais psiquiátricos. Era tão estranho como inacreditável. E por isso tornei-me muito ativa na criação de documentação e nos direitos das pessoas com doenças mentais. Lembro-me que estava envolvida nisto com outras três pessoas. Uma era advogada e outra uma ex-presidente de uma instituição psiquiátrica. Criámos um livro dos direitos das pessoas com doenças mentais dentro dessa instituição. Trabalhámos uns 3 ou 4 anos nesse livro, e no fim foi publicado pelo Ministério da Justiça. Foi uma coisa muito importante porque estas pessoas estavam tão sozinhas, nenhumas organizações trabalhavam para elas. Quando começámos a trabalhar os direitos das mulheres em Portugal o grande problema era que não existiam números. Portanto começámos a trabalhar numa organização local aqui em Lisboa. O primeiro grupo que integrámos foi um grupo para sobreviventes de violação. Depois disso passámos a criar grupos de ajuda mútua. Foram as sobreviventes que quiseram criar uma organização. Disseram “OK, isto é importante para nós e acreditamos que seja importante para outras pessoas também”. Portanto embarcámos na construção de uma ONG de direitos de mulheres. Um ano depois registámos a organização e agora estamos num ponto em que é importante pensar no que é que temos após 25 anos. Decidimos adotar as referências das Nações Unidas da área e estar abertas para todos os tipos de violência contra mulheres e crianças. Depois o segundo grupo que abordámos através desta organização foram as mulheres com crianças que tinham sido vítimas de abusos sexuais na vizinhança. E depois partimos para a violência doméstica no geral. Continuamos a dar apoio a sobreviventes de violação e violência sexual, mas a grande maioria das situações são de violência doméstica e de género. Ainda assim apercebemo-nos que era uma situação mais comum do que estávamos à espera no início. A violação no seio de relações de intimidade é ainda um grande problema. A parte boa é que os tribunais estão a começar a trabalhar nisso, mas ainda há um grande caminho a percorrer a nível de justiça. Temos de fazer lobbying sobre estas questões e temos de trazer as provas académicas e as investigações acerca destes temas para os tribunais.

Uma coisa é a cultura. Mas se passas a vida a comer batatas nunca pedes caviar. Porque te habituaste a esse tipo de comida… Não se podem culpar as vítimas e as sobreviventes. A responsabilidade recai toda no sistema, na educação, nos serviços sociais e na justiça. Todos esses sistemas devem funcionar enquanto instrumentos de desenvolvimento. Isto é também um problema em Portugal, onde temos os instrumentos mas os e as advogadas não os usam. Não sabem como utilizar as convenções. As universidades também têm de mudar muitas coisas para se tornarem mais úteis para os direitos humanos e para a sociedade no geral. A questão central deviam ser os direitos humanos, e a mudança tem de começar na educação.

 

Qual é a sua maior conquista? Do que é que se sente mais orgulhosa?

Antes de tudo, estar viva! Não estou a brincar, sou uma sobrevivente de tantas coisas, tive tantos obstáculos na minha vida. Tive de ganhar algumas competências para sobreviver. Também penso que contribuí, juntamente com outras colegas, para deixar uma marca nos direitos humanos das mulheres e das pessoas com doenças mentais em Portugal.

A minha primeira conquista é estar viva. Por volta dos 20 anos foi-me diagnosticada leucemia, e todos os dias eram um enorme desafio. Foi muito importante e é uma marca na minha vida. Depois apercebi-me que não podia perder o meu tempo com coisas parvas que não eram realmente importantes na vida. Acho que no fim todas as pessoas sentem isto, esta mudança na forma como vemos a vida. Mudei-me para um área de trabalho onde sentia que o que fazia era mesmo importante para alguém. Nessa altura ainda estava na função pública, e passei a envolver-me em ONGs. Apercebi-me que sou mais bem sucedida fora do sistema, e portanto decidi ficar fora dele. A minha estratégia era construir coisas onde não existia nada, algo como um instrumento de lobbying que qualquer pessoa pudesse utilizar como ferramenta para se defender. Estive envolvida no primeiro plano nacional na área da violência doméstica e de género e agora estamos a caminhar para o 5º plano, portanto é uma grande viagem. Estou orgulhosa do que atingi, mas não fiz este caminho sozinha, fui sempre acompanhada pelas minhas colegas e pelas organizações.

 

Margarida Medina Martins, Associação de Mulheres contra a Violência

 

O que é que é preciso trabalhar e como? Quais é que são os seus planos para o futuro?

Temos de mudar a educação e a abordagem à cidadania. Por exemplo, hoje em dia (em Portugal e na Europa) muitas crianças são retiradas às famílias. As instituições e o Estado têm a responsabilidade de salvar estas crianças, mas se não souberem o que estão a fazer podem-se fazer grandes erros. O que estamos a ver é que estamos a criar órfãos com pais e mães vivos, uma situação irónica que não faz sentido e que me deixa muito desapontada. Temos de mexer-nos para apoiar as famílias. Hoje em dia retiram crianças em vez de educar as famílias sobre como lidar com o bebé.  Os miúdos são diferentes hoje em dia, utilizam coisas diferentes para desenvolver ideias, e as escolas são um sistema um pouco autista, fora desta realidade. Ensinam matemática, literatura e tudo isso mas ninguém fala com as crianças sobre a vida real. Elas acabam a ser abandonadas na sociedade, ficam confusas e não há pessoas adultas que falem com elas. A minha prioridade são os direitos humanos e a educação das crianças.

 

As pessoas acham que está sempre a trabalhar… mas às vezes faz outras coisas, não é?

Eu reconheço isso, estou sempre a trabalhar, mas não sempre em ativismo. Nem as minhas colegas sabem que de vez em quando faço outras coisas, como cozinhar ou pintar. Apercebi-me que já devo ter uns 200 quadros em casa. A pintura era uma coisa de que eu necessito para me expressar, passei noites e noites a pintar. Às vezes ficava a pintar até às 3 ou 4 da manhã, e só depois conseguia ir dormir porque já tinha conseguido resolver os meus problemas enquanto pintava. Um dia perguntei a uma galeria como é que se fazia uma exposição. Eventualmente, na Betrand do Chiado pediram-me para preparar 7 quadros para uma exposição! Mas eu não queria que ninguém comprasse os meus quadros, eles não estavam à venda. Tive uma outra exposição depois, mas ofereci sempre os meus quadros, nunca os vendi. Hoje em dia sinto que preciso de pintar, mas não tenho tempo. Gostava de pintar alguma coisa que fosse maior que eu. Tenho 200 papeis pequeninos, porque desenhava sempre enquanto estava à espera do metro, mas agora quero uma coisa maior!

 

Entrevista e fotos: Rebeka Dávid

Graça Rojão: “Muitas pessoas, fazendo coisas muito pequenas em lugares muito pequenos, conseguem mudar o mundo”

CoolaboraEm 2008, cinco mulheres, das quais Graça Rojão, fundaram a Coolabora, uma cooperativa que tem como áreas de intervenção a Economia Social, o Voluntariado, a Inclusão Social e a Violência Doméstica e de Género, o seu foco central.

 

Como é que surgiu a Coolabora? E porquê?

A Coolabora surgiu há nove anos atrás (fizemos nove anos a semana passada), de um grupo de mulheres que já estava a trabalhar em iniciativas de intervenção social noutras organizações e achámos que podíamos ter um projeto com outros valores, com outros princípios e resolvemos largar os locais onde estávamos para fundar a Coolabora e termos um projeto mais assente na participação, mais assente em valores éticos nos quais nós nos revíamos e mais assente também numa lógica colaborativa, horizontal, de estar em rede com outras pessoas e com outras organizações.

 

E porquê uma cooperativa? Porque não outro tipo de organização, por exemplo, associação?

Nós escolhemos uma cooperativa porque também entendemos que é interessante pensar em organizações que funcionem de uma forma mais horizontal. Numa cooperativa o poder de cada cooperante é igual e, portanto, cada cooperante tem direito a um voto independentemente do capital social que detenha na cooperativa. Portanto, achamos que era uma forma organizacional que respondia, de um ponto de vista também de princípios, àquilo que eram os nossos objetivos. E por outro lado, porque a cooperativa permite também de alguma forma a prestação de serviços, que é mais vedada às associações, e com a prestação de serviços nós queríamos e queremos ganhar alguma autonomia financeira.

 

Nos primeiros tempos da Coolabora sentiram desafios? E se sim, quais?

Sentimos nos primeiros tempos e continuamos a sentir permanentemente desafios. Vão mudando os desafios, mas de alguma forma, o trabalho em rede com outras pessoas e com outras organizações também nos traz sempre aquilo que são as necessidades de terreno e por outro lado também questiona aquilo que são as nossas práticas e as nossas respostas. Portanto, os desafios mantêm-se desde o momento fundador. Aquilo que nos preocupa neste momento é sobretudo até que ponto é que as organizações de carácter cívico e solidário têm efetivamente um espaço para continuar e para subsistir, porque também nos parece que existem algumas tendências no sentido de contrariar aquilo que possam ser espaços de participação cívica mais ativa.

 

Quando fundaram a Coolabora já sentiam essa tendência ou têm vindo a sentir nos últimos tempos?

