Aos 30 anos – apesar de não aparentar -, Alexandra Santos destaca-se na cena ativista como a fundadora do Queering Style e parte do coletivo de auto-defesa transfeminista e da Lóbula. Descreve-se como sendo trigémea, filha de mãe negra e pai branco, que nasceu no Algarve e mora em Lisboa há 10 anos.
Fala-me um bocadinho sobre ti.
Eu sou uma pessoa que vai fazer quase 30 anos e que não o parece, que é trigémea, que vem do Algarve e que mora em Lisboa há já 10 anos. Os meus pais têm uma pastelaria, e eu acabei como feminista. Portanto é assim uma viagem. Mas se tivesse que me descrever era um bocadinho isto. Sou filha de mãe negra e pai branco: a minha mãe é cabo verdiana e o meu pai português. Neste momento sou a principal editora do Queering Style, assim como a pessoa que o construiu, que o pensou. Para além disso faço parte de um coletivo que é a Lóbula, de um coletivo de auto-defesa transfeminista e já tentei muitas vezes fazer parte de grupos de feminismos negros, mas com alguma dificuldade. Assim como fazer parte de qualquer tipo de instituição feminista que já esteja muito montada, pensada. Para além disso fiz muitos anos de voluntariado na Rede Ex-Aequo e também já fiz voluntariado na ILGA. Sou assistente social de profissão e pronto, assim brevemente é isto.
Gostava de trazer um pouco ao de cima a questão da história única que por vezes parece que se levanta em vários movimentos sociais, pela qual existem expectativas e caixinhas tão bem definidas que é muito fácil acabar por ficar fora delas. Não sei se já sentiste isto…
Eu sinto mais o contrário, para dizer a verdade. Existe uma caixa que é o feminismo e toda a gente te tenta enfiar nessa caixa. E tudo o que é fora disso já não é feminismo, mas nem sequer é outra coisa, só não é feminismo. Eu vejo exatamente o contrário. Sinto que o feminismo que se pratica hoje em dia – ou que a maior parte das pessoas pratica – é um feminismo em que te alimentas de redes sociais: não vais perceber de onde é que ele vem, quem é que falou nele, quem é que o começou, como é que hoje estamos onde estamos. O feminismo acaba por ser sempre um bocadinho isto: “As mulheres têm os mesmos direitos que os homens”. E logo à partida estamos a descurar uma quantidade de realidades. Muitas vezes ser feminista não é ser uma coisa boa, não é ser uma coisa simpática. É exatamente estar disponível a ser disruptiva, a ser crítica, mesmo quando tens um grupo de pessoas que te está a dizer que aquilo que dizes não é certo.
Aquilo que nós estamos a dizer é que a desconstrução de género não tem necessariamente que vir combater os direitos das mulheres. É mais uma ramificação, é mais uma camada e é mais uma identidade. Aquilo que eu não gosto são as pessoas que se dizem feministas e não têm práticas feministas. Isto para mim é completamente impraticável.
Falaste sobre algumas questões com as quais o movimento feminista em Portugal ainda se depara. Sentes que existe alguma tensão entre o que se chama agora, de forma muito lata, uma segunda vaga feminista e um feminismo mais queer?
Acredito que tem mais a ver com uma complexificação de categorias do que com o seu desaparecimento. Para mim o importante não é a igualdade de género, é a liberdade de género, que é uma coisa completamente diferente, e a anos-luz do que se reivindica na segunda vaga. Para mim é perfeitamente legítimo que uma pessoa se identifique enquanto mulher na categoria de pessoa feminina, na categoria de pessoa que tem tudo aquilo que é um feminino tradicional, digamos assim. Depois, há também a possibilidade de seres uma mulher trans, não feminina, bastante butch, lésbica e tanto mais. Há a possibilidade de tu seres uma mulher não binária que gosta dos seus seios mas não gosta da sua vagina, ou o contrário. Portanto, a complexificação disto, e também o jogar um bocadinho com o que é a corporalidade de um género, para mim faz-me muito sentido. Por exemplo, sobre a IVG: quando se diz “A IVG para todas as mulheres”. Não. Para todas as pessoas que têm um ovário que funciona, ponto! Porque há mulheres que têm todas as partes biológicas de uma mulher e que se identificam com o género no feminino que entretanto deixaram de ter ovários, deixaram de ter partes, e a quem a IVG não diz nada. Ainda no outro dia foi o dia mundial para a erradicação da MGF. Uma pessoa que passe por esse ritual muitas vezes não pode ter filhos. E tem um ovário e é uma mulher, na construção cis da coisa. Outras coisas que acontecem imenso: há uma marcha de luta contra a violência contra as mulheres, e em momento nenhum no manifesto se lembram das mulheres trans, que são 10 vezes mais vítimas de violência face às mulheres cis. Nunca, em momento nenhum, se fala em mulheres como cis e mulheres trans. E são experiências completamente diferentes. E todos estes reconhecimentos apagam e fazem delete numa quantidade de coisas. Esquecem-se também, por exemplo, que há uma quantidade de homens, de pessoas que se identificam com o género masculino, que têm ovários e que engravidam, que têm filhos.
