Regina Tavares da Silva: “Já chegamos à fase em que os princípios estão proclamados e aceites. Falta pô-los em prática”

Regina Tavares da SilvaRegina Tavares da Silva dedicou a sua vida à luta pela Igualdade de Género. Marcou presença e discursou na 1ª grande conferência das Mulheres no México e foi presidente da Comissão pela Cidadania e Igualdade de Género. Também conheceu e travou amizade com Maria de Lourdes Pintassilgo, pessoa que marcou a sua vida.

 

Diz muitas vezes que a Maria de Lourdes Pintassilgo foi a pessoa que mais a influenciou na luta pela Igualdade de Género. Como é que se conheceram?

Eu conheci a Maria de Lourdes Pintassilgo quando era uma adolescente, tinha 13 ou 14 anos. Nessa altura ela dava aulas extra curriculares no liceu Filipa, onde eu andava. Já não me recordo do programa porque nessas aulas ela já nos falava muito sobre o papel das mulheres na sociedade e no mundo. E eu fiquei, desde essa altura, sensibilizada para esse tipo de questões. Aliás, eu ainda guardo o caderninho de apontamentos dessas aulas com o respectivo autógrafo da professora.

Depois continuei a encontrar a Maria de Lourdes durante várias fases da minha vida. Na Universidade de Ação Católica, da Juventude Universitária Católica da qual ela era presidente. Depois no Graal, que a Maria de Lourdes introduziu em Portugal, e essa dimensão do papel das mulheres na sociedade era cristã, mas é uma ótica fundamental. Eu vivia em Coimbra quando ela pensou em regionalizar a Comissão para a Politica Social relativa à Mulher, e me convidou para trabalhar com ela. Depois quando vim para Lisboa fiquei a trabalhar na Comissão [agora Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género], foi assim em ’73.

A Maria de Lourdes foi o motor desta temática em Portugal. Teve uma visão pioneira ao olhar estas questões como de carácter político, e não apenas questões sociais, no sentido em que são responsabilidade do Estado e da sociedade lutar contra a discriminação.

 

Maria de Lourdes Pintassilgo foi, de facto, Primeira-Ministra (a 3ª da Europa), mas parece ficar esquecida. Acha que se deve só ao facto de ser mulher, ou a situação inconstante na altura também contribui para isso?

Acho que tem a ver com tudo. A figura dela foi, de facto, muito apagada e acho que o país não a reconheceu devidamente o papel e a dimensão que ela teve. Eu até tenho a sensação que ela era muito mais reconhecida a nível internacional do que nacional.

Quando a Maria de Lourdes morreu, eu estava nos Estados Unidos. No dia seguinte encontrei a Srª. Angela King e ela disse-me: “Regina, acabei de saber da morte da Maria de Lourdes Pintassilgo. Que grande perda para o vosso país”. E eu continuo, ainda hoje, a pensar se o país sentiu assim tanto esta grande perda. Por este e por outros episódios, ela tinha uma estatura, um respeito e uma admiração que talvez não tenha tido em Portugal. Basta ver a multiplicidade de sítios institucionais, internacionais em que ela participou. São mais conhecidos, de facto, as Nações Unidas, a Universidade das Nações Unidas, a OCDE, a participação dela no Comité de Sábios da Comissão Europeia.

 

Durante os anos 60, a Regina esteve nos Estados Unidos da América e acompanhou de perto os movimentos cívicos pelos direitos das mulheres e contra o racismo. De que forma é que os vivenciou?

Eu estive nos EUA na altura em que colaborei com o Graal, numa instituição universitária mas que não fazia parte das universidades superiores. Isto foi nos anos 60, e estes anos foram anos de grande desenvolvimento. Os países em desenvolvimento entraram para as Nações Unidas, e houve uma grande tomada de consciência dos problemas desses países e da situação das mulheres desses países. E foi também a década a favor dos grandes movimentos cívicos e sociais. Aliás, eu estava nos EUA quando foi aquela grande marcha sobre Washington com o Martin Luther King e o discurso “I Have a Dream”. Esse também foi o início dos novos feminismos.

 

Regina Tavares da Silva

 

O que é que a fez ir para os Estados Unidos?

No fundo foi o desejo de ver o mundo. Portugal, nessa altura, era uma sociedade fechada, mas tive a sorte dos meus pais, por serem pessoas abertas, de ter ido para a Holanda, para a Alemanha, França. E fiquei sempre com esse desejo de conhecer outras pessoas, outras mentalidades, outras sociedades.

 

Há alguma experiência que a tenha marcado nos EUA?

Foi um ano muito intenso. O experimentar uma cultura completamente diferente, o perceber o que é o sonho americano. Lembro-me de, no Verão, ir com 4 outras colegas trabalhar num projeto na Califórnia, e eu estava em Cincinatti, em Ohio, com crianças mexicanas. E, para ir até lá, fizemos de carro parte da route 66, a mother road [estrada mãe] e passámos por reservas índias percebemos como tudo aquilo foi sendo construído.