Nos últimos tempos, nos tempos mais recentes, penso que houve algum desagravamento. Mas se pensarmos, sobretudo aqui há quatro/cinco anos atrás houve uma pressão muito grande e uma desvalorização, também, daquilo que é o trabalho das ONG. O que me parece é que a nível local, à medida que as organizações vão trabalhando, se vão afirmando na comunidade, e vão demonstrando aquilo que são capazes de fazer, começam a ganhar algum reconhecimento público, isso também as enraíza. Há um  reconhecimento de trabalho que vai sendo feito. Sobretudo na fase inicial da Coolabora, o facto de nós termos começado mesmo com um foco muito centrado nas questões da igualdade de género levantou algumas dúvidas. Sendo que a primeira dúvida que se levanta na comunidade é baseada naquele estereótipo “mas porquê falar nos Direitos das Mulheres, quando hoje as mulheres têm os mesmos direitos” há um senso comum que diz que a situação dos homens e das mulheres é hoje igual. Portanto, quando nós trabalhamos este tema temos que trabalhar muito também a desmontagem desses estereótipos todos que favorecem que haja uma ocultação do problema. Na fase inicial era muito mais duro mostrar que existe o problema, que existe essa dificuldade e afirmar ações concretas pela igualdade.

 

Graça Rojão, fundadora da Coolabora

 

Disse que começaram pela igualdade de oportunidades entre mulheres e homens. A Coolabora foi criada com o objetivo de intervir apenas nesta área?

Nós consideramos que as questões da igualdade (entre homens e mulheres) são o nosso foco central. Porque se a Coolabora centra a sua intervenção naquilo que tem a ver com o combate às desigualdades e às injustiças, a desigualdade entre homens e mulheres é a mais transversal de todas na nossa sociedade. E portanto, essa tem que ser e é, obviamente, o nosso foco central. O que não significa que não olhemos também para a questões concretas da comunidade cigana, por exemplo, ou das pessoas que são desempregadas de longa duração, etc. Mas isso são coisas que nos vêm do terreno. O que nós tentamos é ter uma resposta em relação aos problemas que nos chegam, tendo como eixo central aquilo que é promover a igualdade de oportunidades para todos e para todas.

 

E como é que vocês o fazem na prática? Que tipo de atividades realizam, com quem e dirigidas a que público alvo?

Nós temos uma metodologia de intervenção que tem, pelo menos, dois princípios muito estabelecidos. Um é trabalhar sempre numa lógica de criação de novos espaços de participação, isto é, trabalhar com as pessoas e criar espaço onde elas possam também expressar aquilo que são as suas vivências, os seus saberes, os seus anseios. O segundo é trabalhar em parceria, em redes, trabalhar com outras organizações. E em termos de princípios de intervenção, essas duas vertentes são muito claras naquilo que nós fazemos. O que é que nós fazemos mais concretamente? Trabalhamos muito a sensibilização da comunidade para as questões da igualdade e fazemo-lo através das escolas, por exemplo, com sessões formativas para professores e professoras, mas também através do UBICOOL que é um grupo de voluntariado, sobretudo com voluntárias estudantes da Universidade (da Beira Interior), que fazem semanalmente intervenções nas escolas da Covilhã sobre a igualdade de género e a violência no namoro e também sobre bullying e resolução não violenta de conflitos. Trabalhamos muito a sensibilização da comunidade através da organização de eventos, de debates, de reflexões, de ações que ponham as pessoas a questionarem-se sobre as desigualdades que existem em termos de homens e de mulheres, dos Direitos. Trabalhamos também ao nível da capacitação das mulheres para o exercício do poder. Nós estamos num concelho com um número muito grande de associações culturais, recreativas, desportivas, etc. e temos uma presença ínfima das mulheres na liderança das organizações. Também é neste sentido que trabalhamos muito as questões da liderança e da ação política, entendendo aqui “política” não só como ação partidária, mas também no sentido da capacitação das mulheres para o exercício do poder. Trabalhamos também com as coletividades, tentando integrar naquilo que são as atividades das associações as questões que têm a ver com a igualdade de género, a reflexão em torno dessas problemáticas. Porque sem refletir e sem questionar as próprias práticas pessoais e o próprio contexto não se faz transformação. E temos, e isso é uma área muito grande do nosso trabalho, trabalho de prevenção e combate à violência doméstica e de género, com um gabinete na Covilhã, um gabinete em Belmonte e com uma rede de entidades que formam uma parceria que trabalha nessa área e que permite, não só articular as intervenções, como também articular respostas no imediato em situações de urgência, desde o Instituto de Medicina Legal, ao Hospital, ao Centro de Saúde, às Forças de Segurança, ao emprego, à habitação de emergência, Câmaras, etc. Essa é uma área muito forte do nosso trabalho. Para além disso, trabalhamos com a comunidade, nomeadamente, com as crianças e jovens em situação de abandono escolar; trabalhamos com a comunidade cigana, temos os grupos de entreajuda para a procura de emprego, temos o programa mentores para migrantes, que funciona aqui na Coolabora também com recurso a pessoas voluntárias. A Coolabora tem um grupo muito grande de pessoas voluntárias.

 

São quantos?

São cerca de meia centena de jovens no UBICOOL, depois há as pessoas que fazem aqui voluntariado na organização de eventos, de realização de iniciativas, talvez umas 15 pessoas. Há os mentores para migrantes que são voluntários, as pessoas que só fazem trabalho específico com as crianças e os jovens que estão no bairro social, etc. Para talvez uns 65/70, mais ou menos. Trabalhamos sempre com outras organizações, por exemplo, no One Billion Rising que realizámos há poucos dias envolvemos mais de 20 organizações. Isso também nos permite ir mais longe, implicar um número maior de pessoas, pôr mais pessoas a refletir sobre as questões da violência e sobre as desigualdades. Temos também algumas iniciativas no âmbito da Economia Solidária, porque acreditamos seriamente que podemos pensar em paradigmas alternativos àquele que temos atualmente, com relações menos mercantilizadas, mais solidárias e nesse contexto temos o grupo Troca a Tod@s, que integra, sobretudo, mulheres, mas também integra homens, gente mais jovem, gente mais velha, pessoas que têm preocupações com os estilos de consumo e que procuram respostas alternativas, mais solidárias e mais ecológicas. O grupo envolve também pessoas que estão em situação de desemprego e conseguem ver aqui uma forma de promover os seus produtos ou os seus serviços. Portanto, acaba por ser um espaço de cruzamento de uma diversidade muito grande de propostas e pessoas.

 

Graça Rojão, fundadora da Coolabora

 

Uma das vossas áreas intervenção é a violência doméstica e igualdade de género. Que necessidades é que encontraram a nível local, a que era preciso dar resposta?

Nós no início começámos por trabalhar sobretudo, com formadores e formadoras e também com docentes das escolas porque achámos que podia e devia ser um caminho importante para cortar a reprodução dos estereótipos. E foi um pouco a partir deste trabalho de terreno que percebemos que era fundamental criar uma resposta de proximidade em relação à violência doméstica. Porque não havia nenhuma resposta aqui na zona, as pessoas quando muito iam a Castelo Branco, aliás, na altura, a própria resposta que havia, que é diferente do que existe hoje, não estava muito estruturada e, portanto, avançámos para a criação do Gabinete de Apoio a Vítimas, efetivamente por sentirmos que era uma necessidade para a qual era urgente encontrar uma solução de proximidade. Aliás, foi elucidativo o facto de antes do dia da inauguração do gabinete, já termos pessoas a perguntar “Quando é que abrem que eu preciso de ser atendida?” Neste momento temos cerca de 140 atendimentos de novos casos por ano, o que numa região interior e com uma densidade populacional tão baixa como a nossa é um volume altíssimo.

 

Da sua vivência na Covilhã e da sua experiência de trabalho, do seu contacto com as pessoas, olhando para trás, como é que diria que tem sido a evolução da igualdade de oportunidades entre mulheres e homens?

De um modo geral, eu acho que são inegáveis os progressos que têm havido nos últimos 50 anos. Portanto, há uma transformação brutal entre aquilo que seriam os Direitos das Mulheres na Covilhã há 50 anos atrás ou aquilo que são hoje. E apesar de sermos uma cidade onde as mulheres entraram no mercado de trabalho em força e há muitos, muitos anos, não houve paralelamente uma entrada dos homens naquilo que são as responsabilidades familiares o que significa que a vida delas era muito, muito dura. E se pensarmos que era uma região assente em mão-de-obra intensiva, nomeadamente em confeções de vestuário, com salários muito baixos, a externalização de funções que poderiam de outra forma ser pagas e ser desempenhadas fora da esfera doméstica, não acontecia. O que significa que elas tinham uma carga muito muito forte. A esse nível há algumas mudanças, mas não significa que não haja ainda um percurso gigantesco para se fazer.

 

E desde a intervenção da Coolabora?

O que eu acho que a intervenção da Coolabora fez foi colocar um holofote sobre o problema e aumentar a consciência das pessoas em relação a ele. Daí até transformarmos as vivências mais pessoais é capaz de haver ainda muito caminho a fazer. Mas, por colocarmos a questão da igualdade na ordem do dia, por organizarmos debates, por levantarmos a questão, fazermos exposições, etc. estamos a lançar um processo de mudança e criar bases para que haja a transformação. Mas tal não significa que não haja ainda um caminho gigantesco para percorrer. No que tem a ver com as questões da violência doméstica, é óbvio que é muito mais fácil passar a mensagem sobre a intolerância face à violência doméstica, é mais fácil mobilizar organizações para trabalhar contra a violência doméstica, do que para a promoção da igualdade de género em geral. Porque a desigualdade de género está de tal forma ocultada, que exige um trabalho muito mais profundo.

