Alexandra Santos: “O meu feminismo é um que pensa em minorias de género não como de ponta de icebergue mas como icebergue inteiro”

Alexandra Santos, Queering styleAos 30 anos – apesar de não aparentar -, Alexandra Santos destaca-se na cena ativista como a fundadora do Queering Style e parte do coletivo de auto-defesa transfeminista e da Lóbula. Descreve-se como sendo trigémea, filha de mãe negra e pai branco, que nasceu no Algarve e mora em Lisboa há 10 anos.

 

 

 

Fala-me um bocadinho sobre ti.

Eu sou uma pessoa que vai fazer quase 30 anos e que não o parece, que é trigémea, que vem do Algarve e que mora em Lisboa há já 10 anos. Os meus pais têm uma pastelaria, e eu acabei como feminista. Portanto é assim uma viagem. Mas se tivesse que me descrever era um bocadinho isto. Sou filha de mãe negra e pai branco: a minha mãe é cabo verdiana e o meu pai português. Neste momento sou a principal editora do Queering Style, assim como a pessoa que o construiu, que o pensou. Para além disso faço parte de um coletivo que é a Lóbula, de um coletivo de auto-defesa transfeminista e já tentei muitas vezes fazer parte de grupos de feminismos negros, mas com alguma dificuldade. Assim como fazer parte de qualquer tipo de instituição feminista que já esteja muito montada, pensada. Para além disso fiz muitos anos de voluntariado na Rede Ex-Aequo e também já fiz voluntariado na ILGA. Sou assistente social de profissão e pronto, assim brevemente é isto.

 

Gostava de trazer um pouco ao de cima a questão da história única que por vezes parece que se levanta em vários movimentos sociais, pela qual existem expectativas e caixinhas tão bem definidas que é muito fácil acabar por ficar fora delas. Não sei se já sentiste isto…

Eu sinto mais o contrário, para dizer a verdade. Existe uma caixa que é o feminismo e toda a gente te tenta enfiar nessa caixa. E tudo o que é fora disso já não é feminismo, mas nem sequer é outra coisa, só não é feminismo. Eu vejo exatamente o contrário. Sinto que o feminismo que se pratica hoje em dia – ou que a maior parte das pessoas pratica – é um feminismo em que te alimentas de redes sociais: não vais perceber de onde é que ele vem, quem é que falou nele, quem é que o começou, como é que hoje estamos onde estamos. O feminismo acaba por ser sempre um bocadinho isto: “As mulheres têm os mesmos direitos que os homens”. E logo à partida estamos a descurar uma quantidade de realidades. Muitas vezes ser feminista não é ser uma coisa boa, não é ser uma coisa simpática. É exatamente estar disponível a ser disruptiva, a ser crítica, mesmo quando tens um grupo de pessoas que te está a dizer que aquilo que dizes não é certo.

Aquilo que nós estamos a dizer é que a desconstrução de género não tem necessariamente que vir combater os direitos das mulheres. É mais uma ramificação, é mais uma camada e é mais uma identidade. Aquilo que eu não gosto são as pessoas que se dizem feministas e não têm práticas feministas. Isto para mim é completamente impraticável.

 

Falaste sobre algumas questões com as quais o movimento feminista em Portugal ainda se depara. Sentes que existe alguma tensão entre o que se chama agora, de forma muito lata, uma segunda vaga feminista e um feminismo mais queer?

Acredito que tem mais a ver com uma complexificação de categorias do que com o seu desaparecimento. Para mim o importante não é a igualdade de género, é a liberdade de género, que é uma coisa completamente diferente, e a anos-luz do que se reivindica na segunda vaga. Para mim é perfeitamente legítimo que uma pessoa se identifique enquanto mulher na categoria de pessoa feminina, na categoria de pessoa que tem tudo aquilo que é um feminino tradicional, digamos assim. Depois, há também a possibilidade de seres uma mulher trans, não feminina, bastante butch, lésbica e tanto mais. Há a possibilidade de tu seres uma mulher não binária que gosta dos seus seios mas não gosta da sua vagina, ou o contrário. Portanto, a complexificação disto, e também o jogar um bocadinho com o que é a corporalidade de um género, para mim faz-me muito sentido. Por exemplo, sobre a IVG: quando se diz “A IVG para todas as mulheres”. Não. Para todas as pessoas que têm um ovário que funciona, ponto! Porque há mulheres que têm todas as partes biológicas de uma mulher e que se identificam com o género no feminino que entretanto deixaram de ter ovários, deixaram de ter partes, e a quem a IVG não diz nada. Ainda no outro dia foi o dia mundial para a erradicação da MGF. Uma pessoa que passe por esse ritual muitas vezes não pode ter filhos. E tem um ovário e é uma mulher, na construção cis da coisa. Outras coisas que acontecem imenso: há uma marcha de luta contra a violência contra as mulheres, e em momento nenhum no manifesto se lembram das mulheres trans, que são 10 vezes mais vítimas de violência face às mulheres cis. Nunca, em momento nenhum, se fala em mulheres como cis e mulheres trans. E são experiências completamente diferentes. E todos estes reconhecimentos apagam e fazem delete numa quantidade de coisas. Esquecem-se também, por exemplo, que há uma quantidade de homens, de pessoas que se identificam com o género masculino, que têm ovários e que engravidam, que têm filhos.

 

Alexandra Santos, Queering Style

 

Ainda há muita transfobia…

E é por isso que para mim todas estas coisas são importantes de desconstruir. Não por eu, as pessoas transfeministas ou as pessoas não binárias terem um problema com a categoria de mulher, ou com os binarismos de géneros. Porque é perfeitamente legítimo que uma pessoa se identifique com estas categorias. Aliás, nós dizemos que muitas vezes na experiência de pessoas trans o objetivo é precisamente este. É serem reconhecidas enquanto pessoas de determinado género.