 

Quando voltou para Portugal sentiu muita diferença?

Era uma sociedade diferente! Quando vim para Portugal fui trabalhar para Coimbra para um centro do Graal, com estudantes universitários. E trabalhar com universitários é muito diferente de estar num emprego mais tradicional. Portanto sentia-se alguma abertura. Não foi complicado. Aliás, passados dois anos fui-me embora para Inglaterra.

 

Como é que era ser feminista antes do 25 de Abril?

A palavra feminista antes do 25 de Abril não se usava. É evidente que o tema “Mulher” e o papel e a situação das Mulheres no mundo já era um tema, especialmente nos anos 60, que se sentia. Quer nos círculos académicos, quer nos movimentos cristãos progressistas. Logo no início da década o Jornal da Associação Académica de Coimbra, que se chama “A Via Latina”, publicou uma carta aberta às jovens portuguesas. Era uma chamada de responsabilidade às jovens portuguesas em que dizia que tinham que ter os mesmos direitos e que a sociedade não as podia oprimir enquanto pessoas. Foi uma carta que despertou um enorme brado, de alguma discordância e até de algum escândalo. Sentia-se que era um tema que estava a germinar. Não foi um grande espanto quando a seguir ao 25 de Abril surgiram uma série de organizações, como o Movimento de Libertação das Mulheres (MLM), muitas coisas vieram, de facto, ao de cima.

 

Regina Tavares da Silva

 

A Regina esteve sempre na linha da frente pelos Direitos das Mulheres, esteve na Conferência do México, integrou a Comissão da Condição Feminina, foi membro da Comissão Europeia e do Comité para a Eliminação da Violência contra as Mulheres. Se pudesse escolher, qual seria o momento mais importante que vivenciou na luta pela Igualdade de Género?

O marco a nível internacional que se considera que foi o princípio da introdução destas questões foi a declaração do ano internacional da Mulher em 1975. Aquela foi a primeira grande conferência, na Cidade do México. Foi o assumir junto da comunidade internacional destas questões como questões que devem entrar na agenda política. Com a declaração que foi feita, com o programa de ação, com a criação da década das Nações Unidas para as Mulheres. E foi muito interessante porque coincidiu com a nossa mudança a nível nacional. Houve o proclamar da igualdade na constituição e a alteração do código civil, as leis da família, a lei da igualdade e do emprego.

Acho que já chegámos à fase em que os princípios estão proclamados e aceites. Neste momento falta pô-los em prática. E isso é que é extremamente demorado. É muito interessante que, por exemplo, no Conselho da Europa tem havido várias recomendações sobre estas matérias, mas há apenas duas declarações – que são os documentos de princípios de afirmação política e jurídica-: uma delas, de 1988, que proclama a igualdade como princípio de direitos humanos como requisito da democracia; a de 2008 vem dizer, e o título diz tudo: “Tornar a Igualdade uma Realidade”. Hoje interessa concretizar, não é fazer mais grandes proclamações, elas estão feitas. É evidente que concretizar demora, porque é uma mudança estrutural, social e cultural. Mas tem de ser apressado. Há pessoas que dizem que como já não há descriminação na lei, é tudo uma questão de evolução natural, que havemos de lá chegar. Mas eu acho que à velocidade que a evolução natural se está a processar vai demorar muitas, muitas décadas. É necessário apressar a mudança. A desigualdade salarial, à velocidade que está a diminuir, só vai deixar de existir daqui a 170 anos! E quanto mais qualificadas são as mulheres maior é o gap salarial, o que significa que as mulheres têm mais dificuldades em chegar ao cargos de decisão. É a chamada segregação vertical.

 

Acha que alguma vez teremos os nossos direitos assegurados?

Eu espero bem que sim! Senão o que é que andei a fazer em toda a minha vida? Mas este não é um movimento constante, tem progresso e retrocesso – tal como todos os outros movimentos sociais e culturais-.

 

 

Entrevista: Margarida Henrique | Fotos: Pedro Pinto Basto

Guiomar Sousa: “Temos uma história de tanta perseguição, mesmo em Portugal, na habitação, no mercado de trabalho, nas escolas…”

Guiomar, uma cigana orgulhosa da característica de resiliência que associa às mulheres ciganas, sonha um dia ter uma associação de mulheres ciganas. Apesar de ter abandonado a escola aos 9 anos, nunca desistiu da sua educação. É ativista feminista e não desiste de o ser porque há, apesar de tudo, apoio e vontade de levar mais mulheres ciganas a conquistar o espaço que lhes pertence.

 

 

Como mulher e cigana como foi a tua educação?

A minha educação foi muito fechada. Filha única e com 9 anos tive de sair da escola. Nem sequer na altura me passou pela cabeça saber porquê. As minhas primas também só fizeram até ao 4º ano. O meu irmão é mais velho e foi para o ciclo. Por acaso fiquei muito triste porque gostava muito da escola, mesmo! E era boa aluna, nunca dei problemas ao meu pai por faltas, trabalhos de casa… Mas era uma coisa normal e eu também era uma menina e não fiz questão. Com 9 anos o que é que eu podia fazer? Mas em tudo o resto foi uma educação que julgo normal: em casa, com a mãe… Eles trabalhavam na feira e as vezes acompanhava-os. Depois também comecei a aprender as típicas coisas que as meninas começam a aprender: fazer a comida, tomar conta da casa… Uma coisa tranquila com nada de extraordinário, até porque também cresci numa aldeia onde éramos a única família cigana.