 

A Graça trabalha há mais de 20 anos na área do desenvolvimento, o que é que a motivou a ingressar na área e o que é que a leva a manter-se?

Eu acho que o facto de ter nascido numa cidade operária e ter sete anos quando ocorreu o 25 de abril permitiu que assistisse às lutas operárias na cidade, ainda que não as entendesse perfeitamente, e que também permitiu que assistisse às lutas pelo controlo de algumas quintas, por parte dos trabalhadores. Penso que isso me marcou e que me fez ter uma preocupação muito forte com a justiça social. Na adolescência sonhava que iria trabalhar pelo desenvolvimento de um país de terceiro mundo. Um dia mais tarde fui visitar uma feira e conheci uma ONG que trabalhava sobre Educação para o Desenvolvimento e sobre o diálogo entre os países ditos desenvolvidos e os países ditos subdesenvolvidos, no mesmo dia inscrevi-me como voluntária. Algumas semanas mais tarde passei a ser animadora de projetos de Educação para o Desenvolvimento dessa ONG aqui na região. Acabei por estar ligada a esses projetos uns sete/oito anos, não sei bem. Também durante a licenciatura em Sociologia fui escolhendo as cadeiras que tinham a ver com desenvolvimento local, porque entendi que era uma área que me interessava profissionalmente: vir a fazer alguma coisa por aquilo que estava à minha volta, torna-lo um pouco melhor, de acordo com aquilo que é possível fazer. Mas acho que o que me motiva a manter nesta área é sobretudo a reação à injustiça e às desigualdades.

 

A Coolabora fará 10 anos no próximo ano, quais considera que foram até agora os maiores feitos e o que é que ainda falta fazer?

Bem, o que falta fazer é gigantesco (risos). Incomensurável. Um dos maiores feitos foi a estruturação de uma resposta regional em relação à violência doméstica que funciona muito bem. Nós ouvimos constantemente as pessoas queixarem-se das parcerias alargadas, das redes que não funcionam, das reuniões de parceiros onde não aparece ninguém e nós temos já há muitos anos a esta parte, por exemplo, reuniões bimestrais da parceria Violência Zero, em que geralmente até vêm mais pessoas do que aquelas que está previsto virem. Portanto, aquilo que nós conseguimos estruturar de uma forma mais eficaz é efetivamente a resposta regional na área da violência. É óbvio que temos de contar e temos tido também essa sorte, com organizações e até mesmo com organismos públicos, que apesar de todas as dificuldades internas, se mobilizam efetivamente para encontrar respostas, para construir soluções. E acho que isso tem sido muito importante pela resposta aos problemas da violência. Esta rede tem sido uma oportunidade de aprendizagem para todas as organizações, porque é importante que percebamos que podemos estar em parceria, podemos manter a nossa individualidade, a nossa autonomia, as nossas visões diferentes das da entidade que está ao nosso lado, mas que nos podemos cruzar e estar em relação. Isso obriga a um esforço de respeito mútuo e ao desenvolvimento de capacidades ao nível da cooperação interinstitucional que são muito importantes para a questão da violência, tal como como são importantes para a resolução de todos os outros problemas sociais. Penso que isto tem sido uma resposta boa e que foi uma conquista da Coolabora, mas acho que também todo o trabalho de sensibilização em relação à igualdade de género e a outros paradigmas de vida coletiva também é extremamente importante. Se pensarmos que nós temos um modelo de vida coletiva, que está assente numa sobreexploração da natureza, que não há planetas suficientes para resistir ao nível de consumo que nós temos, que há injustiças sociais, que há desigualdades e que podemos, eventualmente, questionar tudo isso e pensar que é importante nutrir também outras formas de nos relacionarmos, mais ligadas à natureza, mais ligadas à relação e ao cuidado que temos com todos e com todas, que podemos trocar bens e serviços, de uma forma não mercantilizada, que podemos criar outro tipo de relações. Eu acho que mesmo as iniciativas pontuais que vamos fazendo ou até mesmo os grupos de entreajuda para a procura de emprego, provam que é possível ter outra forma de relação mais solidária, mais baseada na entreajuda, que não há apenas um único caminho. Por exemplo, há aquela máxima que diz que tempo é dinheiro, nós contrapomos que tempo é vida. Portanto, mais importante que o dinheiro é a vida que nós temos. E acho que o facto de demonstrarmos com iniciativas pontuais, pequeninas, grãos de areia, como nós dizemos muitas vezes, que há outras possibilidade, isso também obriga a que as pessoas questionem aquilo que são os seus padrões de vida.

 

Graçã Rojão, fundadora da Coolabora

 

Pensando em todo o trabalho que já realizou na Coolabora e anteriormente, quando era animadora de Educação para o Desenvolvimento, sente que, como disse, já conseguiu melhorar um bocadinho o mundo à sua volta?

Eu acho que nós fomos tornando, durante todo este período, mais leves as vidas de muitas pessoas, mas não posso dizer que o mundo hoje seja um local melhor e mais seguro para vivermos todos do que era, por exemplo há 20 anos atrás. Isso não me parece que seja verdade. Parece-me que hoje há desafios que são muito perigosos e, portanto, de um ponto de vista estrutural, penso que estamos numa situação de pré-caos. Basta pensarmos nos desastres ecológicos, basta pensarmos que o planeta está cada vez acima da sua capacidade de carga, basta pensarmos de um ponto de vista político, na saúde das nossas democracias, para sentirmos que estamos numa época de grandes riscos.

 

Tendo em conta esta época de grandes riscos, quais são as suas perspetivas de futuro?

Eu sei que sou exageradamente otimista e de alguma forma, tento conter-me (risos), mas acredito que estejamos também num momento de viragem e que possamos passar por uma crise profunda que nos possa abrir para modelos de vida, para paradigmas mais amigáveis do ser-humano e da natureza. Penso que estamos num momento em que pode haver uma crise de tal forma profunda que nos pode obrigar a reequacionar tudo. Se nós olharmos, por exemplo, para propostas alternativas que hoje surjem, desde o decrescimento, ao buen vivir, etc., sobretudo, vindas dos países do Sul, acredito que possa estar a emergir alguma coisa de novo, mas também acredito que até conseguirmos estruturar um modo de relacionamento alternativo, somos capazes de ter um período de crise relativamente difícil.

 

E pessoalmente, onde é que se vê daqui a 10 anos?

Eu daqui a 10 anos… Não me vejo a fazer uma vida muito… Eu gosto muito do trabalho que faço e vejo muitas vezes as pessoas dizerem que à segunda-feira custa tanto, “Bolas, mais uma semana de trabalho”. Eu gosto muito do meu trabalho e faço-o com muita vontade e gosto muito das pessoas com quem trabalho, acho que dos aspetos mais positivos que a Coolabora tem é a equipa, é o facto de ter uma equipa muito solidária. E portanto, nós podemos organizar um evento, podemos organizar uma atividade difícil, mas sabemos que está lá toda a gente empenhada e a colaborar e se há alguém que tem algum problema, mesmo que seja pessoal, sabemos que temos uma rede de entreajuda forte. E portanto, como gosto muito do trabalho que aqui faço, espero daqui a 10 anos ainda cá estar a fazer as mesmas coisas. Mas se há alguma coisa que eu gostava mesmo muito de mudar na minha vida, parece um contrassenso, mas não é, era trabalhar menos horas e ter mais tempo para tratar da minha horta, do meu quintal, para dar passeios a pé com os filhos, ou seja, ter mais tempo livre.

 

Há alguma coisa que queira acrescentar?

Se calhar, acrescentava uma coisa que eu acho que ajuda a entender qual é o significado de iniciativas muito pequenas. Há uma frase do Galeano que se ouve muitas vezes e que diz que “muitas pessoas, fazendo coisas muito pequenas em lugares muito pequenos, conseguem mudar o mundo”. E acho que isso nos faz sentido, ou seja, nós fazemos no contexto em que vivemos, o melhor que sabemos e que podemos em cada momento. Sabemos que são coisas muito pequeninas, mas acreditamos que se houver muitas pessoas a fazer coisas muito pequeninas, em muitos locais, que isso pode ajudar a mudar o mundo.

 

 

Entrevista Catarina Correia | Fotos: Pedro Pinto Basto

Sílvia Vasconcelos Lopes: “A mulher conquista por ela própria e as coisas aparecem porque têm que aparecer”

Sílvia Vasconcelos Lopes, Motoclube FemininoSílvia trabalha na área da administração, mas desde pequena teve uma paixão pelas motas, o que a levou não só a percorrer o país, mas também a conquistar a sua liberdade. Exemplo de luta e força, a Sílvia é presidente do único Motoclube Feminino de Portugal.

 

 

 

Sentiste alguma vez discriminação a nível profissional pelo facto de seres mulher?

Não, até pelo contrário. Sou administrativa numa empresa que vende maquinaria de lavagem de automóveis e acho que foi a minha postura que me levou a conseguir o meu trabalho. Joguei futsal, fomos campeãs nacionais e posteriormente fui árbitra. Apitava a primeira divisão, a maior parte eram jogos masculinos. Era raro apitar jogos femininos, eu não gostava porque conhecia grande parte das raparigas que jogavam ainda na altura, porque eu tinha saído há pouco tempo.