 

Portanto não se quer destruir o género, quer-se mesmo libertá-lo?

Precisamente, a questão é essa. E eu acho que não há lutas novas que façam com que as lutas antigas deixem de existir. Elas podem ser todas companheiras.

 

E como é que isso se faz na prática?

Na minha óptica não se podem silenciar opiniões, não se podem silenciar pessoas. Ativistas que estão no ativo há 20 anos não podem dizer que as ativistas jovens não sabem o que é a luta. As lutas não se ficaram pelo 25 de abril, nem as liberdades. E não estamos a falar só de questões de igualdade no trabalho, não estamos a falar só de igualdade. Estamos a falar de uma quantidade de outras questões, de outros tipos de violência e uma quantidade de coisas que acontecem que estes feminismos mainstream parece que não tocam, nem sequer lhes passa pela cabeça. Quem está um bocadinho fora disto tenta incutir um bocadinho estas ideias, estas ideologias das formas de estar e de pensar, mas ao mesmo tempo é preciso estar-se muito preparada e com muito boas ferramentas para quando te questionam tu poderes responder. E aqui a minha posição é sempre muito interseccional, porque tens uma pessoa que é uma mulher mas que se identifica com uma expressão de género mais masculina, que é lésbica mas que ao mesmo tempo é queer… Isto tudo professa um feminismo trans! Isto é tudo muito complicado de se juntar.

 

Mencionaste há pouco o feminismo negro. Como tem sido a tua experiência?

A minha história com coletivos de mulheres negras: às vezes é muito difícil para mim identificar-me com o discurso dos coletivos de mulheres negras. Porquê? Porque eu não me identifico como uma mulher feminina. Portanto, se eu não sou uma mulher feminina há muitas coisas que preocupam a mulher feminina que não me preocupam, ou que me preocupam de uma maneira diferente. Ou pelo menos que eu construo de maneira diferente. E eu não tenho lugar, não há um lugar para o meu discurso. Outra questão: eu não sou uma mulher negra escura, sou uma mulher negra clara que vem de uma miscigenação. O que é que acontece? Eu sei, porque tenho esta consciência, que a minha negritude (ou a minha não negritude) vem do facto de que o povo de onde a minha mãe é originária ter sido vítima de escravatura, de as mulheres terem sido estupradas, o que levou a que eu tivesse uma cor de pele mais clara. Eu tenho consciência disto, tenho consciência do meu privilégio, do privilégio da minha branquitude. Mas num coletivo de mulheres negras isto não salta à vista. Então muitas vezes perguntam-me: “Então mas tu és uma mulher negra? Como assim?”. Portanto há todo um preconceito, há todo um assumir de uma quantidade de coisas. Eu, por exemplo, tenho a experiência de ter uma consciência maior de negritude do que muitas mulheres mais negras, mais escuras do que eu. Isto porquê? Porque eu tenho um trabalho de construção feito, de leituras, de consciencialização, de pensar na história e etc. que me fazem ter consciência disto. Eu não acho que sou mais vítima de racismo, porque não é verdade. Obviamente que uma mulher mais escura que eu tem impresso no seu corpo uma quantidade de sinais e de pontos que eu não tenho, e obviamente que é mais discriminada do que eu. Agora, a consciência disso…

 

Quando existe um movimento LGBT e quando existe um movimento feminista veêm-se homens no movimento LGBT e heterosexuais no movimento feminista. E às vezes uma pessoa sente-se um bocado aos saltinhos entre um e outro sem saber muito bem o que fazer. O que é que tu sentes sobre isto?

Eu acho que o movimento LGBT é feito por homens brancos, gays e cis, e há uma cultura de estética, de estilo até, que é muito específica. E um discurso muito específico de, lá está, homem branco, cis, normativo. Agora, se tu fores um homem negro, não binário – portanto afeminado – com uma ruptura com a família, que vai contra a norma (que se calhar é trabalhador do sexo, se calhar toma drogas) pelo rumo da tua vida, não pertences a este movimento. Porque o teu problema não é ter bebés, o teu problema não é casar: o teu problema é sobreviver. No movimento LGBT pensa-se que se quer ser igual a toda a gente, e quando se quer a normalização ficamos mesmo iguais aos outros. Esta ideia de “vamo-nos inserir” não dá lugar à diferença. Depois tens a questão dos feminismos, que lá está, foram muito feitos por quem? Mulheres cis, brancas, classe média, que tinham uma coisa em mente: direitos de trabalho. Quem é que eram estas pessoas e quem é que poderia ter visibilidade em relação a isto? Eram as mulheres brancas, porque as mulheres negras eram as escravas. E quando as feministas brancas são chamadas à atenção por causa disto ficam muito à defesa: dizem que abriram as portas e que são as mais inclusivas. O que eu não aceito é que feministas brancas me venham dizer que dão voz às feministas negras, quando a verdade é que nós não tivemos voz porque elas não nos deixaram. Nós continuamos a lutar por coisas que se calhar muitas das feministas nem sequer pensam. Quando tu vais a uma reunião de mulheres negras feministas elas pensam “Então e o trabalho doméstico digno?”, porque a experiência que temos enquanto mulheres negras, e o que vemos das nossas mães, é trabalhar em casa dos outros em trabalhos precários, duas horas por semana, porque não tiveram direito à educação, à escola… Eu acho que nós temos uma responsabilidade, que é relembrar as pessoas da nossa história, de fazer com que a nossa história sejam história. E eu acho que não é dizer que fomos vítimas disto e daquilo que é uma vitimização, é trazer à luz uma história que nós nem tivemos direito a ter. E então eu acho que temos o direito de falar sobre isto, e de tomar palavra em relação a esta história, e de falar sim de escravidão, falar sim de racismo e de falar sim destes preconceitos e etc., porque estes preconceitos fazem com que nós estejamos onde estamos. Mas no fim, quando inseres em ti muitas intersecções, muito dificilmente existirá um espaço para ti. A não ser que seja um espaço que seja verdadeiramente interseccional. E não é que se diga interseccional, mas sim que existam pessoas que vivam estas mesmas interseccionalidades. E por isto é que eu criei o Queering Style.