 

Como achas que é ser mulher cigana em Portugal?

Eu sinto-me igual a qualquer outra mulher. Tenho as minhas dificuldades, claro. Tenho a dificuldade da educação e agora com 35 anos vejo que é muito difícil contrariar porque, eu pelo menos, sinto muita dificuldade para estudar. Eu sai da escola com 9 anos. Quando se segue uma linha e somos jovens as coisas até vão bem e pega bem na cabeça mas com 35 anos não. De resto eu sinto-me como outra mulher qualquer. Já me têm feito essa pergunta mas eu acho uma coisa tão normal e tão básica que é difícil explicar. Agora, acredito que cada mulher tenha os seus objetivos e seguir ou não em frente é uma opção e um tiro no escuro que não sei se vai acertar mas tento. E vou tentando educar os meus filhos o melhor que posso… Não sabendo se sou boa mãe mas tento. Também me pergunto as vezes “o que é ser cigano para ti?”, “o que te faz ser cigano?” ou “o que é especial para ti?” e eu fico a pensar que sou igual a qualquer pessoa. Um dia li uma entrevista de uma advogada espanhola, cigana, e identifiquei-me com alguma coisa: a história que a comunidade cigana tem vindo a fazer ao longo dos anos. A nossa maior magoa é o tempo nazi e pelo que passamos nas mãos deles. E ela contava uma história com que me identifiquei muito e que se baseava no facto de sermos unidos. Há uma história que contam de que numa noite num campo de concentração e onde uma comunidade cigana que sabia que ia ser morta nessa noite decidiu unir-se : “nós não temos nada mas quando eles entrarem o que tivermos à mão: pedras, paus, o que for… vai ser para lutar”. E assim foi, uniram-se e naquela noite não houve mortes da comunidade cigana. Depois claro que os dispersaram ao entenderam que se estivessem juntos eram fortes, mas esta é realmente uma coisa com a qual me identifico. E, se calhar, o que é ser cigano para mim? É ter história, é eu saber o que o meu povo tem sofrido ao longo dos anos e por onde caminhou. Há muita história por aí mas pelos factos históricos, nós viemos da Índia, éramos uma casta baixa e houve essa necessidade de fugir e começaram a dispersar-se pelo mundo na tentativa de ter algo mais. Então é isso, a resiliência. Eu costumo dizer: ser cigano é ser resiliente. E ser cigana e mulher é isso, lutar todos os dias por uma vida melhor. É o básico de qualquer ser humano: lutar por mim e por quem esta ao meu redor.

 

Apesar de não teres conseguido ter o acesso à educação que gostarias em criança, ao longo da tua vida tens-te esforçado bastante por colmatar essa situação. Como é que isso tem sido aceite dentro da comunidade, da tua família?

Quando casei, nos primeiros anos íamos para as feiras e até conseguíamos alguma coisa. Mas eu sempre tive muita curiosidade e gostava muito de aprender e estudar. Depois houve oportunidade de, através do RSI, tirar o 6º ano. Eu tinha de ir e também gostava. Quando acabou, comecei a procurar formações e ia ao centro de emprego perguntar sempre o que havia e no que me podia inscrever. Tirei alguns cursos. Depois comecei a trabalhar como dinamizadora no projeto Escolhas, no bairro onde moro, a convite da coordenadora. Fui falar com o meu marido e tivemos uma reunião com ela onde explicou que eu tinha que viajar umas vezes com ela e outras sem ela. Eu nunca tinha saído de casa sozinha. Desde aí as coisas começaram a fluir: fui conhecendo outras coisas, entrei no ativismo… Conheci pessoas de quem conhecia projetos, como a tia Olga da AMUCIP. A tia Olga Mariano é uma referencia porque é mulher, cigana e viúva. Uma mulher cigana, viúva que juntou meia dúzia de mulheres e criaram uma associação. Conheci pessoas que se tornaram minhas amigas e quando há alguma coisa tentamos encaixar algo que eu possa fazer. Ainda este ano participei no Ribaltambição. Temos vídeos no youtube de histórias de 7 mulheres ciganas através da culinária. Para os ciganos a culinária é muito importante. Fizemos um vídeo de cada uma onde fazíamos uma receita típica cigana e onde falávamos também sobre a mulher cigana em Portugal.

 

Guiomar Sousa

 

Tens uma filha, uma menina. Enquanto mãe de uma menina e tendo essa consciência de que temos de capacitar as mulheres, como consegues conjugar a parte étnica, de que te tanto orgulhas, e a educação empoderada de uma menina?