Ainda há muita transfobia…
E é por isso que para mim todas estas coisas são importantes de desconstruir. Não por eu, as pessoas transfeministas ou as pessoas não binárias terem um problema com a categoria de mulher, ou com os binarismos de géneros. Porque é perfeitamente legítimo que uma pessoa se identifique com estas categorias. Aliás, nós dizemos que muitas vezes na experiência de pessoas trans o objetivo é precisamente este. É serem reconhecidas enquanto pessoas de determinado género.
Portanto não se quer destruir o género, quer-se mesmo libertá-lo?
Precisamente, a questão é essa. E eu acho que não há lutas novas que façam com que as lutas antigas deixem de existir. Elas podem ser todas companheiras.
E como é que isso se faz na prática?
Na minha óptica não se podem silenciar opiniões, não se podem silenciar pessoas. Ativistas que estão no ativo há 20 anos não podem dizer que as ativistas jovens não sabem o que é a luta. As lutas não se ficaram pelo 25 de abril, nem as liberdades. E não estamos a falar só de questões de igualdade no trabalho, não estamos a falar só de igualdade. Estamos a falar de uma quantidade de outras questões, de outros tipos de violência e uma quantidade de coisas que acontecem que estes feminismos mainstream parece que não tocam, nem sequer lhes passa pela cabeça. Quem está um bocadinho fora disto tenta incutir um bocadinho estas ideias, estas ideologias das formas de estar e de pensar, mas ao mesmo tempo é preciso estar-se muito preparada e com muito boas ferramentas para quando te questionam tu poderes responder. E aqui a minha posição é sempre muito interseccional, porque tens uma pessoa que é uma mulher mas que se identifica com uma expressão de género mais masculina, que é lésbica mas que ao mesmo tempo é queer… Isto tudo professa um feminismo trans! Isto é tudo muito complicado de se juntar.
Mencionaste há pouco o feminismo negro. Como tem sido a tua experiência?
A minha história com coletivos de mulheres negras: às vezes é muito difícil para mim identificar-me com o discurso dos coletivos de mulheres negras. Porquê? Porque eu não me identifico como uma mulher feminina. Portanto, se eu não sou uma mulher feminina há muitas coisas que preocupam a mulher feminina que não me preocupam, ou que me preocupam de uma maneira diferente. Ou pelo menos que eu construo de maneira diferente. E eu não tenho lugar, não há um lugar para o meu discurso. Outra questão: eu não sou uma mulher negra escura, sou uma mulher negra clara que vem de uma miscigenação. O que é que acontece? Eu sei, porque tenho esta consciência, que a minha negritude (ou a minha não negritude) vem do facto de que o povo de onde a minha mãe é originária ter sido vítima de escravatura, de as mulheres terem sido estupradas, o que levou a que eu tivesse uma cor de pele mais clara. Eu tenho consciência disto, tenho consciência do meu privilégio, do privilégio da minha branquitude. Mas num coletivo de mulheres negras isto não salta à vista. Então muitas vezes perguntam-me: “Então mas tu és uma mulher negra? Como assim?”. Portanto há todo um preconceito, há todo um assumir de uma quantidade de coisas. Eu, por exemplo, tenho a experiência de ter uma consciência maior de negritude do que muitas mulheres mais negras, mais escuras do que eu. Isto porquê? Porque eu tenho um trabalho de construção feito, de leituras, de consciencialização, de pensar na história e etc. que me fazem ter consciência disto. Eu não acho que sou mais vítima de racismo, porque não é verdade. Obviamente que uma mulher mais escura que eu tem impresso no seu corpo uma quantidade de sinais e de pontos que eu não tenho, e obviamente que é mais discriminada do que eu. Agora, a consciência disso…
Quando existe um movimento LGBT e quando existe um movimento feminista veêm-se homens no movimento LGBT e heterosexuais no movimento feminista. E às vezes uma pessoa sente-se um bocado aos saltinhos entre um e outro sem saber muito bem o que fazer. O que é que tu sentes sobre isto?