 

E era sobre isso que eu gostava de falar agora! Fala-me um pouco sobre o Queering Style.

O Queering Style foi um sítio que precisei de criar porque não havia mais nada. E na altura eu nem sequer me podia dizer tão conhecedora destas minhas intersecções todas. Na altura também estava um bocadinho a tentar descobrir, a tentar perceber… E foi muito através do estilo, através do facto de ter uma expressão de género que é mais andrógina – não lhe posso chamar masculina porque as pessoas não me conferem essa masculinidade. Adoro quando digo às pessoas que toda a roupa que tenho vestida é de rapaz ou de homem, e as pessoas ficam a olhar para mim do género “Não! Mas tu és tão feminina!”.

 

E o que é que costumas responder a isso?

Normalmente a resposta a seguir é “Mas eu não faço para não ser feminina”. E as pessoas desconstroem logo. “Mas espera! Então quando vestes roupas de homem não significa que queiras ser masculina!”, e eu respondo que não naquele sentido que se acha que  masculinidade tem: machista, de assertividade… Mas eu também sou assertiva! É nesta linha que começa o Queering Style. Eu comecei o Queering depois de estar há uns 6 meses a fazer um mestrado em Género, Sexualidade e Teoria Queer no Reino Unido, em Leeds. Desenvolvi uma tese sobre serviço social com jovens LGBTQ em Portugal, em que basicamente estive a entrevistar focus groups e etc. com assistentes sociais sobre estas questões: quais eram as práticas que tinham com pessoas LGBT, que recursos é que conheciam, etc.. Tudo isto também numa tentativa de desconstruir uma quantidade de discursos sexistas, misóginos, transfóbicos. E depois, enquanto estava a fazer isto, tinha uma colega que me perguntou se eu nunca tinha pensado em fazer um blog. E mostra-me o Tumblr. Através do Tumblr começo a conhecer e a ver imensas pessoas que publicam que têm vários estilos, e pensei “Bora lá!”. Estava num processo de me descobrir e perceber que não fazia mal ser mais masculina – com todas as aspas que isso possa ter – ou menos normativa. E então foi giro porque entretanto comecei a ter bastantes pessoas que realmente gostavam de seguir o meu blog. E as coisas devagarinho, desde que eu me desdobre em três, vão-se conseguindo fazer. Mas pronto, o Queering Style é exatamente o sítio que eu não encontro em lado nenhum.

 

Em que sentido?

No sentido de ter uma prática feminista: toda e cada pessoa pode colaborar vendo o seu nome associado, direitos de autor explícitos, com todo o tipo de privilégio enquanto pessoas que estão a dar o seu contributo e etc.. Depois é um sítio que não só não é transfóbico como celebra tudo o que é transgredir género, o que é completamente diferente. Não é dizer que não somos transfóbicos, é sermos transpositivos, se é que se pode dizer assim. A ideia é celebrar a diferença, e que a tua expressão é lindíssima. E o Queering Style é isto, dá-me um gozo tremendo e é muito bom. E é saber que te legitimas, e que legitimas pessoas que se identificam como tu e que se podem identificar contigo e tu com elas. Porque é que eu também acho que há problemas em ser mainstream, ou em chegar ao mainstream, a milhentos seguidores? É que depois não se separa trigo de joio. Entretanto tens pessoas que não compreendem o que estás a dizer constantemente a deitar-te abaixo porque não entendem.

 

Muitas vezes existe dentro de alguns movimentos um tipo de discurso e um tipo de postura, se quisermos chamar assim, que pode por vezes acabar num ponto mais alienatório do que convidativo. O que é que sentes quanto a isso?

As pessoas fazem isto exatamente para criarem espaços seguros. Aquilo que vês como um ataque é uma segurança para estas pessoas. Porque o que estás a fazer – se calhar não notas – é atacar outra pessoa que esteja na sala.

 

Alexandra Santos, Queering Style

 

E como é que uma pessoa pode dar alguma coisa a algum movimento? Como é que pode ser uma aliada?

Escuta. Escuta e aprende. Porquê? Se estás a entrar num espaço seguro para aquelas pessoas que imagina que são trans, e tu não és trans, então não falas, é simples. Não roubas espaços de fala. E depois questionas-te. Ou questionas alguém que sabes que não vais ferir. Não atiras a questão de qualquer forma. Porque estas pessoas estão constantemente a responder a perguntas, a terem de se defender. Nós somos silenciadas, constantemente jogadas para a margem. Isso também leva a raiva. Isso também leva a que tu muitas vezes entres de frente, percebes? E as pessoas queer que mais entram em confronto com a norma e mais transgridem a norma, ninguém faz ideias das lutas diárias que têm com a família, das condições monetárias, socioeconómicas… Nós vemos a pessoa ali: tem um determinado estilo, uma determinada estética e pensamos “uau, isto é muito giro!”, mas nós não fazemos ideia…

 

Porque é que não queres acabar com o género?