Eu só tenho que fazer uma coisa: dar o exemplo em casa. E é o que tenho feito até agora e tem corrido bem. Acho que deve acontecer naturalmente, sem opressões, sem julgamentos. Ela está na escola e gosta da escola. É super pratica e autónoma. Não penso muito no dia de amanhã nesse sentido mas quero que a minha filha estude e que consiga tirar um curso para que consiga entrar no mercado de trabalho, ser feliz e  identificar-se com o que fizer. Não culpo o meu pai por não ter estudado, há uns anos era assim e esta era uma ideia que nos foi incutida. Ele fez isto na ideia de me proteger. Temos uma história de tanta perseguição, mesmo em Portugal, na habitação, no mercado de trabalho, nas escolas… E mesmo sem querer fechamo-nos. Em Portugal, nós não temos muito romanes e agora até já é um bocado espanholado, como costumamos dizer, porque fomos proibidos de falar a nossa língua. Até hoje sinto-me perseguida, não totalmente aceite… Ás vezes até no trabalho quando dizem “onde está isto?”, “ eu nãoo sei disto…” eu já sinto aquele aperto: “Ela é cigana, será que foi ela?”. Mesmo as pessoas não dizendo nada isto já esta tão enraizado e o medo já é tanto da ideia “ foi o cigano” que eu quero que a minha filha me diga assim: “ mãe, eu sou feliz.”. Mesmo que não queira estudar até ao fim, só quero que ela consiga trabalhar para ganhar o sustento dela e, que não pense que casar é o único objetivo de vida dela. E quero mesmo que ela seja empoderada como mulher, que tome atitudes e que se sinta bem com o que ela faz, na área que for.

 

Sentes esse medo e essa não aceitação.. Além dessas, em que circunstâncias te sentes assim?

Eu tenho tido sorte porque não sou muito morena então não sou a típica imagem estereotipada que há. E a mulher cigana é vaidosa por natureza e eu não sou assim. Na  escola sempre fui bem aceite, era a única “ciganinha” da escola com o cabelo muito comprido e a professora adorava-me. Já na adolescência pouco convivi com meninas não ciganas . Agora é verdade que quando casei não consegui alugar casa por ser cigana e aí sim comecei a sentir o racismo que eu até aí nem tinha grande noção.  Por telefone estava tudo bem mas o meu marido é muito moreno e olhavam para ele… e mesmo pela minha fala, ás vezes apanhavam-me. E as pessoas diziam que a casa já tinha sido alugada ou já tinham outra pessoa em vista. Tive muitos anos a tentar alugar casa em Espinho e não consegui, não foi 1 nem 2 nem 3. Sempre me era negado. Cheguei ao ponto de desesperar e alugar casa em Ovar, que é muito longe daqui. Tirei o meu filho da escola, do ambiente dele e o meu filho tem dislexia. Eu tive de o tirar do ambiente de segurança dele e ele regrediu. Mas o desespero foi tanto que eu aluguei casa em Ovar, lá numa ponta, completamente sem ninguém. Depois comecei a trabalhar e pensei que tendo folha de vencimento já me facilitava a vida e aluguei com uma imobiliária, eu não conhecia a dona da casa. Até ai tudo bem e marcamos para fazer o contrato, paguei à senhora e enquanto o contrato estava a ser redigido a senhora  veio meter conversa comigo. E eu não tenho problema nenhum em dizer quem sou mas também não ando a apregoar que sou cigana, não tenho necessidade disso. E essa senhora já tinha feito voluntariado no bairro e eu disse que era dinamizadora e ela perguntou se eu era cigana e eu disse que sim. No dia seguinte a senhora pediu-me o contrato e eu confiei nela. Disse que tinha que ir ás finanças e depois ligou-me a dizer que já não podia alugar porque a vizinha soube que eu era cigana e não convinha estar a habitar com pessoas não ciganas. Aí senti. Senti muito o racismo por ser cigana.

 

Como é sentir isso?

É muito mau, nem fazes ideia. Eu tive os primeiros dias super triste . Nunca tinha sentido isto. No final de contas dizem “é cigano…” mas aqui essa cigana foi ela porque ela enganou-me. E uma senhora que até era doutorada, dava aulas e estava agora na reforma… Pelo menos dava-me casa, uma oportunidade. Até entendia que dissesse que não queria barulho, é normal, temos de respeitar quem esta ao nosso lado. Pelo menos que me tivesse dado uma oportunidade. Não me deu.

 

Achas que na tua vida te foram negadas oportunidades por seres cigana?

Eu não posso dizer para me darem trabalho porque eu também tenho de me capacitar para isso. Eu sei de antemão que não posso pedir um emprego porque primeiro, pedem experiência, depois porque pedem pelo menos algum conhecimento na área. Por isso, para pedir emprego também temos de ter a noção de onde vamos pedir e se temos capacidade. Eu sei de muita gente que tem sido negada mas eu ainda não senti isso. Neste momento trabalho numa escola como auxiliar e já estou lá há 6 meses. Foi uma novidade para toda a gente porque eu nunca escondi que sou cigana até fiz questão de dizer. Depois os meninos no recreio primeiro acharam-me estranha e perguntavam se eu era espanhola e aos poucos explicava-lhes que era cigana. Os miúdos não se acreditavam e até diziam que eu era branquinha. São crianças e agora esta tudo bem, sou acarinhada. E se elas falam é porque não tem conhecimento de causa e falamos do que é e do que não é. Agora vou ter de sair no dia 13 e as pessoas já dizem que vai custar muito eu ir embora.