 

E nos jogos masculinos, quando apitavas, os homens questionavam o teu trabalho?

Por vezes havia um certo desrespeito mais pela parte do público. Porque estranhavam, era anormal e continua a ser anormal. Mas não tenho razão de queixa. Acho que tem a ver com a postura. Se tu tens uma personalidade muito forte, dificilmente eles conseguem ultrapassar a linha, é a diferença como tu os abordas. Um jogo que eu pensei que ia ter muita complicação foi em Chelas. E foi a maneira que eu me apresentei perante eles: “Quem manda aqui sou eu. Se marquei uma falta, escusam de estar a reclamar porque não vou voltar atrás com a minha decisão, está marcada”. Foi o jogo mais tranquilo que eu tive na minha vida. Tem a ver como é que te apresentas. Não precisas de ser arrogante ou má, mas tens que mostrar um pulso firme, porque senão abusam de ti.

 

Quando é que descobriste a tua paixão pelas motas?

Desde muito nova. Tinha um tio que infelizmente morreu numa mota com a qual eu brincava no quintal. Até que aos 14 anos fui tirar a licença e a minha avó, apesar de ter morrido o filho, foi uma mulher corajosa por me dar uma mota. Foi a minha avó que não me cortou as asas. Atualmente tenho duas e teria muitas mais, se saísse o euro milhões, tinha uma mota de cada nação.

 

Quando é que se fundou o Motoclube Feminino?

Foi fundado por outras colegas em 2001 em Cascais. Somos um grupo de mulheres e é sempre mais complicado gerir um motoclube, não pelo facto da personalidade da mulher, mas pela vida da mulher em si. Casam-se, depois têm filhos, depois desaparecem durante uns anos, depois voltam a aparecer quando as crianças são maiores. O motoclube feminino tem altos e baixos devido a isso. No dos homens já não se nota isso porque os homens não têm tanta responsabilidade perante os filhos, perante uma casa e, portanto, perante a família. Na mulher há uma responsabilidade acrescida e ela própria sente que há, mesmo que não seja pressionada para, há mesmo, existe mesmo. Nos no nosso íntimo somos assim, primeiro é a nossa família e depois o nosso lazer. Por isso é que deixamos às vezes de ter o resto porque prescindimos de tudo em função da família.

 

É o único Motoclube feminino de Portugal?

O nosso é realmente o único motoclube feminino em Portugal, mas também lidamos com motoclubes masculinos, eles apoiam-nos, fazem passeios connosco.

Nós fazemos um evento só para as mulheres, perto do dia da mulher, comemorativo deste dia, por isso é só exclusivo às mulheres, todos os outros eventos são para todos aqueles que queiram participar, tais como os maridos das nossas colegas, amigos e outras pessoas de outros motoclubes, todos são bem vindos para passearem connosco, viajarem connosco e estarem connosco. Associadas, a usar o nosso Pano , só mesmo mulheres.

Dois grupos motards, supostamente femininos, tentaram criar um evento há pouco tempo, contudo, não se tratava de grupos motards femininos, o intuito foi atrair público masculino, para um evento que nada tinha a ver com motoclubes femininos, mas sim, um evento direccionado para a parte automobilista, ou seja de carros e não de motos.

Eu não me importo que existam mais clubes femininos, até pelo contrário, acharia bom e benéfico, o que eu acho negativo é a mulher não ter um pulso e dizer: “a gente faz isto por nós, para nós e somos nós que vamos lutar”. Como eu luto pelo meu motoclube, como presidente, para conseguir mil e uma coisas. Porque é que elas estão debaixo da sombra dos homens? Não há necessidade. Eles apoiarem e ajudarem é uma coisa. Elas serem servidas para os objetivos deles, acho tão negativo… E acontece. Eu gostava que realmente existisse, mas que existisse da mesma forma como nós existimos. Não de baixo da alçada dos homens.

 

Sílvia Vasconcelos Lopes, Presidente do único Motoclube Feminino de Portugal

 

Será que a mulher precisa mais autoconfiança porque tem sido muito desvalorizada?

Quando eu fiz um dos eventos, um passeio, não há muito tempo, eu apresentei a minha 125 cm, elas vem-me com esta mota, igual às que elas têm e aí vêem que também elas podem participar e rolar connosco, não se sentindo inferiores a ninguém, e eu levei a minha 125 a este passeio e até publiquei uma foto, e como brincadeira disse: “a mãe hoje fica em casa, vai a filha”, para outras mulheres irem, e realmente foram. Que medo que elas tinham de passar vergonha ou sentirem-se inferiores, porque as suas motas eram de cilindrada inferior às da maioria das outras meninas. Eu não me senti nada inferior, mas há necessidade disso? Nós não temos de ter vergonha de aquilo que temos ou de aquilo que somos. Eu acho que as pessoas vivem um bocado de aparências e não podem. Agora essas mesmas pessoas, já vão connosco na mesma, nenhuma ficou para trás, ganharam a confiança.

O homem tem outra maneira de estar e mesmo as mães ou os pais, a partir de uma certa idade, já eles é que sabem…E com a mulher não é bem assim. A mulher está debaixo do tecto do pai ou da mãe e aqui quem manda sou eu. Às vezes, muitas delas, casam-se para ganhar a sua independência, a sua liberdade. Já passei por algumas situações de amizades onde senti isso. Senti que ganharam a liberdade quando saíram de casa. Eu nunca tive esses problemas. Ai custa-me um bocado sentir que há mulheres que os pais pelo facto de serem mulheres dizem que já não podem isto ou aquilo. E os rapazes não, se calhar até mais novinhos já saiam à noite, já fazem assim, já podiam assado, estava sempre tudo bem porque era um rapaz. Claro que as mentalidades estão a mudar e nota-se. As coisas cada vez têm mais a tendência de mudar, as gerações cada vez tem uma mentalidade mais aberta. A gente fala dos novos, mas mesmo os cotas, acho que os nossos cotas já estão diferentes, aceitam outras coisas, já não são aqueles cotas que pararam no tempo.

 

O que significa ser motard?

É um todo, é a conquista da liberdade. Andar de carro é completamente diferente, de carro tenho a companhia do rádio, de outra pessoa. De mota sou eu, a mota, a natureza, a paisagem, a adrenalina e a liberdade que nos traz. Só realmente que anda “nestes bixos” é que sabe. Quem passa para este patamar, depois dificilmente desaparece. O nosso espírito motard é muito diferente do masculino porque o masculino é uma conquista de valor material. A mulher não, a mulher conquista por ela própria e as coisas aparecem porque têm que aparecer, porque nos pertencem.

 

Sempre tiveste apoio da tua família e amigos? Nenhum homem a tua volta te disse alguma vez que mota não é para mulheres?

Nunca ouvi tal coisa. Acho que eles gostam muito mesmo da nossa presença. Dizem que a coisa mais bonita é ver uma mulher em cima da uma mota. Nós a nível físico temos de ter consciência que somos um bocadinho menos do que eles, claro que conseguimos tudo, mas é a realidade. E eles acham estrondoso como é que uma mulher consegue movimentar estas máquinas como eles. Há um ou outro, mas é uma coisa muito rara. Eles valorizam realmente o nosso esforço, e às vezes, até incentivam as mulheres deles, devido a ver o nosso grupo andar.

 

Então os homens fomentam a participação das mulheres?

Muitos deles sim, mas há sempre excepções. Claro que se ouve certas e determinadas coisas, mas também somos um clube diferente. A mim sempre me dizem assim: “Sílvia, como é que tu consegues ser presidente de um grupo de mulheres?” Ou seja, como se um grupo de mulheres fosse um grupo de atrito, de confusão, mas não, estamos todas realmente pelo mesmo. Há mais confusões a nível masculino, porque todos querem chegar a um poleiro e as confusões começam por ai, e nós não. Porque todas têm as suas responsabilidades em casa e não querem nem pouco mais ou menos a responsabilidade fora de casa.

 

O que vos motivou a participar na Marcha contra a Violência?

Nós achamos que nos devemos apoiar umas às outras, se as mulheres se apoiarem conseguem chegar mais longe. Os homens são muito mais unidos, as mulheres precisam de se unir, seja no que for. Nós somos das motas, elas têm outras causas. Mas porque é que não apoiamos a causa delas e um dia sejam elas a apoiar a nossa causa. Temos que ser assim, temos que ser umas para as outras, senão a gente não evolui.

O meu grupo, se calhar por sermos mulheres motards e porque já tivemos as nossas conquistas, tentamos ajudar quem possa estar a passar por situações menos agradáveis. É a primeira vez que participamos, e eu vi a alegria das pessoas a baterem-nos palmas, a abraçarem-nos, houve uma energia muito positiva porque elas viram que somos lutadoras e conseguimos fazer o que os homens fazem sem problema nenhum. Estão cá, estão connosco, são guerreiras, foi isto que conseguimos transmitir e a maneira como elas reagiram, parecia que estávamos a levar um murro no estômago mas de alegria.

Confesso que, a quase todas nós nos vieram lágrimas aos olhos, chegou um momento que eu tinha o capacete na mão, estava a acelerar a mota e lembro-me de estar toda a tremer, foi uma vibração que só quem passou por essa situação é que sabe, quisermos dar um alento porque há tanta coisa boa por ai, podemos conquistar tanta coisa… Vamos embora, vamos à luta.

 

E para ti o que significou estar presente na Marcha?