Eu acho que o movimento LGBT é feito por homens brancos, gays e cis, e há uma cultura de estética, de estilo até, que é muito específica. E um discurso muito específico de, lá está, homem branco, cis, normativo. Agora, se tu fores um homem negro, não binário – portanto afeminado – com uma ruptura com a família, que vai contra a norma (que se calhar é trabalhador do sexo, se calhar toma drogas) pelo rumo da tua vida, não pertences a este movimento. Porque o teu problema não é ter bebés, o teu problema não é casar: o teu problema é sobreviver. No movimento LGBT pensa-se que se quer ser igual a toda a gente, e quando se quer a normalização ficamos mesmo iguais aos outros. Esta ideia de “vamo-nos inserir” não dá lugar à diferença. Depois tens a questão dos feminismos, que lá está, foram muito feitos por quem? Mulheres cis, brancas, classe média, que tinham uma coisa em mente: direitos de trabalho. Quem é que eram estas pessoas e quem é que poderia ter visibilidade em relação a isto? Eram as mulheres brancas, porque as mulheres negras eram as escravas. E quando as feministas brancas são chamadas à atenção por causa disto ficam muito à defesa: dizem que abriram as portas e que são as mais inclusivas. O que eu não aceito é que feministas brancas me venham dizer que dão voz às feministas negras, quando a verdade é que nós não tivemos voz porque elas não nos deixaram. Nós continuamos a lutar por coisas que se calhar muitas das feministas nem sequer pensam. Quando tu vais a uma reunião de mulheres negras feministas elas pensam “Então e o trabalho doméstico digno?”, porque a experiência que temos enquanto mulheres negras, e o que vemos das nossas mães, é trabalhar em casa dos outros em trabalhos precários, duas horas por semana, porque não tiveram direito à educação, à escola… Eu acho que nós temos uma responsabilidade, que é relembrar as pessoas da nossa história, de fazer com que a nossa história sejam história. E eu acho que não é dizer que fomos vítimas disto e daquilo que é uma vitimização, é trazer à luz uma história que nós nem tivemos direito a ter. E então eu acho que temos o direito de falar sobre isto, e de tomar palavra em relação a esta história, e de falar sim de escravidão, falar sim de racismo e de falar sim destes preconceitos e etc., porque estes preconceitos fazem com que nós estejamos onde estamos. Mas no fim, quando inseres em ti muitas intersecções, muito dificilmente existirá um espaço para ti. A não ser que seja um espaço que seja verdadeiramente interseccional. E não é que se diga interseccional, mas sim que existam pessoas que vivam estas mesmas interseccionalidades. E por isto é que eu criei o Queering Style.
E era sobre isso que eu gostava de falar agora! Fala-me um pouco sobre o Queering Style.
O Queering Style foi um sítio que precisei de criar porque não havia mais nada. E na altura eu nem sequer me podia dizer tão conhecedora destas minhas intersecções todas. Na altura também estava um bocadinho a tentar descobrir, a tentar perceber… E foi muito através do estilo, através do facto de ter uma expressão de género que é mais andrógina – não lhe posso chamar masculina porque as pessoas não me conferem essa masculinidade. Adoro quando digo às pessoas que toda a roupa que tenho vestida é de rapaz ou de homem, e as pessoas ficam a olhar para mim do género “Não! Mas tu és tão feminina!”.
E o que é que costumas responder a isso?
Normalmente a resposta a seguir é “Mas eu não faço para não ser feminina”. E as pessoas desconstroem logo. “Mas espera! Então quando vestes roupas de homem não significa que queiras ser masculina!”, e eu respondo que não naquele sentido que se acha que masculinidade tem: machista, de assertividade… Mas eu também sou assertiva! É nesta linha que começa o Queering Style. Eu comecei o Queering depois de estar há uns 6 meses a fazer um mestrado em Género, Sexualidade e Teoria Queer no Reino Unido, em Leeds. Desenvolvi uma tese sobre serviço social com jovens LGBTQ em Portugal, em que basicamente estive a entrevistar focus groups e etc. com assistentes sociais sobre estas questões: quais eram as práticas que tinham com pessoas LGBT, que recursos é que conheciam, etc.. Tudo isto também numa tentativa de desconstruir uma quantidade de discursos sexistas, misóginos, transfóbicos. E depois, enquanto estava a fazer isto, tinha uma colega que me perguntou se eu nunca tinha pensado em fazer um blog. E mostra-me o Tumblr. Através do Tumblr começo a conhecer e a ver imensas pessoas que publicam que têm vários estilos, e pensei “Bora lá!”. Estava num processo de me descobrir e perceber que não fazia mal ser mais masculina – com todas as aspas que isso possa ter – ou menos normativa. E então foi giro porque entretanto comecei a ter bastantes pessoas que realmente gostavam de seguir o meu blog. E as coisas devagarinho, desde que eu me desdobre em três, vão-se conseguindo fazer. Mas pronto, o Queering Style é exatamente o sítio que eu não encontro em lado nenhum.