Porque eu acho que a identidade é uma coisa muito importante, e tu poderes identificar-te enquanto determinada coisa é muito importante para ti enquanto pessoa, enquanto fazendo parte de algo. O não-binarismo não existe se não existir o binarismo. E às vezes eu acho interessante como as pessoas se esquecem um bocadinho disto e jogam assim para a mesa: “Não, nós queremos acabar com o género!”. Mas e então o que é que haveria? Como é que te identificarias? Isso já é teoria queer pura e dura. Mas em relação ao Queer, eu acho que muitas vezes perdemos um bocadinho – e nós muitas vezes temos essa discussão na Lóbula – a ideia de que não podemos ser só um movimento estético, temos de ser também um movimento político. E político não é partidário, é com engajamento político, com uma opinião, com uma posição acerca das coisas. E para mim é sempre questionar alguma coisa. Isto aparece-te assim, não é? Porquê? Porque é que isto me aparece assim? Porque é que existem estas diferenças de género? Lá está. E a partir do momento em que pões as questões assim nem tens de ler nada. Tu podes ver. Podes encontrar as questões na própria sociedade, podes desconstruí-las através de exemplos da própria sociedade. E por isso é que isto é uma coisa que é tão acessível a toda gente, porque toda a gente vive género.

 

Se conseguisses fazer uma lista de três pontos das coisas mais importantes para alguém que está numa posição de poder (neste caso de poder político) para estas pessoas serem feministas. Algo como um guião prático para as pessoas que estão no Estado, na política…

Três coisas. Primeira: conhece a tua comunidade. Ou seja, quando chegas a uma posição de poder podes acomodar-te muito facilmente e deixar de conhecer a comunidade, as pessoas, as coisas… É ires aos eventos, é falares com as pessoas, é tentares entender. Porquê? Porque depois não vai ser só uma questão de tu decidires porque a tua cor politica diz que provavelmente é melhor tu dizeres que sim àquilo ou que não àquilo. Segunda: reconhecer privilégio. Sempre. É saber de onde é que vens e como é que isso influencia a tua óptica do mundo. Todos nós temos privilégio. E as relações de poder acontecem mediante os diferentes contextos. Tu num determinado contexto tens uma relação de poder, tens um determinado privilégio, noutro contexto tens outro. E isto também é importante. Tu em casa és vítima de violência doméstica e fora de casa és a Presidente do banco, tens uma posição de privilégio. São contextos diferentes, e privilégios diferentes. E a terceira coisa: se tu queres desenvolver empatia tens que te pôr no lugar do outro. E como é que tu fazes isso? Primeiro, se já sabes de onde é que vens, aquilo que o outro tem para te dizer, para te ensinar, já não é um ataque, já não é um questionamento. Passa a ser potencialidade, construção, ponte. É tu dizeres “OK, eu venho daqui mas eu entendo aquilo que estás a dizer, portanto bora construir”. Só que isto não se faz. As pessoas têm muita dificuldade em fazer isto, mesmo em contextos feministas.

 

E o que é que falta fazer?

Muitas coisas. É muito difícil, porque eu acho que o poder é uma coisa muito cíclica, no sentido em que é circular e auto-reprodutor. Tu nasces numa família com poder, tens acesso aos melhores estudos, entras no poder, vais ter um cargo de poder. E assim sucessivamente. Porquê? Porque tens acesso. Então desconstruir isto é muito difícil. Mas começamos com políticas de imigração. Políticas que não vejam o imigrante como inferior. Mas é muito difícil porque somos um país de colonos, e então fazer pontes e abrir portas sem achar que quem vem entrar é inferior a nós é muito difícil. Porque nós “descobrimos”, obviamente. Nós não descobrimos nada, aquilo já existia e já lá estavam pessoas a viver. Nós açambarcámos. Enquanto não houver esta consciência não há hipótese. E depois o saudosismo e todas essas coisas estão depois embrenhadas dentro da nossa ideia de estar no mundo, de fazer poder, de fazer política. Questões como leis da nacionalidade. Nós temos miúdos que nasceram em Portugal que não têm documentação. Eles não existem. Mas estudam no sistema nacional português. Como é que um miúdo anda na escola e não tem documentos? Começamos por aí. Depois, se formos falar em questões de género, começarmos a olhar para as diferentes formas de viver género, e começarmos a chamar as coisas pelos nomes: existem pessoas Cis e existem pessoas Trans. Criamos políticas para pessoas Cis e estamos a invisibilisar pessoas Trans. E é isto.

 

O que é que fizeste nos últimos tempos que te deu mais esperança, em que pensaste “Isto talvez funcione, nós ativistas do mundo talvez nos consigamos entender”?

Eu acho que todos os dias tentamos fazer isso. Está-se por exemplo a organizar uma marcha para o dia 8 de março, uma coisa super orgânica, com uma quantidade de coletivos que se junta para perceber como é que as coisas funcionam. E esse tipo de coisas dá-me muito ânimo. Porque estava lá imensa gente, foi muito bom. E depois é assim, agora todas as semanas o pessoal se tem organizado e tem ido… Vieram-nos dizer que foi a conversa com mais pessoas que existiu. Para mim, o ano passado, aquela manifestação que aconteceu, a do Por Todas Nós, foi brilhante, foi mesmo um “Eu não acredito que isto aconteceu, que eu pude estar a organizar isto”. E neste momento, fazer parte desta vaga destas coisas que estão a acontecer é muito bom. A marcha do Trump também foi super orgânica, que se organizou em duas semanas. E é isto, é ver a sociedade civil a organizar-se porque achamos que realmente temos uma palavra a dar, e não estás porque tens que estar, porque o teu partido ou porque a tua instituição asism o diz. Não, estás porque genuinamente queres estar. E isto para mim é brutal.