Foi um todo, nós não nascemos para sofrer, porque se fosse para isso preferia não ter nascido. É normal que a vida não seja um mar de rosas, tem que haver os seus percalços porque senão também não tem graça nenhuma. Mas, custa-me ver na atualidade as mulheres ainda sofrerem como sofrem, antigamente, as mulheres não tinham trabalho, trabalhavam em casa, ficavam em casa. Hoje em dia as mulheres são independentes e conseguem tanto como o homem. Porque se sujeitar? Não se sujeitam só elas, sujeitam um todo, tudo o que esteja à volta delas, tudo sofre se elas estiveram a sofrer.

 

Sílvia Vasconcelos Lopes, Presidente do único Motoclube Feminino de Portugal.

 

Ver a luta de outras mulheres em situações de violência despertou em ti um interesse pelo feminismo?

Por acaso nunca pensei profundamente sobre isso. Eu sempre disse ao meu irmão mais novo: “Tu à minha frente nunca batas numa mulher”. Eu sempre lhe disse isto porque acho que é tão cobarde, tão cobarde, tão cobarde da parte de um homem agredir uma mulher. Eu dizia isto já desde muito nova e ele ria-se. Por algum motivo foi, se calhar, pelas situações que via na televisão e me revoltavam.

Eu vivia com os meus avós e o meu avô sempre me dizia isto: “Tu não tens os teus pais para te salvar, por isso faz -te a vida”, “ A única herança que te deixo, são duas pernas para andar e dois braços para trabalhar, de resto ninguém mais te pode dar nada”. Nós temos que lutar por nós próprias logo em primeiro lugar, da mesma forma que eu luto por mim para não estar numa situação dessas, acho triste que alguém esteja a passar por isso.

 

Achas que a luta feminista de outros coletivos, não só contra a violência, é importante para melhorar a situação das mulheres?

Claro que sim, sem dúvida, porque senão existisse isso, ainda o mundo estava muito mais calado. Há vozes, há pessoas que ouvem, há pessoas que são alertadas, há pessoas que não passaram por isso e se calhar começam a ver que existe alguma coisa para além do que não viram ou que não passaram. Acho que mostra às pessoas a parte negativa que existe, o obscuro que existe atrás disto tudo. Eu acho demasiado importante.

 

O Motoclube participa em outras atividades similares?

Nós participamos em muita coisa. Desde angariação de fundos para a menina Bruna, que quer correr em moto, mas, que não tem patrocinadores, porque é menina, o que é uma vergonha, até eventos para ajudar pessoas com deficiência a comprar cadeiras de rodas. Também colaboramos com bens para a Casa do Gaiato, a Santa Casa de Santarém ou a Casa Mãe, para jovens e crianças. Fomos lá com as motas e os miúdos adoraram.

 

Vocês fazem muita coisa, mas se calhar não têm a notoriedade suficiente.

As pessoas às vezes têm uma noção errada do motard. Só mudam de ideia depois de conviverem connosco e, principalmente, estarem em eventos nossos, porque nós não somos violentos, nós não infringimos as regras, no Motoclube Feminino ninguém infringe as regras, somos mesmo muito civilizados. Eu nunca vi porrada num evento nosso, não só nosso, como também em outros eventos motards, nunca vi. O que estragou isto foram os filmes de gangues motards, e as pessoas todas olharam para aquilo e acreditaram. Uma das maiores coisas que nós temos é a nossa união, somos muito, muito unidos.

Ninguém fica para atrás, toda a gente tem que ir, toda a gente tem que chegar, ninguém fica para trás. Por isso é que existem os grupos, senão, nem valeria a pena. Se era para eu andar sozinha, porque é que existia um grupo? É esta união que nos faz andar.

 

Se alguém cometer uma falta grave ou algum abuso pode ser expulso?

Sem dúvida, serão mesmo, mesmo as minhas sócias. Eu prefiro menos com qualidade do que muitas sem qualidade. Realmente há regras que são preciosas, principalmente o respeito, aí é que não há hipótese, daí não passa e no dia que passar…não toleramos, o nosso grupo não tolera. Vê-se logo quem entra por mal, muito pouco tempo lá fica, é que nem se torna sócia.

 

Quais são as maiores diferenças entre um motoclube masculino e o Motoclube feminino?

Há uma grande diferença nos apoios, sem dúvida, neste mundo apoiam mais aos homens que as mulheres. Os homens conseguem uma sede ou um espaço para estarem, muito rapidamente, e nós não. Nós não temos sede, a maior parte deles têm sedes cedidas em escolas abandonadas, por exemplo.

Há muita coisa que nós não conseguimos pelo facto de sermos mulheres, ainda há muita coisa. Mas eles não são responsáveis, responsáveis são aqueles que vêem as coisas ainda desta forma, é a única coisa onde eu vejo, realmente, a maior diferença.

Mas temos muitos homens também que nos ajudam, é uma verdade, se calhar não aqueles apoios que eles têm, mas depois dentro dos nossos meios ajudam-nos com o pouco que têm. Agora, as altas entidades desvalorizam um pouco, o nosso maior entrave está por ai, apesar de termos as coisas todas legais. Muitos clubes que se formaram depois do nosso, já têm uma sede, tu vês essas coisas e te perguntas: “quando é a nossa vez?”; mas, eu não culpabilizo os outros clubes, eu quero que eles também tenham, mas realmente nós somos muito prejudicadas, é isso e os materiais de roupas para nos equiparmos, existem um ou dois modelos femininos e o resto é tudo para os homens, ou seja, 98% ou 99% é para homens, aí perdemos muito pelo facto de sermos mulheres, é onde eu vejo que a coisa é mais complicada.

 

Sílvia Vasconcelos Lopes, Presidente do único Motoclube Feminino de Portugal.

 

E o que é que se poderia mudar? Chamar a atenção para os patrocinadores, sensibilizar as marcas?

Isto é muito difícil mudar, isto tem a ver com as pessoas que lutam ou não pelas coisas. Eu sou presidente deste clube, vai fazer quatro anos, mudou muito, o clube mudou mesmo muito. Tivemos  uma presidente antes, que não foi proactiva, não foi à luta, foi deixando andar, e a coisa ia andando até que, quando eu peguei no clube, nós éramos entre 7 a 10 sócias, mas só 4 ou 5 tinham mota. Já estavam até a aceitar pessoas sem mota, o que eu achei um descabimento, podem participar, queres ir connosco podes ir, mesmo que não tenhas mota, podes participar mas não podes usar o “Pano” porque não tens mota, podes conviver connosco e podes estar connosco, mas não podes pertencer ao clube. Foi uma das regras, e atualmente já somos cerca de 40.

Cresceu muito porque as coisas mudaram muito, porque houve luta, realmente, fui presidente por acaso, porque nem era para estar nessa reunião e as minhas colegas pediram-me para eu ser a presidente, a coisa alterou-se mesmo porque eu fui para a batalha, a verdade é que em todos os nossos eventos temos cerca de 500, 600 pessoas e tudo alegre e tudo feliz e aquilo não dá prejuízo nenhum. Eu costumo dizer: se o dinheiro que a gente fizer der para pagar as despesas, para mim é óptimo, é só isso que eu quero, não quero mais nada. Mas a verdade é que tem vindo sempre um pouco mais, pois o meu objetivo é arranjar dinheiro para se um dia tivermos uma sede, conseguimos reconstruir o espaço, e para isso é necessário algum dinheiro, por isso é que eu luto diariamente, por todas nós.

No meu ponto de vista, também tem a ver se és guerreira ou não para a coisa, eu costumo-lhes dizer: se aparecer alguma que tenha mais garra que eu, eu dou-lhe o meu lugar mas é na hora, e não é porque não quero estar à frente, pelo contrário, no dia que achar que estou mais cansada ou que já não tenho tanta paciência, que venha outra, e que, Deus queira que faça melhor do que eu, porque é assim que as coisas andam para à frente, só assim é que crescemos, dando oportunidade a outras pessoas a fazer mais e melhor. Vamos embora, há-de chegar uma altura que tem que vir sangue novo, têm que ser as miúdas a pegarem naquilo, têm que andar para frente.

Quando se deixa lá muito tempo uma coisa, a coisa apodrece e eu não quero apodrecer ali nem quero apodrecer o que está a minha volta, quero que as coisas desenvolvam, portanto, eu quero mulheres fortes e ativas no meu clube. As oportunidades estão lá e as oportunidades são para elas, mas, elas têm que querer, elas têm que fazer, que sejam proactivas.

Nós temos que ser unidas e temos que andar para a frente, se é para andar para trás não é preciso estar ali, ando para trás num outro lado qualquer. A mota não tem marcha atrás, é o que eu lhes digo: “a minha mota não tem marcha atrás, por tanto isto não é para andar para trás, só tem um sentido, é para a frente”. Tem que ser assim, temos que levar a vida assim e acho que realmente as mulheres deveriam ser mesmo assim, tipo a mota: não há marcha atrás.

 

O que significa para ti o teu colete?

Muita, muita, muita coisa, esforço, dedicação, amizade, respeito…Isto é uma segunda pele. Aqui está muita coisa, muito convívio, muitas alegrias, muitas tristezas, quando se perde alguém na estrada. Tem muita história, e este colete, quando eu me for embora, daqui, da face desta terra, vai ficar cá, ele não fala, mas tem tanta história para contar, tanta coisa, tantas emoções, só ele é que sabe, ele está um bocadinho já estragado pelo tempo de uso que já tem, mas, tenho pena de o trocar por um outro mais novo, já tem muitos anos, muitas histórias, até ferrugem já tem, coitadinho.