Em que sentido?
No sentido de ter uma prática feminista: toda e cada pessoa pode colaborar vendo o seu nome associado, direitos de autor explícitos, com todo o tipo de privilégio enquanto pessoas que estão a dar o seu contributo e etc.. Depois é um sítio que não só não é transfóbico como celebra tudo o que é transgredir género, o que é completamente diferente. Não é dizer que não somos transfóbicos, é sermos transpositivos, se é que se pode dizer assim. A ideia é celebrar a diferença, e que a tua expressão é lindíssima. E o Queering Style é isto, dá-me um gozo tremendo e é muito bom. E é saber que te legitimas, e que legitimas pessoas que se identificam como tu e que se podem identificar contigo e tu com elas. Porque é que eu também acho que há problemas em ser mainstream, ou em chegar ao mainstream, a milhentos seguidores? É que depois não se separa trigo de joio. Entretanto tens pessoas que não compreendem o que estás a dizer constantemente a deitar-te abaixo porque não entendem.
Muitas vezes existe dentro de alguns movimentos um tipo de discurso e um tipo de postura, se quisermos chamar assim, que pode por vezes acabar num ponto mais alienatório do que convidativo. O que é que sentes quanto a isso?
As pessoas fazem isto exatamente para criarem espaços seguros. Aquilo que vês como um ataque é uma segurança para estas pessoas. Porque o que estás a fazer – se calhar não notas – é atacar outra pessoa que esteja na sala.
E como é que uma pessoa pode dar alguma coisa a algum movimento? Como é que pode ser uma aliada?
Escuta. Escuta e aprende. Porquê? Se estás a entrar num espaço seguro para aquelas pessoas que imagina que são trans, e tu não és trans, então não falas, é simples. Não roubas espaços de fala. E depois questionas-te. Ou questionas alguém que sabes que não vais ferir. Não atiras a questão de qualquer forma. Porque estas pessoas estão constantemente a responder a perguntas, a terem de se defender. Nós somos silenciadas, constantemente jogadas para a margem. Isso também leva a raiva. Isso também leva a que tu muitas vezes entres de frente, percebes? E as pessoas queer que mais entram em confronto com a norma e mais transgridem a norma, ninguém faz ideias das lutas diárias que têm com a família, das condições monetárias, socioeconómicas… Nós vemos a pessoa ali: tem um determinado estilo, uma determinada estética e pensamos “uau, isto é muito giro!”, mas nós não fazemos ideia…
Porque é que não queres acabar com o género?
Porque eu acho que a identidade é uma coisa muito importante, e tu poderes identificar-te enquanto determinada coisa é muito importante para ti enquanto pessoa, enquanto fazendo parte de algo. O não-binarismo não existe se não existir o binarismo. E às vezes eu acho interessante como as pessoas se esquecem um bocadinho disto e jogam assim para a mesa: “Não, nós queremos acabar com o género!”. Mas e então o que é que haveria? Como é que te identificarias? Isso já é teoria queer pura e dura. Mas em relação ao Queer, eu acho que muitas vezes perdemos um bocadinho – e nós muitas vezes temos essa discussão na Lóbula – a ideia de que não podemos ser só um movimento estético, temos de ser também um movimento político. E político não é partidário, é com engajamento político, com uma opinião, com uma posição acerca das coisas. E para mim é sempre questionar alguma coisa. Isto aparece-te assim, não é? Porquê? Porque é que isto me aparece assim? Porque é que existem estas diferenças de género? Lá está. E a partir do momento em que pões as questões assim nem tens de ler nada. Tu podes ver. Podes encontrar as questões na própria sociedade, podes desconstruí-las através de exemplos da própria sociedade. E por isso é que isto é uma coisa que é tão acessível a toda gente, porque toda a gente vive género.