 

 

Entrevista: Inês Fernandes | Fotos: Rebeka Dávid

 

Teresa Guerra: “Para uma mulher subir na carreira tem de fazer e saber o triplo sem lhe permitirem metade das asneiras”

Teresa GuerraNasce a 22 de Março de 1929 no Porto mas sente-se transmontana pela infância feliz que passou em Moncorvo. Nunca se casou nem teve filhos, por opção, mas ajudou a trazer centenas de crianças ao mundo. Diz que o casamento é algo muito exigente e, por isso, nunca teve paciência para ter um companheiro. Ao aproximar-se de fazer 88 anos diz quer estar próxima das pessoas de quem gosta e conviver.

 

 

Como foi ser jovem na época da sua juventude?

O caminho foi um bocadinho difícil, particularmente nos caso das mulheres, que tiveram de lutar para ter o espaço que não nos era dado. A época em que eu nasci não foi má porque tínhamos muito para conquistar e nós mulheres fomos fazendo-o aos bocados. Agora a verdade é que já tinha havido muitas outras mulheres que tinham lutado mas sem conseguir o que queriam. A minha vida toda passou-se na conquista de um lugar que nos era negado. E não falamos aqui de concorrência, falamos de espaço que era nosso por direito, pelo nosso trabalho. A propósito disso tive um episódio engraçado: eu era muito nova, formei-me com 23 anos, e nesses primeiros anos lembro-me de estar a assistir a um parto onde a coisa se complicou e tive de dar indicação para cesariana. Na altura estava na Lapa e tínhamos de avisar uma irmã quando fosse necessário esse tipo de procedimentos, para que se preparasse a sala de operação. E quando lhe comuniquei, o que ela me perguntou de imediato foi quem viria operar. E eu respondi: Olhe se não se importa vou ser eu, quem vai anestesiar é também uma Sra. Doutora, quem vai ajudar é outra e a parteira, também mulher. E depois ela lá deixou e eu disse: Vou-lhe fazer uma pergunta, se com esta idade que tenho fosse um homem, a irmã tinha feito essa pergunta? E ela respondeu que não.

Ou seja se eu fosse um homem e fosse lá dizer que era uma cesariana ela não perguntava quem ia operar, agora eu, por ser mulher, ela achava que vinha alguém, que não eu, tirar o menino. Isto em 1960 e pouco.

 

Para si quais foram as maiores conquistas das mulheres?

Para mim, para conquistar espaço muito da independência económica. E uma coisa muito importante foi realmente a mulher conseguir entrar no mercado de trabalho e conseguir subsistir e, portanto, serem aceites e concorrermos no mercado de trabalho foi uma conquista. É verdade que ainda não foi de todo, até porque ainda precisamos das quotas, que à primeira vista são um bocadinho…chocantes. Mas também se não for assim, não avançamos. Tem de haver quotas para que, depois do espaço aberto, consigamos nós conquistar as coisas. Se assim não for, os homem tomam conta de tudo e nós perdemos a batalha. Eu tive problemas muito sérios porque fui chefe de serviço e de início não o era para ser porque queriam que fosse um colega que estava atrás de mim. Para uma mulher subir na carreira tínhamos de fazer e saber o triplo sem nos permitirem metade das asneiras.

 

E como chegou à área da genecologia e obstetrícia?

Primeiro tenho que dizer porque quis ser médica. Quando eu tinha uns 10 ou 11 anos tive um mote de escrita: Se tivesse o futuro nas mãos o que queria ser? Ao que eu respondi que seria médica. Isto porque o meu pai era médico, o meu avó era médico, o meu tio avó era médico… Havia muitos médicos na família. Então eu achava que as pessoas que me rodeavam como médicos, tinham prestígio. E eu queria ser importante.

Por outro lado o meu pai fazia questão que tirássemos um curso. Nós vivíamos numa aldeia muito pequena, e nesses sítios quando se é qualquer coisa é-se rico. Então o meu pai dizia: Vocês não são ricos porque se eu levasse a família toda a comer ao Maxime, em Paris, gastávamos o dinheiro todo, portanto, vocês têm de estudar. E dizia isto porque numa aldeia pequena com um pai médico, naquela altura, e uma avó senhora da aldeia, se não fossemos contrariados podia-nos cair no engano de não querermos fazer nada. Nós éramos 5 e o meu pai sempre insistiu com as raparigas na ideia de que tínhamos de conquistar o nosso lugar e ter independência económica e que o caminho para isso era tirar um curso. E eu em criança, com esta ideia que o meu pai nos estava sempre a meter na cabeça, decidi que ia ser médica como o meu pai e o meu avó, porque eles eram pessoas muito importantes e eu queria ser como eles.

Depois para obstetrícia fui por um motivo engraçado. Eu ia passar as férias para a aldeia e nas férias de 1952, quando me formei, estava lá e de manhãzinha chamaram-me para ir ver uma rapariga grávida que se estava a sentir muito mal. E eu até tinha feito obstetrícia com 16 mas na verdade não sabia nada de obstetrícia, sabia o que estava nos livros mas a prática não havia naquela altura. Lá fui eu e deparei-me com um edema generalizado e a rapariga a dizer que já não sentia o bebé a mexer. Eu não tinha nada comigo para ver, comecei a apalpar e até usei um estetoscópio do meu pai para tentar ouvir o bebé e percebi que bebé estaria morto. Lá lhe indiquei umas coisas para ela passar na à farmácia e baixar as tensões e passado um tempo lá se confirmou que o menino nasceu morto. Depois disto, eu tinha feito a observação bem e a situação em termos do meu trabalho tinha corrido bem mas pensei que para ir para lá passar férias tinha de saber mais de obstetrícia, e fui à maternidade Júlio Diniz inscrever-me como voluntária para estágio. Comecei assim na área, até que abriu concurso para interna, concorri e fiquei. Entretanto também fui a Lisboa tirar anestesia porque os internos tinham de anestesiar e até sem grande formação, e eu quis tirar para saber. Não fiquei por ai porque queria contacto com as pessoas e anestesia põe-nas a dormir. Trouxe centenas de crianças ao mundo.