 

E os projetos de ativismo, achas que estão a ir bem na comunidade cigana?

Eu acho que sim. Vou dar alguns exemplo. Há Opré Chavalé. A coisa está a ser positiva, está-se a fazer alguma coisa. Depois acabamos por nos conhecermos uns aos outros. Eu tenho uma amiga no Algarve, que conheci por causa do ativismo, e ela é bombeira: a única bombeira cigana em Portugal. E também estuda educação Social na faculdade. Depois temos a Vanessa a trabalhar no projeto de Sta Tecla. Começou por ser lá dinamizadora e agora também está a estudar na faculdade. E a Maria Gil que é cigana e atriz. E a Toya e o Bruno que fizeram agora o projeto com Soutelo e que também estão na faculdade. Então é positivo e claro que o ativismo está a fazer muito sentido. Dizem que há cerca de 3 anos, desde que as mulheres começaram a entrar no ativismo, a coisa desandou. O que eles não conseguiram fazer em 20 anos, as mulheres desde que entraram no ativismo estão a conseguir. E isso é muito bom.

 

Guiomar Sousa

 

E como é que a comunidade reage a ter uma mulher a fazer estas coisas todas?

Há coisas boas e más. Se eu disser que toda a gente me dá palmadinhas nas costas estou a mentir. Não me dizem diretamente mas há sempre pessoas a quem incomoda. Mas isso a mim não incomoda. Incomodaria se eu tivesse de deixar de as fazer. Uma vez fui a um seminário falar sobre o percurso da mulher cigana em Portugal e uma senhora de uns 60 e tal anos, no fim, veio falar comigo e disse que as mulheres, de forma geral, em Portugal já fizeram este caminho há uns 50 anos atrás, disse : “- as nossas mães já foram julgadas pelas nossas avós ou até mais pelas vizinhas. Elas ficaram em casa a cuidar dos filhos ou a trabalhar com os maridos mas elas queriam outras coisas para nós, não este tipo de vida. Muitas meninas foram para a cidade estudar e essas vizinhas diziam que elas se iam perder”. Por isso o que estou a fazer agora, é claro que há gente a torcer o nariz e que me julga. Mas também há gente que me aplaude, apoia e ganha força para fazer igual.

 

Guiomar, quais os próximos projetos e sonhos?

Eu gosto muito de trabalhar no ativismo, mas não há remuneração. Eu quero trabalhar no que gosto mas preciso de remuneração no fim do mês. Adorava trabalhar como mediadora da comunidade cigana. Trabalhar na câmara junto das pessoas e nas coisas que mais precisam que são, neste momento, a habitação e a educação. É o mais grave no nosso país, neste momento, a habitação em primeiro lugar e depois a educação. Há algumas condições tão más que não podemos exigir educação enquanto essa habitação não esteja modelada. Assim, um dos meus objetivos é trabalhar na área social. Sei que não posso trabalhar em certos patamares porque não tenho estudos mas quero pelo menos estar ligada a isso. Quero ir lá e levantar a voz e servir de exemplo. Também quero fazer projetos e criar uma associação que,na brincadeira, até já a identifico como Movimento das Mulheres Ciganas em Portugal. Quero mesmo um dia que isso vá em frente. A rede já está feita, temos boas pessoas, agora é ir tentando.

 

Como mulher cigana, o que gostavas de ainda ver acontecer ás outras mulheres ciganas?

O que já está a ser feito, as mulheres ciganas nas universidades. Mulheres em qualquer área de trabalho. Uma mulher bombeira e cigana, não é normal. Uma mulher cigana a fazer teatro, como a Maria Gil. A Toya tem um sonho, que agora já não pode acontecer por causa da idade, queria ser médica. Mas quem sabe a filha dela não o vai ser?

 

Entrevista: Joana Torres | Fotos: Nélida Cardoso
 

Mercedes de Jesus Andrade: “Antigamente a mulher era um trapo, agora não, também impomos a nossa dignidade”

Mercedes de Jesus Andrade, primeira mulher taxista em MangualdeDona Mercedes é natural de Guimarães de Tavares. É taxita há 42 anos, a primeira mulher com esta profissão em Mangualde. Já viveu em África, onde também foi pioneira, sendo a primeira mulher instrutora de condução.

 

Quando é que começou a trabalhar como taxista em Mangualde?

Há 42 anos. Eu e o meu marido comprámos as licenças e começámos logo a trabalhar, cada um com o seu carro. Atualmente tenho o CAP válido até 2020 e acho que não vou aguentar até lá, mas tenho muita pena. Faço isto porque gosto.