Se conseguisses fazer uma lista de três pontos das coisas mais importantes para alguém que está numa posição de poder (neste caso de poder político) para estas pessoas serem feministas. Algo como um guião prático para as pessoas que estão no Estado, na política…
Três coisas. Primeira: conhece a tua comunidade. Ou seja, quando chegas a uma posição de poder podes acomodar-te muito facilmente e deixar de conhecer a comunidade, as pessoas, as coisas… É ires aos eventos, é falares com as pessoas, é tentares entender. Porquê? Porque depois não vai ser só uma questão de tu decidires porque a tua cor politica diz que provavelmente é melhor tu dizeres que sim àquilo ou que não àquilo. Segunda: reconhecer privilégio. Sempre. É saber de onde é que vens e como é que isso influencia a tua óptica do mundo. Todos nós temos privilégio. E as relações de poder acontecem mediante os diferentes contextos. Tu num determinado contexto tens uma relação de poder, tens um determinado privilégio, noutro contexto tens outro. E isto também é importante. Tu em casa és vítima de violência doméstica e fora de casa és a Presidente do banco, tens uma posição de privilégio. São contextos diferentes, e privilégios diferentes. E a terceira coisa: se tu queres desenvolver empatia tens que te pôr no lugar do outro. E como é que tu fazes isso? Primeiro, se já sabes de onde é que vens, aquilo que o outro tem para te dizer, para te ensinar, já não é um ataque, já não é um questionamento. Passa a ser potencialidade, construção, ponte. É tu dizeres “OK, eu venho daqui mas eu entendo aquilo que estás a dizer, portanto bora construir”. Só que isto não se faz. As pessoas têm muita dificuldade em fazer isto, mesmo em contextos feministas.
E o que é que falta fazer?
Muitas coisas. É muito difícil, porque eu acho que o poder é uma coisa muito cíclica, no sentido em que é circular e auto-reprodutor. Tu nasces numa família com poder, tens acesso aos melhores estudos, entras no poder, vais ter um cargo de poder. E assim sucessivamente. Porquê? Porque tens acesso. Então desconstruir isto é muito difícil. Mas começamos com políticas de imigração. Políticas que não vejam o imigrante como inferior. Mas é muito difícil porque somos um país de colonos, e então fazer pontes e abrir portas sem achar que quem vem entrar é inferior a nós é muito difícil. Porque nós “descobrimos”, obviamente. Nós não descobrimos nada, aquilo já existia e já lá estavam pessoas a viver. Nós açambarcámos. Enquanto não houver esta consciência não há hipótese. E depois o saudosismo e todas essas coisas estão depois embrenhadas dentro da nossa ideia de estar no mundo, de fazer poder, de fazer política. Questões como leis da nacionalidade. Nós temos miúdos que nasceram em Portugal que não têm documentação. Eles não existem. Mas estudam no sistema nacional português. Como é que um miúdo anda na escola e não tem documentos? Começamos por aí. Depois, se formos falar em questões de género, começarmos a olhar para as diferentes formas de viver género, e começarmos a chamar as coisas pelos nomes: existem pessoas Cis e existem pessoas Trans. Criamos políticas para pessoas Cis e estamos a invisibilisar pessoas Trans. E é isto.
O que é que fizeste nos últimos tempos que te deu mais esperança, em que pensaste “Isto talvez funcione, nós ativistas do mundo talvez nos consigamos entender”?
Eu acho que todos os dias tentamos fazer isso. Está-se por exemplo a organizar uma marcha para o dia 8 de março, uma coisa super orgânica, com uma quantidade de coletivos que se junta para perceber como é que as coisas funcionam. E esse tipo de coisas dá-me muito ânimo. Porque estava lá imensa gente, foi muito bom. E depois é assim, agora todas as semanas o pessoal se tem organizado e tem ido… Vieram-nos dizer que foi a conversa com mais pessoas que existiu. Para mim, o ano passado, aquela manifestação que aconteceu, a do Por Todas Nós, foi brilhante, foi mesmo um “Eu não acredito que isto aconteceu, que eu pude estar a organizar isto”. E neste momento, fazer parte desta vaga destas coisas que estão a acontecer é muito bom. A marcha do Trump também foi super orgânica, que se organizou em duas semanas. E é isto, é ver a sociedade civil a organizar-se porque achamos que realmente temos uma palavra a dar, e não estás porque tens que estar, porque o teu partido ou porque a tua instituição asism o diz. Não, estás porque genuinamente queres estar. E isto para mim é brutal.
Entrevista: Inês Fernandes | Fotos: Rebeka Dávid