 

 

Entrevista: Marta López | Fotos: Rebeka Dávid e Borbála Kristóf

Alexandra Alves Luís: “A pior experiência que tenho é querer ver um sítio e ficar cá fora só por ser mulher”

Alexandra Alves Luís passou mais de um ano sempre em viagem. Esteve em mais de cem países e conheceu a Coreia do Norte, a Antártida, as Galápagos e muitas outras regiões. Durante essa viagem, a questão que a tocou mais foi a condição das mulheres, e por essa razão hoje despende muito do seu tempo no ativismo feminista. 

 

 

Licenciaste-te em Organização e Gestão de Empresas e, mais tarde, decidiste dar uma volta à tua vida e começar a viajar pelo mundo. O que é que te levou a tomar essa decisão?

Das minhas recordações de infância, tem a vontade de viajar e conhecer o mundo. Na queria ser hospedeira, mas hoje eu percebo que isso já refletia a minha condição de mulher. Para viajar pelo mundo eu devia ter ambicionado ser piloto, porque ia sozinha – levaria eu o avião. Hoje, quando penso nisso, digo: “Bom, eu já nessa altura não tinha consciência desta desigualdade de papéis e ambições”.

Cresci numa família muito conservadora. Apesar de, aos 16 anos, ter dinheiro meu para fazer o meu primeiro interrail, o meu pai achou que não, que isso não eram coisas para meninas. Depois tentei sempre, quando estava a estudar (no ISCTE), ir estagiar no estrangeiro e consegui. Foi a primeira vez que viajei sozinha, no 3º ano: escolhi o sítio mais distante para onde podia ir e fui para a Finlândia. Aí tive uma boa experiência porque de lá podíamos ir, na altura, à União Soviética, e realmente percebi que há todo um outro mundo, era tudo muito diferente – estamos a falar do fim dos anos 80. Fui para a Alemanha quando acabei o curso, fazer Erasmus. A partir daí, quando se está no centro da Europa, há uma grande possibilidade de viajar.

Depois comecei a trabalhar numa empresa internacional na área da Gestão e podia sempre viajar – pelo menos para o centro da Europa – em trabalho. Comecei também a ter a experiência de viajar sozinha.

Sou uma pessoa muito curiosa e, viajar sacia-me. Existem pessoas diferentes, hábitos diferentes. É algo que se instala em ti, que não consegues descrever, e queres sempre ir para sítios diferentes ou ver coisas diferentes. Entretando surgiu-me uma oportunidade quando trabalhava em Madrid. Ou continuava lá e já não ia mudar, ou ia viajar. Decidi  dar a volta ao mundo. No total eu viajei quase durante dois anos, e essa foi a experiência que me marcou mais e que me levou a pensar sobre o que é que eu queria fazer da minha vida após essa viagem. Quando viajas estás longe da tua rede de amigos, dos teus contactos, da tua família, não tens a pressão de teres que voltar e teres as coisas na secretária à tua espera, estás completamente livre e olhas para as coisas de outra forma. Não tinha uma rota: tinha sítios onde queria ir, mas não tinha as coisas todas muito bem definidas. Ia ficando nos sítios onde conhecia pessoas, dos quais gostava.

A única coisa que sabia era que, quando chegasse, eu não queria voltar a estar numa empresa e a fazer a mesma coisa. E foi uma coincidência simples: fui a uma universidade que não era a minha à procura de um curso de Verão e vi um cartaz que dizia “Mestrado em Estudo sobre as Mulheres”.

 

Alexandra Alves Luis, Associação Mulheres sem Fronteiras

 

Enquanto mulher, tiveste tempos difíceis a viajar sozinha?

Sim, apesar de eu achar que todas as mulheres devem viajar sozinhas e que todas temos direito em ir a todos os sítios, não vou negar que não foi difícil. Primeiro, é difícil porque as pessoas não percebem porque é que vais viajar sozinha. Cria-se uma ideia de que “epá, ela é uma maluca” ou “vai à procura de homens”, tudo muito ligado às questões de sexualidade. São questões invariáveis que surgem, e é um bocadinho revoltante porque estás sempre a ser confrontada com essa situação. E existem muitas mulheres a viajar sozinhas.

O que é que nos acontece? Todo o tipo de coisas. Desde o assédio sexual, a forma como te olham, e uma coisa que me tem indignado muito é não poder entrar nos sítios só porque sou mulher, nomeadamente em monumentos classificados pela UNESCO.

Nessa altura, e especialmente numa fase inicial, eu não tinha tanta noção dos riscos. Se calhar houve sítios onde eu dormi, que hoje não teria ficado. Penso que corri determinados riscos desnecessários.

O facto de seres do “Norte Global”, faz com que à partida sejas logo percebida como uma pessoa com mais recursos económicos. E depois há outra questão que é ser mulher e de pensarem: “opá, elas são mais burras, não percebem, então posso pedir mais dinheiro”.

 

Uma das tuas viagens foi à Coreia do Norte. Como é que essa viagem aconteceu?

Eu tento encontrar locais em que possa conhecer a condição das pessoas e, principalmente, a condição das mulheres. Eu quero ver os sítios, não quero experienciar os sítios pelo que os outros me contam. Tinha uma certa curiosidade pela Coreia do Norte, que é um regime que eu não apoio. Mas o que queria ver era como é que as pessoas viviam, porque a minha experiência também me diz que na maior parte dos locais onde eu estive há uma grande diferença entre o que se escreve e aquilo que é a vida das pessoas. Há sempre uma carga ideológica por detrás da forma como se escreve sobre determinadas regiões.

Eu já tinha tido uma experiência na Coreia do Sul, com uma amiga, durante o Campeonato Mundial de Futebol Masculino Sénior e vivemos um mês com uma família sul coreana. Encontrámos uma situação de profunda desigualdade para a mulher jovem que tinha acabado de casar e que estava connosco. Chocou-nos muito a condição dela. Não saía sozinha, nós convidámo-la para jantar e a família não autorizava, o marido nunca estava em casa… Era uma circunstância muito difícil para ela. Essa família tinha decidido acolher pessoas durante o Mundial para a jovem nora poder falar inglês com alguém.

Queria sentir a diferença entre os dois regimes e como isso se reflete na vida das mulheres. Organizei-me durante um Verão que passei em Pequim e fui numa viagem organizada. Eu sabia à partida quais eram as regras, e em qualquer país que eu vá sempre respeitei as regras. Neste caso tínhamos uma lista completa, desde como é que nos tínhamos que vestir, o que podíamos levar – não podíamos ter telemóvel -, o que  podíamos fotografar. Nada me ofereceu um problema, foi uma viagem muito interessante. E como suspeitava a condição das mulheres lá é muito próxima à da Coreia do Sul, e a muitos outros países do mundo. A discriminação de género é a grande discriminação em todos os países do mundo.

Essa viagem também me trouxe uma outra parte: eram principalmente homens que faziam essa viajem, na sua maioria estadounidenses, para poderem dizer que tinham ido a um país que não era “recomendado”, com muito pouco respeito pelas pessoas nortecoreanas, tentando sistematicamente fazer tudo o que nós sabíamos que não deveríamos fazer.

 

Alexandra Alves Luis, Associação Mulheres sem Fronteiras

 

Qual é que foi a tua pior experiência? E a melhor?

Do ponto de vista da segurança tive muitas más experiências. Considero que as tive porque se calhar não cumpri aquelas regras todas que nos vão dizendo para cumprir. Mas enquanto pessoa que defende os direitos das mulheres acho que a coisa mais revoltante que acontece é não me deixarem entrar em sítios de acesso público por ser mulher. Tive um assalto grave com uma arma, mas acho que essas não são as coisas mais relevantes. Acho que a pior experiência que tive é eu querer ver um sítio e ficar cá fora só por ser mulher. Alguns desses sítios, do ponto de vista cultural, são muito importantes, são classificados como Património Universal e isso ainda me revolta mais. Como é que eu não posso entrar num monumento que é Património da Humanidade só por ser mulher? Parece que eu não pertenço à Humanidade.

A melhor experiência que tive em viagens foi a Antártida. Vai ser uma experiência difícil de igualar porque, apesar de existirem bases de vários países e de estarem pessoas presentes desses vários territórios, percebe-se o que é que é um território que não tem intervenção do ser humano, onde não há ruído, não há eletricidade e o que se vê na Natureza faz-nos pensar sobre muitas coisas. Perante aquela imensidão e aquele silêncio, a quantidade de pinguins, as baleias, os cheiros, tudo, só pensas “o que é que nós fizemos neste planeta!”.

 

Foi nas tuas viagens que descobriste a tua vertente feminista e ativista ou era algo que já borbulhava antes?