 

O que a levou a escolher essa profissão?

Em África fui instrutora de condução de automóveis durante 15 anos. Fui a primeira mulher instrutora de automóveis em África. Ainda hoje, estou muito ligada aos carros. Por vezes quando vou ao médico, o Dr. pergunta-me: “Dona Mercedes onde deixou o seu carro?” e eu respondo-lhe: “No parque Sr. Dr.”, e ele diz-me: “Porque não coube a porta, senão também entrava.” E eu respondo-lhe: “Encontro-me mais segura no meu carro, do que em minha casa” e o Sr. Dr. desata-se a rir. Estou ligada aos carros.

 

Como era ser a única mulher taxista em Mangualde, naquela altura?

Para mim foi sempre bom. Vou dizer-lhe uma coisa que não vai acreditar. Os meus clientes para mim, além de clientes, que me têm ajudado muito, são a minha família e os meus amigos. Eu adoro o meu trabalho. Ainda no domingo passado vieram dois senhores para me comprar a licença, não chegámos a acordo e não vendi porque está-me no sangue. O carro é a minha vida! Eu adoro o que faço.

 

Como reagiam as pessoas?

Chamavam-me de toda a parte. Mesmo a malta nova sabia toda o meu nome, eu passava e diziam: “Olha a Dona Mercedes!”.

 

Mercedes de Jesus Andrade, primeira mulher taxista de Mangualde

 

Sempre foi respeitada?

Nunca ninguém me disse: “Chega-te para aí!”. Sou natural daqui de Guimarães de Tavares, esta casa era dos meus pais.Gosto muito de estar aqui, as pessoas falam comigo, eu falo com elas, rio-me com elas, pinto o “ceco e o caneco”, mas tudo com educação. Nunca ninguém me faltou ao respeito.

 

O que é gosta mais na sua profissão?

Gosto de tudo. Fui para África com 14 anos. Quando regressei não conhecia nada, o que é que podia saber a viver com os meus pais numa aldeia. Quando precisava ir a um sítio que não conhecia, perguntava a alguém, nem que fosse um rapaz novo. Falam muito mal da mocidade, mas eu não. Falo muito bem da mocidade, foi quem mais me respeitou neste meu trajeto. Eu perguntava a direção e o jovem a quem perguntava dizia-me: “A senhora não se importa que eu vá no seu carro que eu ensino-lhe?” . Metiam-se dentro do meu carro, com os meus clientes e iam-me ensinar. Fui sempre respeitada.

 

E o que gosta menos?

Nada. Gosto de tudo.

 

Onde gostava que o seu táxi a levasse?

Já corri Portugal inteiro. Ia com os meus clientes que vinham da América e ficava cinco e seis dias com eles. Pagavam-me a estadia, o tempo de espera. Agora já não é assim, agora há autocarros para todo o lado.

 

E qual é o destino que gosta mais de ir?

Acho que é a autoestrada para qualquer parte. Gosto de todo o lado. Quando entro para o meu carro, seja para onde for,  não me faz diferença nenhuma. Pode ser de dia ou de noite. Não tenho medo, nunca tive medo. Há aqui uma vizinha minha ao cimo da rua e diz-me: “Ah Dona Mercedes, gostava de ser como você. Você vai de noite para todo o lado e não tem medo nenhum!” e eu digo-lhe: “Pois não! Porque o medo nasce do medo!”

 

De que é que tem mais saudades?

Só vou ter saudades de deixar o meu carro, porque o meu carro é a minha vida. Note bem, 42 anos de taxista e 15 de instrutora e graças Àquele que está lá em cima, nunca ninguém bateu comigo, nem eu com ninguém. Essa é uma honra que eu tenho.

 

O que é que lhe falta fazer?

Quero continuar a viver, até que Deus queira, ser amiga das minhas amigas. Eu agora tenho um senhor à minha espera em Mangualde, foi fazer análises e eu achei-lhe graça, porque eu disse-lhe: “Se eu demorar, tenho lá uma entrevista, você apanha outro chofer e vai para cima com ele.” Ele respondeu-me: “Eu? Ir com outro chofer? Era lá ir com outro chofer era o que faltava! Eu espero que a senhora venha!”.

Os meus clientes dizem-me: “Sabe porque é que gostamos muito da senhora? Porque a senhora está sempre bem-disposta!”. Às vezes nem sempre… Quando o meu marido morreu, pode haver marido tão bom, mas melhor do que ele não havia, eu senti muita falta dele. Esteve cinco anos sem trabalhar com um tumor no pulmão, eu trabalhei para mim e para ele. Quando ele morreu, era assim, ia levar as clientes a rir-me, a rir-me e e elas diziam-me: “Ainda bem que você está sempre bem-disposta!” e eu dizia: “Parece!”. Deixava os clientes e quando ficava sozinha no carro chorava e depois dizia: “Oh meu Deus, porque é que estou assim? É natural da vida!” até que me convenci disso, junto dos médicos, que se dão muito bem comigo, não só por mim mas porque levo lá os clientes, eles diziam-me: “Oh Mercedes, tens que encarar! Foi ele como podias ser tu! Ele já cumpriu e tu estás cá para cumprir!”. Digo-vos isso de verdade, quem vai morrendo, cumpriu, e quem fica cá, está cá para cumprir.