 

Teresa Guerra, ginecologista

 

A Teresa nunca se casou nem teve filhos… Como é que essa questão foi encarada?

Se eu fosse filha única talvez ponderasse, mas tive os meus irmãos que asseguraram a descendência. Eu realmente tenho muita pena das mulheres que têm muito jeito par ser mãe e não conseguem. Lamento sinceramente. Mas ainda hoje com esta idade não estou nada arrependida de ter ficado solteira como fiquei. É uma opção que eu tomei. E a família aceitou muito bem, o meu pai não se importou nada. Aliás, para o meu pai, como para a maioria dos pais, ninguém merecia as filhas nem os filhos. Ele dizia uma coisa que é de realçar: “ Vocês podem fazer um casamento contra a minha vontade mas o contrário não se verifica”. Nunca se sobrepôs à vontade dos filhos. Mas eu nunca tive tendência nenhuma para o casamento e, acima de tudo, para aturar homens. Acho que é muito difícil. É preciso abdicar de muita coisa e ter uma capacidade de compreensão muito grande. Para mim as mulheres têm sempre razão, e depois vê-se. À cabeça têm sempre razão. É claro que as vezes não têm evidentemente. Dava-me sempre bem com os colegas e com os maridos das colegas mas para mim era difícil, tinha de abdicar de muita coisa.

 

Trabalhou muitos anos na saúde sexual e reprodutiva. A pílula foi uma viragem na sexualidade?

Foi. Eu tive outra sorte de ser convidada para ser médica no centro universitário. E lidei com o que a mulher conquistou a nível sexual. Eu sou católica mas nunca tomei posição contra a pílula. As pessoas têm o direito de escolher. Não vamos agora dizer que é pecado! E nem comento o que vi as minhas colegas tomaram pavor por causa da pílula e por serem católicas. Eu tive uma paciente que foi falar com o padre para saber se tomava a pílula, e esse padre era dos que está dentro da realidade, porque lhe disse que não se metia e para fazer o que a médica pensasse ser o melhor. Eles não se têm de meter nisso. Naquela altura as mulheres mais antigas reagiram mal em relação às filhas. Mas eu nunca tive nenhuma conversa com mães sobre os assuntos das filhas. Mas também é verdade que dizia às raparigas que para fazerem o que quisessem tinham de ter independência e que a independência económica era fundamental. Também nunca lhes dizia para dizerem às mães, cabia a elas gerir as suas vidas. Eu acho que isso foi uma conquista que eu tive a felicidade de ver e onde fui também parte ativa porque me foi possível ajudar algumas mulheres a conquistar o seu espaço, nas questões da sexualidade.

 

E em relação ao aborto?

Eu nunca fiz nenhum aborto. Assisti a situações muito graves, vi morrer muitas jovens, mesmo muitas, com infeções pós-aborto. E isto acontecia precisamente porque o aborto não era legalizado elas metiam-se com pessoas incompetentes. As curiosas que muitas vezes se metiam a fazer abortos não tinham competência para isso e, o resultado era as mulheres irem parar aos hospitais com infeções pós-aborto. Na maior parte das vezes, quando uma mulher entrava assim, perdia-se uma vida. Isso foi muito chocante para mim. Mesmo uma mulher morrer por circunstâncias de gestação achei sempre chocante, dar uma vida não é atirar a nossa. Por isso, nunca permiti uma mulher quando vinha ao meu consultório com um problema saísse com dois, algumas tiveram de sair com o problema por resolver, mas nunca agi como uma curiosa. Tive o caso de uma paciente que até disse que eu, ao não lhe fazer o aborto ia por a sua vida em risco porque ela ia a uma pessoa que não era de tanta confiança e eu ia ser responsável. Ora, eu disse-lhe que não podia ser, que eu também tinha de ser respeitada nas minhas opções e pensamentos. Eu não criticava mas também tinha direito à minha posição. Apesar disso, também é verdade que orientei algumas pessoas, não muitas, para fora do país para fazerem o aborto, não clandestinamente.

 

Teresa Guerra, ginecologista

 

Tem alguma criança que tenha nascido e que a marcou? Alguma história que lhe ficou na memória?

Bem, os meus sobrinhos marcaram-me um bocado. Talvez considere que o parto da  da minha irmã mais nova, que teve só um filho e aos 40 anos, me marcou especialmente. Isto, porque eu não ia fazer o parto, apesar de ter seguido a gestação. Disse que se fosse necessária a cesariana seria a Dra. Alexandrina a fazer. Mas as circunstâncias assim não o quiseram. A minha irmã entrou em trabalho de parto e, como na altura não havia telemóveis, não se conseguiu entrar em contacto com a Dra. Alexandrina. A cesariana era premente fazer-se naquela altura, então eu chamei uma colega para me ajudar e fomos para a sala de partos. Esse marcou-me porque não era para ser eu a faze-lo mas as circunstâncias puseram-me nessa situação. E correu tudo bem.

 

E aos 87 anos, o que quer fazer ainda?