Sempre tive uma consciência dos direitos humanos, sempre fui uma pessoa que tentou lutar, pelo menos a nível familiar, mas era sempre um bocadinho vista como uma pessoa utópica. Senti assim como que uma certa dor, quando comecei a descobrir a violação de direitos que as mulheres, raparigas e meninas sofrem todos os dias, e pensei: “como é que eu precisei de tanto tempo para ter isto tão presente?”. Sempre fui feminista e sempre tomei decisões, mesmo a nível profissional, que tinham o feminismo como pano de fundo, mas não tinha qualquer tipo de consciência. Não conhecia, não conhecia os movimentos de luta das mulheres, não conhecia autoras fundamentais, existia todo um mundo que não conhecia. Essa porta abriu-se e tive a consciência de que a desigualdade não existe só à minha volta e em algumas coisas que vejo. É um cenário muito maior que esse e é um cenário em que nós, mulheres, estamos no centro dessas discriminações e dessa desigualdade, que obviamente que se intersecciona com outras. O facto de ter ido viajar foi fundamental para me aperceber. E quando fui para o Mestrado em Estudos sobre as Mulheres só pensava “mas como é que eu não sabia nada sobre isto?”. E isso deu-me uma força e disse para mim: “é isto, é por aqui que eu quero ir”.

Rapidamente essa dor inicial transformou-se numa energia: “Há tanto para fazer!”. Acabei por canalizar essa energia para algo em que tu acredito, que estava lá, mas adormecido, que não era consciente.

 

Qual dos projetos é que sentes que teve um impacto maior na tua vida e na vida de outros?

Existiu um projeto que me permitiu trabalhar com mulheres que estavam em contexto de casa-abrigo e também com pessoas que passaram pela prática da excisão. Penso que esse projeto, apesar de outras iniciativas em que paticipei, marcou-me bastante porque se interligou com outro projeto com a metodologia de Teatro do/a Oprimido/a. E o que é que nós fizemos? Por um lado, em relação às mulheres e às crianças que estiveram em contexto de casa-abrigo, o objetivo era estarmos juntas e falarmos sobre as questões que para elas eram relevantes. Foi muito importante não só nós partilharmos as nossas experiências, mas também percebermos que muitas vezes nós, mulheres, não temos esse espaço de diálogo e que essas mulheres, até chegarem ao contexto de casa-abrigo, estão muito isoladas. Construímos uma peça de teatro, totalmente feito pelo grupo, com essas mulheres que estavam em contexto de casa abrigo e apresentámos também a outras mulheres que também estavam no mesmo contexto. Esse foi um momento muito importante.

E depois o outro, sobre a excisão. Enquanto viajante, tenho o máximo respeito por tudo, não acho que deva ter algum tipo de interferência nas normas, sou muito cautelosa. E de alguma forma esse meu respeito fez com que eu não estivesse atenta que existia a excisão em vários países onde eu estive. De certeza que muitas das mulheres com quem eu falei tinham passado por essa prática. Acho que se tivesse a consciência de quais eram as implicações dessa prática eu já teria dedicado mais tempo a essa causa. Claramente, a partir dessa volta ao mundo, eu decidi que esta causa é a minha causa. Dou tudo o que eu tiver e faço o que puder para apoiar as mulheres, raparigas e meninas que estão na linha da frente desta luta. O facto de eu ter estado em escolas, em Portugal, onde conheci meninas que nunca tinham falado com ninguém sobre o trauma que a excisão lhes causou, rapazes que tinham irmãs afetadas, mudou a minha vida. Com a Margarida Cardoso acabámos de fazer um filme, “A tua voz”, que dá voz a 22 pessoas que em Portugal e na Guiné-Bissau são ativistas pelo fim da excisão. Com nove mulheres, criámos a Associação Mulheres sem Fronteiras, que entre outros objetivos, desenvolve atividades para prevenir e apoiar as sobreviventes das ditas práticas tradicionais nefastas, incluindo a excisão.

 

Alexandra Alves Luis, Associação Mulheres sem Fronteiras

 

Um dos mais recentes projetos em que estiveste envolvida, em conjunto com a realizadora Margarida Cardoso, foi na realização do documentário “Partir do Zero”, sobre vítimas de violência doméstica. Como é que surgiu esta ideia?

Nós mulheres, quando somos ouvidas, temos muito a dizer sobre as violências de que somos alvo. O problema é que muitas vezes ninguém nos ouve. Muito mais as mulheres que são sobreviventes de violência ou as mulheres que estão isoladas. E, de repente, há uma riqueza das partilhas e do que as pessoas querem dizer para que vejam que os seus direitos são reconhecidos. E foi um bocado por aí. Nós tínhamos uma verba para fazer um vídeo de sensibilização, e depois pensámos: “Não, eu acredito que vamos conseguir algo maior”. Contactámos muitas realizadoras, enviámos a informação sobre o que pretendíamos fazer e, nesse contacto, a Margarida Cardoso respondeu manifestando muito interesse pela ideia. Não falou de dinheiro, só dos prazos. Nós tínhamos pouquíssimo dinheiro e o que lhe pagámos nem sequer cobre, de maneira nenhuma, todo o seu trabalho. Acabou por ser muito intenso e marcante para ambas. Sempre que estamos juntas falamos destas mulheres. Por outro lado, foi também importante perceber como foi importante para aquelas mulheres sentir que a voz delas foi ouvida.

 

E continuas a contactar com essas mulheres?

Sim, sim. Algumas dessas mulheres pediram-me amizade no facebook. Eu também já não estou envolvida nesse projeto e elas já não estão em contexto de casa-abrigo, foi uma etapa que ficou para trás nas suas vida e sim, falamos. Há cerca de duas semanas, uma dessas mulheres, enviou-me uma mensagem pelo facebook para a ajudar a organizar uma atividade para o Dia das Mulheres. Estaremos ligadas para sempre.

 

Vives o ativismo numa forma prática e desenvolves os teus projetos para o mundo físico. Achas que hoje o ativismo feminista vive mais no virtual do que na rua? Ambos coexistem de forma harmoniosa?

O ativismo feminista acontece em muitas dimensões que, muitas vezes, não são visíveis e algumas delas até podem ser desvalorizadas. Falar com a minha vizinha, a minha colega, a minha amiga, de certas questões, convidar para aquele filme, tudo isso pode ser considerado ativismo. No entanto, é muito importante que nós mulheres ocupemos as ruas. Em Portugal,  vamos pouco para a rua exigir os nossos direitos e nós mulheres ainda vamos menos. Ainda há um grande estigma sobre o que é ir para a rua exigir direitos. Recordo-me que só depois da volta ao mundo e repensar o que queria da minha vida é que tomei consciência que nunca tinha ido ao desfile do 25 de Abril. Porque trabalhava numa empresa e era foleiro, sabia que as pessoas iam falar, comentar e inconscientemente não ia. Estamos preocupadas com o que pensam e sinto que há muitas mulheres que não vão às marchas, às manifestações porque há esta carga.

O virtual também é muito importante porque chegamos a outro tipo de pessoas. Há mulheres que, pela sua circunstância, podem estar mais isoladas.

Para mim é importante que se dê visibilidade às mulheres na luta das mulheres, nos feminismos. Todas as pessoas podem e devem apoiar as lutas das mulheres, mas têm que reconhecer o seu privilégio. Ou seja, os homens podem estar presentes, mas não deveriam encabeçar todas as manifestações, inclusive as convocadas por ongs de mulheres. Não serem sempre eles a serem entrevistados, não nos deixarem na categoria de objetos. É tempo de sermos sujeitos.

 

 

 Entrevista: Margarida Henrique | Fotos: Rebeka Dávid

Catarina Marcelino: “Sou feminista desde a barriga da minha mãe”

Na adolescência queria ser atriz, mas a vida trocou-lhe as voltas e foi a Antropologia que deu a Catarina Marcelino um olhar diferente no respeito para com o outro. Hoje é Secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade e é para assegurar os direitos sociais que trabalha todos os dias.

 

 

A Catarina é da península Setúbal, um distrito onde as mulheres têm tido destaque no panorama político. Isso influenciou de alguma forma o seu percurso?

Eu acho que sim. Acho que me marcou, sendo a minha família toda daquela região, julgo que houve sempre um sentimento do que é a justiça social, do que é a igualdade. Politicamente também é verdade que é um território onde houve sempre muitas mulheres a participar ativamente na política. É curioso perceber que a primeira mulher governadora civil de Portugal foi do distrito de Setúbal, na década de 80 e era do Partido Social-Democrata. Nem sequer é uma questão marcadamente de um partido porque há, de facto, uma participação feminina muito forte em todos os partidos no distrito de Setúbal. Evidentemente que isso me marcou na minha vida política.

 

As questões da igualdade de género sempre foram uma bandeira sua?

Sim, eu digo sempre que sou feminista desde a barriga da minha mãe. A minha mãe é feminista e, portanto, sempre fui educada naquilo que são as questões do feminismo, as questões da igualdade e os direitos das Mulheres. Eu lembro-me, em criança, da minha mãe comprar a revista do MDM [Movimento Democrático de Mulheres]. A revista da CIG era uma revista que eu recebia em casa. Portanto, sempre tive uma forte ligação às questões da igualdade e direitos das mulheres. A minha mãe participou nos movimentos das Mulheres e trabalhou diretamente com a Maria de Lourdes Pintasilgo e foi mandatária da candidatura da Maria de Lourdes no Montijo.

 

E chegou a conhecer a Maria de Lourdes Pintasilgo?

Conheci-a em criança, lembro-me bem de ir com a minha mãe aos encontros e às reuniões e de estar a Maria de Lourdes Pintasilgo e a Teresa Santa Clara Gomes. Lembro-me da campanha para as presidenciais. Eu tinha 16 anos, ainda não votava, mas lembro-me perfeitamente. E lembro-me, na minha vida profissional já, na Câmara do Montijo, de termos organizado uma audição pública com o Graal sobre conciliação da vida familiar e da vida profissional e da Maria de Lourdes ter ido abrir a audição. Foi muito engraçado porque as pessoas dirigiam-se muito formalmente à Maria de Lourdes Pintasilgo e eu, quando me dirigi, disse: “Olá, eu sou a Catarina. Sou filha da Maria Aurélia”. E ela deu-me um abraço e ficou toda a gente espantada. Ela era uma pessoa por quem se tinha um respeito grande. Tive esse privilégio.