 

Mercedes de Jesus Andrade, primeira mulher taxista de Mangualde

 

Quantos  filhos, netos e bisnetos tem? O que é que aprendeu com eles?

Tenho dois filhos, quatro netos e quatro bisnetos. O que é que aprendi? Já aprendi tanto toda a minha vida, já vivi tantos anos!

 

De que forma considera que o seu percurso de vida contribuiu para diminuir as diferenças entre os homens e as mulheres a nível de igualdade de oportunidades?

Antigamente a mulher era um trapo, agora não, também impomos a nossa dignidade.

 

 

Entrevista: Tânya Bettencourt | Fotos: Denise Bettencourt

Marta Pereira da Costa: “Temos de tirar o medo e ir para a frente”

Marta Pereira da Costa, guitarristaGuitarrista de guitarra portuguesa, Marta lançou o seu primeiro álbum o ano passado, contendo vários estilos musicais e com a participação de músicos reconhecidos em Portugal e internacionalmente.

 

 

Quando começaste a aprender a tocar a guitarra portuguesa?

Deixa-me fazer as contas… toco há 18 anos. Então já sou uma maior de idade na guitarra! Os primeiros tempos são muito complicados. Não consegues ver muitos resultados, não tiras um som muito bom, e não consegues ter rapidez. Depois quando passas ali uma barreira, já começas a divertir-te mais, a ter mais gozo a tocar.

 

Como foi aprender a tocar num território de homens?

Quando comecei a aprender e via os homens a tocar a guitarra, queria ser como eles. Nos primeiros tempos tive muitas lesões e tendinites, porque eu tocava sem parar, muito esforçada para a minha idade. Queria ganhar força nos dedos, queria tocar tão rápido como eles. Depois aos poucos percebi que, embora não achasse que seja impossível tocar como eles, a minha abordagem da guitarra era diferente. E então deixei de me comparar e tentei procurar um caminho para mim.

 

Como é esse caminho? O teu primeiro disco é uma fusão entre vários géneros, tem várias músicas fora do mundo do fado.

A guitarra portuguesa tem um som incrível: um som íntimo com uma cor muito forte. Qualquer estrangeiro quando vem cá, ou mesmo quando temos concertos fora, se emociona com o som da guitarra. Por isso quis fazer um CD onde a guitarra fosse a voz, e quis ligar essa voz com vários géneros musicais. Também com o fado – porque o fado nunca vai estar separado da guitarra – e temas tradicionais, mas também quis pôr a guitarra a ir por outras modalidades. Gravei um tema de jazz com o Mário Laginha e fiz parcerias com músicos estrangeiros. Uma  das parcerias foi com a Tara Tiba, uma cantora iraniana com uma vocação incrível, que agora reside na Austrália por ser proibida de cantar no seu país por ser mulher. O canto dela é muito importante: é muito diferente do nosso e ao mesmo tempo muito intenso.

 

Gravou uma canção com o Richard Bona, um dos músicos mais reconhecidos do jazz. Como se encontraram?

Ele é um autor incrível, um cantor, músico, um dos melhores baixistas do mundo. Conheci-o num workshop em Lisboa, no fim do qual fui falar com ele. Apresentei-me e no meio da conversa eu disse: “Olha, eu vou gravar um disco e adorava gravar um tema contigo. Desculpa a minha ousadia, mas gostava mesmo muito, porque gosto muito do teu trabalho”. E ele: “How good are you?” E eu: “Man, I’m the best!” Ele sorriu, trocámos e-mails e enviei-lhe algumas das minhas músicas. Ele gostou do meu trabalho e escolheu um tema escrito pelo Rogério Charraz, um amigo meu. Combinámos e gravámos o som em Lisboa e depois o vídeo em Paris.

 

“I am the best!” É uma resposta cheia de confiança.

Sim, estava louca. Não sei o que me aconteceu!

 

Marta Pereira da Costa, guitarrista

 

Não costumas ter essa confiança em relação ao teu trabalho?

Sou tímida, não consigo falar para mais do que duas ou três pessoas, mas quando toco a guitarra consigo tocar para três mil pessoas se for preciso. Tenho muitos complexos, como se calhar qualquer pessoa tem, mas aceito-me como sou. Quando a guitarra me fez um clique eu fui atrás com toda a força. Acho que é uma força que vem um bocado de dentro: não tinha experiência nisso, não sabia como ia ser, é muito arriscado, me tirou muitas noites de sono, mas ao menos tinha tanta vontade de fazer, e é uma coisa que faço com tanto gosto, que eu não tive dúvidas em arriscar. Ainda hoje não me arrependo de nada. Estou muito mais cansada, durmo menos, mas agora trabalho para mim, todos os dias a toda hora. Eu adoro tocar, partilhar com as pessoas… Não sei descrever, mas é uma sensação incrível. É muito gratificante.