Muita coisa. Eu deixei de fazer clinica em Março do ano passado. Achei que devia deixar os doentes antes que elas me deixassem a mim. Sai pelo meu pé do consultório. Deixei as minhas pacientes com a Dra. Alda, que é uma colega que trabalha comigo há muito tempo e que é competente e honesta, que eram as condições para ocuparem a minha cadeira. Agora quero conviver e até já montei o esquema perfeitamente, há dois dias em todas as semanas em que recebo as minhas colegas e amigas, são chamados “Os almoços do matriarcado”, somos só mulheres. E algumas amigas são até amigas da minha irmã porque nós tivemos a sorte do meu pai, a partir de uma certa altura em que estávamos todas na faculdade, alugar um andar para que os irmãos ficassem juntos. Ficamos com uma república, digamos assim, gerida por mim e pela minha irmã seguinte. Recebíamos muitos colegas dos meus irmãos lá em casa e por isso, ficamos também amigos. Eu fiquei com esse andar que o meu pais alugou na altura, e ele é meu. Só de lá saí no ano 2000 porque achei que devia mudar para um sítio mais cómodo para poder gozar o tempo que me resta. E é isso, o que quero da minha vida, nesta fase, é conviver.

 

Entrevista: Joana Torres | Fotos: Nélida Cardoso

Leonor Teles: “Cabe ao cinema de autor tentar representar outras perspetivas que não sejam só os clichés a que estamos habituados”

Leonor TelesLeonor Teles é uma amante da fotografia. Em 2016 ganhou um Urso de Berlim pela curta-metragem “Balada de um Batráquio”, filme que denuncia a xenofobia contra a comunidade cigana em Portugal.

 

 

Quando decidiste que querias ser realizadora?

Não foi bem uma decisão, nunca tive o sonho de ser realizadora ou cineasta. O meu sonho era ser piloto da força aérea. Mas quando cheguei ao secundário, comecei a perceber que não era a carreira militar que eu queria seguir. Nessa altura já tinha o interesse muito presente da fotografia e procurei cursos que tivessem essa vertente, para não me estar só a restringir à fotografia. Com o curso de cinema, podia tirar imagem e outras áreas. Foi mesmo uma paixão pela fotografia.

 

E dentro do mundo do cinema gostarias de dedicar-te a alguma outra área além da realização?

Direção de fotografia e fotografia para cinema. É o que eu mais gosto fazer. Realizar é uma coisa que eu faço mais pontualmente e só quando tenho a certeza dos projetos que quero fazer. A fotografia, é o meu trabalho digamos comum, aquilo que eu mais gosto de fazer, é onde eu me sinto mais à vontade e o que tenho feito mais.

 

Sentiste alguma dificuldade pela tua condição de mulher?

Nunca senti discriminação por ser mulher e trabalhar em cinema, senti uma outra dificuldade, que eu acho inerente a todas as áreas, por ser jovem. Para os jovens no geral, é muito complicado. É um meio muito pequeno, muito fechado, há poucas oportunidades e não há espaço para falhar. Mas isso tem que se contrariar aproveitando as poucas oportunidades que existem.

 

 

As mulheres estão bem representadas no cinema?

Acho que estão bem representadas em termos profissionais. O que não falta hoje em dia são realizadoras mulheres que estão a singrar por todo o mundo: Salomé Lamas, Claúdia Varejão, Filipa Reis, Leonor Noivo, Luísa Homem. São realizadoras mulheres e jovens. Atrás da câmara estão bem representadas e acho que é ótimo. Mas tem mesmo a ver com o facto do trabalho que estão a fazer ser mesmo relevante.

 

O cinema ainda representa muitos esterótipos machistas?

Claro, e vai continuar a representar. Pelo menos o cinema que é mais consumido, o comercial. Cabe também, se calhar, ao cinema de autor, que é o que se faz mais em Portugal, tentar contrariar essa onda e apresentar outras vertentes, outras perspetivas que não sejam só os clichés a que estamos habituados.

 

O cinema de autor ou social devia ser mais ativista, como na Balada de um Batráquio?

O Balada nasceu um bocado de um sentimento de frustração. De achar que o cinema só estava a representar realidades e não propriamente a fazer algo relativamente aos problemas que estava a ilustrar. E esse sentimento fez com que eu passasse à ação no próprio filme. Mas foi um bocado específico. Acho que nem todos os filmes têm esse poder de intervenção. Mesmo no Balada, o poder de intervenção é muito reduzido. Reduz-se só ao filme e ao tempo que as pessoas dispendem para ver o filme. Acho que o poder do cinema está em, durante o tempo que as pessoas dedicam ao filme, pô-las a pensar sobre aquilo. Se aquilo for realmente bem feito, eu acredito mesmo que as pessoas depois vão para casa e vão pensar naquilo. E isso por si só já é uma intervenção. Porque se pusermos as pessoas a pensar sobre determinados assuntos, pode ser que, pouco a pouco, depois também tentem alargar isso as coisas do seu dia a dia. Mas achar que o cinema tem esse poder de mudar ou de intervir é um bocado ingénuo. Acho que o poder está mesmo na duração do filme e no tempo em que o espetador está ali na sala para ver o filme. Aí é que o cineasta tem o poder porque está a mostrar aquilo que quer dizer e as pessoas foram generosas suficientes para ir ver o filme e estarem ali durante aquele tempo.

 

O que mais gostas e o que menos gostas de fazer no teu trabalho?

O que mais gosto é fazer as fotografias dos filmes e o que menos é que, no fim, quando temos que distribuir e vender o filme e tentar chegar a uma estreia, acava por, às vezes, o mais importante não serem os filmes, mas sim outros valores e outras coisas que passam à frente. Às vezes é mais importante o nome ou os contactos, do que propriamente o filme, o trabalho. E isso é muito injusto para os filmes.