Acho que a Maria de Lourdes é um exemplo daquilo que acontece às mulheres na História. A Maria de Lourdes Pintasilgo não tem tido um lugar na história nem o reconhecimento público que devia. Foi uma grande primeira-ministra, fez um trabalho muito importante em prol do país. Não só porque foi a primeira mulher a candidatar-se à Presidência da República, na década de 80 – que só voltou a acontecer nas de 2015, em que tivemos duas candidatas-, mas porque foi uma mulher que viu sempre à frente do tempo. Aliás, os textos dela são de uma atualidade espantosa. E foi uma mulher que, quer em Portugal, quer nas Nações Unidas, fez um trabalho extraordinário em prol dos direitos sociais e direitos das Mulheres, mas em Portugal em particular. Se tivemos uma Comissão da Condição Feminina, que hoje é a CIG, foi porque houve uma Maria de Lourdes Pintasilgo que se empenhou a estudar a condição das mulheres em Portugal. A História tem que lhe dar o devido valor e tem que a repor no espaço que lhe é justo.

 

A Catarina formou-se em Antropologia. O que é que a levou a seguir essa área?

Quando acabei o 12º ano eu queria ir para o conservatório e ser atriz. Fiz as provas, mas não entrei e fiquei perdida porque aquela era a minha única opção.  Nessa altura eu fazia parte do Movimento Nacional de Estudantes e nesse âmbito fui a um encontro no Equador. E, de facto, o contacto com as comunidades indígenas no Equador fez-me pensar que estudar culturas diferentes e povos diferentes seria interessante. Como dizia um professor meu: “Não é um curso que nos torna antropólogos ou antropólogas – porque temos que ir para o terreno e fazer trabalho de campo -, mas que é um curso que nos dá uma perspetiva diferente do mundo, uma maior abertura a aceitar a diferença”. E eu acho que desse ponto de vista tem sido de uma utilidade extraordinária ao longo da minha vida profissional: a capacidade de perceber aqueles que são diferentes de nós e tentar olhar da forma menos preconceituosa.

 

Catarina Marcelino, Secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade

 

A Catarina foi responsável pelo Espaço Informação Mulheres da Câmara do Montijo ainda antes da violência doméstica passar a ser um crime público, em 2000. Desde essa altura houve um decréscimo dos crimes de violência doméstica em relação à violência no namoro. O que é que está a falhar?

Esse serviço de atendimento especializou-se na área da violência doméstica porque a maior parte das mulheres que nos procuravam, faziam-no por violência. De facto era uma época em que era tudo muito mais difícil porque as forças de segurança, muitas vezes, não aceitavam as queixas – e nós tínhamos que ir com as mulheres apresentar as queixas-, não havia uma linha de emergência para onde ligar quando nos surgia uma situação, as casas-abrigo eram praticamente inexistentes. Felizmente os últimos 17 anos têm sido extraordinários na forma como a situação evoluiu em Portugal e há mais queixas exatamente porque as pessoas se sentem mais seguras a pedir ajuda e isso é um bom indicador, não quer dizer que haja mais violência.

Quanto à violência no namoro, eu digo sempre que as pessoas não são agressores e vítimas porque um dia, aos 40 anos, acordaram e eram assim. Há um percurso de vida e de experiências que se iniciam, muitas vezes, em casa, quando são crianças ou quando começam a ter relações de intimidade. E, portanto, a violência no namoro é uma área na qual temos de trabalhar mais e ser mais atuantes. Se formos mais atuantes na violência no namoro, provavelmente diminuiremos o número de casos nas pessoas adultas. Estamos muito empenhados nisso e temos trabalhado ao nível das universidades, e com as associações académicas, com a campanha que lançámos este ano “Muda de Curso. A Violência Não É Para Ti”, que acho que teve um efeito extraordinário e este tema despertou nas universidades. Temos que apostar numa forma mais estruturada na educação, e estamos a trabalhar com o Ministério da Educação no âmbito da cidadania e com as ONGs – que é um know how que não se deve perder-. Os direitos humanos, a igualdade de género, as questões ambientais e da cidadania formal fazem parte daquilo que será uma estratégia para a educação da cidadania que estamos a desenhar e que em breve será conhecida.

 

A lei da paridade veio estabelecer um objetivo de 33% de representação mínima para cada um dos sexos. Porque não os 50%?

Acho que nessa matéria temos que ser muito realistas. Temos uma lei há 10 anos, do ponto de vista da representação da política, que foi aprovada em 2006. Só agora, nas eleições de 2015, é que conseguimos ter uma representação de 34%. Este caminho está a ser feito. Quando falo de paridade não gosto de falar de 50 – 50, gosto de falar de 40 – 60 por uma razão simples: em termos de listas falamos de números ímpares. Se o diploma disser que o limiar da paridade são 40% do sexo sub-representado já estamos a entrar no limiar da paridade absoluta. É para esta lógica que devemos trabalhar. Mas acho que temos que consolidar a lei que temos atualmente. E, de facto, só agora é que atingimos os 34% no parlamento. Ao nível das autarquias os números são muito mais baixos: temos 26% de Mulheres em cargos de vereação e, em termos das presidentes de câmara, os números são abaixo dos 10%. O que nos tem que fazer refletir e trabalhar mais em prol de conseguir atingir o objetivo da lei atual. Isto não significa que não devemos trabalhar para os 40%. Mas acho que neste momento, o que a realidade nos demonstra é que a lei não está suficientemente consolidada para o objetivo a que nos propusemos.

 

Catarina Marcelino, Secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade

 

Para além das questões relacionadas com os Direitos das Mulheres, a Catarina foi coautora da proposta para criar o Dia Nacional contra a Homofobia e Transfobia. Sente que foi uma batalha difícil de travar?

A proposta do dia é uma questão simbólica e eu tenho muito orgulho em tê-la assinado. São temas que precisam de ter um dia para chamar a atenção sobre eles, ao nível do que são os direitos fundamentais e sociais. Estes dias existem porque há ainda muita desigualdade na sociedade e portanto criamos estes dias, como o 8 de Março ou o 25 de Novembro. De facto, as questões LGBTI ainda precisam de ser muito trabalhadas, o que não significa que não tenhamos em Portugal um avanço bastante rápido e bastante positivo nestas matérias. De 2004 para cá, desde que a questão da orientação sexual foi introduzida na Constituição, conseguimos avanços fantásticos. Somos um país onde duas pessoas do mesmo sexo podem casar, onde a questão da discriminação e dos crimes de ódio contra pessoas LGTBI estão no código penal, onde a adoção é permitida, onde finalmente a procriação medicamente assistida foi aberta a todas as mulheres independentemente da sua orientação sexual ou de serem solteiras, temos uma lei sobre a identidade de género – que em 2009 era a mais avançada do mundo e que hoje já foi ultrapassada por Malta ou pela Dinamarca, mas que hoje estamos a rever o diploma para integrar novas áreas de conhecimento e evolução nestas matérias, nomeadamente no que diz respeito às pessoas transgénero e intersexo. Do ponto de vista social temos de fazer muito mais, mas estamos a trabalhar fortemente nessa matéria: abrimos os primeiros gabinetes para vítimas de violência da comunidade LGBTI, um deles virado para pessoas jovens.

Falta sobretudo que a sociedade seja menos discriminatória e que aceite mudar estas questões. E são todas questões culturais, que precisam de muito trabalho e com olhar para o território. Porque Lisboa e Porto não são o país. Temos que conseguir, quer do ponto de vista da educação e formação, quer do ponto de vista da capacitação da comunidade a ter repostas e a ter espaços para pessoas LGBTI, sair dos grandes centros urbanos e ir mais longe. E esse é um trabalho que não é fácil porque não depende só da vontade do governo, mas também do local e das instituições que queiram abrir as suas portas. É uma área que ainda tem muito caminho a fazer, do ponto de vista daquilo que é a perceção da sociedade em aceitar as pessoas.

Estamos no século XXI e ainda continuamos a ter muita desigualdade entre homens e mulheres. Dos países que mais progressos fizeram nessas matérias, continuamos a ter desigualdades estruturais iguais às que tínhamos no século XX. E isto para mim choca-me. Choca-me enquanto democrata, enquanto feminista. As coisas só são diferentes porque a tecnologia e a ciência ajudaram muito, porque há uma máquina de lavar a roupa que fez toda a diferença e que permitiu que as mulheres se libertassem mais, e a pilula que veio dar a capacidade de controlo sobre a reprodução. Mas continuamos a ter desigualdade salarial, a não ter acesso ao poder e aos lugares de decisão, continuamos a ser mais vítimas de violência doméstica. Há um conjunto de matérias que se formos ver o que é que, no princípio do século XX, estruturalmente está na base da discriminação, essas são as mesmas questões. Estamos no século XXI e temos de ter a capacidade de dar o salto. Esse é o desafio enorme que temos pela frente, para o qual lutamos e trabalhamos em conjunto.

 

 

Entrevista: Margarida Henrique | Fotos: Rebeka Dávid