 

 

Achas que depois de ganhar o Urso de Ouro em Berlim, tens mais oportunidades de trabalhar no cinema?

Acho que sim mas também não me quero valer disso para mostrar o meu trabalho. Quero mesmo que o mais importante seja o trabalho. Que valorizem mesmo aquilo que estou a fazer e que se aquilo que eu estiver a fazer for um porcaria que me digam. Não sou a maior por causa do Urso de Ouro. Sou um ser criativo como as outras pessoas todas mas também vou falhar. E o problema do cinema é que há muito pouco espaço para falhar. E às vezes, se calhar, é preciso nós fazermos dois ou três filmes só para nós e não mostrar a ninguém. Ou seja, só como método de aprendizagem para, a seguir, fazer uma coisa realmente boa e realmente melhor. Eu espero que os filmes, que aquilo em que eu trabalho, valha por si e não propriamente por ser meu.

 

O teu percurso no cinema pode ajudar outras mulheres?

Talvez, espero que sim. Por exemplo, a área de imagem e fotografia é uma área masculina, mais fechada às mulheres. Mas acho que a minha geração já começa um bocado a contrariar isso. As mulheres também sabem fazer imagem, também aprenderam, também têm força. As mulheres não são só assistentes de imagem, que é um clássico no cinema. Era o que mais faltava alguém dizer que não podes fazer câmara porque és mulher e não tens força. Ou que agora que estás bem na realização, deixa lá a fotografia para quem saiba. Não vou aceitar que ninguém me diga isso. Se é o que eu gosto e quero fazer, vou lutar por isso.

 

Tens visto algum filme português com uma perspetiva mais feminista?

Por acaso há um filme que eu vi da Claúdia Varejão, Ama-San, muito interessante. Aquilo passa-se numa ilha no Japão e é sobre mulheres pescadoras em apneia. De facto, aquilo é uma profissão extremamente difícil e que normalmente as pessoas associariam a uma coisa até masculina. Mas aquilo é absolutamente feminino e as mulheres é que mandam e são elas que têm o sustento da família. E isso é uma inversão de papeis bastante forte. Mas eu também não sou muito de ligar essa parte mais feminista ou menos feminista, não penso muito nisso. Acho que é importante mas que, às vezes, quando se torna excessivo, já nos estamos a tornar um bocado iguais a todas essas doutrinas machistas.

 

Achas que esse filme pode ser considerado feminista pela sua representação da força e do poder das mulheres?

Sim, mas ali as mulheres fazem uma coisa que nem os homens fazem. Ou seja, ali é que está mesmo o poder das mulheres. Elas conseguem fazer isto, eles não. Elas já fazem isto há anos, é uma tradição que tem passado de mulher para mulher. Na verdade, do pouco que eu fui trabalhando, mesmo com as personagens masculinas, fui sempre descobrindo algumas personagens femininas igualmente fortes ou até mais fortes do que as personagens masculinas. E acho que isso é uma caraterística das mulheres. Elas são mais fortes que os homens, porque aguentam tudo, aguentam estar nos bastidores, aguentam os filhos, aguentam a casa, aguentam tudo. E isso sim é uma grande força, mais do que uma força física, elas têm uma força emocional que os homens não têm.

 

 

Como é que foi filmar o Rhoma Acans com a comunidade cigana?

Esse é que é um filme um bocado feminista, só mulheres. Acho que foi um processo tão difícil como filmar outra pessoa. Quando vamos filmar pessoas, vamos tentar entrar na intimidade delas, é sempre um processo de ser merecedor da confiança das pessoas, para entrarmos com as câmaras. Acho que parte todo de um ato de honestidade e genuinidade, de explicar o que é que se está lá a fazer. Ou seja, há todo um trabalho de preparação antes de se entrar com as câmaras, antes de se invadir o espaço. E no fundo, isso também parte do interesse genuíno que eu tenho com as pessoas que quero filmar. E claro que só assim é que eu consigo protegê-los e fazer com que sintam confiança em mim para me darem esse ato generoso de os deixar filmar.

 

Achas que os teus filmes contribuiram a mudar um bocado a visão que a sociedade tem da comunidade cigana?

Não sei. Houve um feedback sempre bom mas não sei efetivamente o impacto que os meus filmes tiveram. A única coisa que eu posso dizer é que se as pessoas dedicarem aqueles 10 ou 14 minutos ao filme, já ganhei. Porque o meu trabalho é esse. Obviamente eu no meu íntimo, gostava que as pessoas fossem para casa a pensar naquilo e que mudassem um bocadinho a sua vissão. Mas isso não acontece assim, mudar mentalidades é um processo muito mais prolongado. Eu não quero fazer filmes só para mim. Claro que os filmes começam primeiro com um ato egoísta, começam para mim. Mas depois tem que chegar uma altura em que os filmes tornam-se autónomos, seguem a sua vida e vivem para o espetador. São filmes quando chegam ao cinema e são vistos. E claro que sim, eu quero que toda a gente vai ver, senão não faz sentido.

 

Qual é a história que sempre quiseste contar mais ainda não conseguiste?

Não sei, até agora as histórias que quis contar, contei. Mas por exemplo, gostava muito de poder filmar no Oriente, na Ásia, em Macau e em Hong Kong. Mas não sei ainda que história é que posso filmar nesses sítios…Se algum dia tiver oportunidade, gostaria de lá filmar. Agora tenho que descobrir o que.

 

 

Entrevista: Marta López | Fotos: Rebeka Dávid