 

Quando começaste a pensar que podias viver da música?

Eu acho que passei essa barreira em 2012, quando gravei o primeiro disco, que foi o disco do meu marido da altura. Eu não sabia tocar sozinha, antes tinha feito já vários concertos, mas tocava sempre ao lado do meu professor, o Mário Pacheco. Só depois de ter gravado o disco é que conseguia imaginar que era possível. O álbum tem sido um passo importante, por que tive que gravar, tive que estudar todas as fases, tive que criar versões minhas, tive que pensar em introduções e começar a tocar sozinha.

 

Nessa altura trabalhavas como engenheira. Foi a gravação do disco que te encorajou a trocar a engenharia pela música?

Sim, foi neste período que decidi deixar a engenharia. Voltei a estudar música, comecei a ter muitas aulas de guitarra porque queria aproveitar o tempo todo para estudar. Comecei a tocar nas casas de fado, começámos a preparar a produção do meu CD, fazer concertos… isto foi em 2012, já quase cinco anos atrás.

 

Já estiveste em vários territórios dominados por homens. Estudaste engenharia, jogavas futebol e agora tocas a guitarra portuguesa. Nunca te sentiste mal-vinda?

Na engenharia já era muito comum estar lá mulheres também, mas na área da guitarra portuguesa só somos duas mulheres, a Luísa Amaro e eu. E ainda tenho medo que eles, homens, não me aceitem. Acho que em geral tenho sido muito bem aceite, mas constantemente com o medo de não ser bem assim. Por isso estou tão dedicada para fazer as coisas bem, que eles valorizarem o meu trabalho e o meu esforço. Quando comecei a tocar a guitarra nem pensei. Só queria aprender, comecei a aparecer nas casas de fado com o meu pai, com a guitarra nas costas, e eles achavam piada. No princípio eu ouvia e imitava logo qualquer coisa, até me chamavam copy-paste no Clube do Fado. Mas eu ainda naquela altura não pensei. Foi mesmo uma brincadeira.

 

Marta Pereira da Costa, guitarrista

 

Como veio este outro caminho de improvisação, de experimentar com o jazz e o world music?

Isto tem sido um caminho natural. Por exemplo eu morro do medo de usar a palavra jazz. Desde criança toda a minha formação era clássica: por exemplo toco bem o piano, mas não sou capaz de improvisar como fazem os músicos de jazz. No princípio com a guitarra também não conseguia.

 

Como conseguiste desconstruir estes padrões da formação clássica?

Temos de tirar o medo e ir para a frente, e tocar mesmo que saia mal. Temos de perceber que não vai ser assim tão mau. Este processo ainda está a acontecer: ainda tenho medo, mas já chego mais à frente.

 

Tens algum sonho em relação à carreira ou à vida?

Gostava de crescer como músico, fazer concertos nas salas mais importantes e ver o nosso país, os portugueses orgulhosos a nossa tradição. Já fui muitas vezes para fora e sempre quando vou tocar numa sala estrangeira, me emociona muito. Sinto sempre a responsabilidade de levar a nossa cultura para o estrangeiro. Sou patriótica, gostava de conquistar um público estrangeiro, mais e mais alargado, para cultura portuguesa.

 

 

Entrevista e fotos: Borbála Kristóf

Júlia Duarte: “Com ele muito contrariado comigo, mas levei a minha avante”

Júlia DuartePescadora de 68 anos, da Fonte da Telha. Começou a trabalhar como pescadora com 21 anos de idade e foi a primeira mulher a ter a Cédula Profissional do Sul do Tejo.

 

 

Como surgiu a ideia de trabalhar como pescadora? Vem de uma família de pescadores?

Não, pelo contrário, a minha infância nunca foi andar no mar. O meu pai tinha cá, na Fonte da Telha, uma mercearia, taberna, restaurante, tudo junto. E a minha vida foi a ajudá-lo. Eu gostava muito ser cabeleireira ou enfermeira. Mas eu sempre adorei o mar. Quando casei, o meu marido era pescador e quando ele foi para a pesca eu disse que queria ir também. E ele: “não, não vais”. E eu: “Sim, senhor! Se vais, também eu vou!” E fui assim mesmo à pesca, com ele muito contrariado comigo, mas levei a minha avante. E pronto, comecei a andar no mar.

 

E como é que o seu marido fez a sua paz com isto?

Ao fim de uma semana já estava tudo bem.

 

Era a única mulher a pescar?

Naquela altura havia uma ou duas pescadoras, mas só trabalhavam em terra, não andavam no mar como eu andei. Antigamente havia a arte do arrasto e a outra que chamam a arte xávega. Era para puxar, que várias mulheres nessa altura puxavam a rede, com os cintos à cintura. Era tudo assim, manual. E eu ia sozinha com o meu marido num barco a remar, porque naquela altura não haviam cá motores. E comecei a minha vida ali. Ainda pesquei uns sete ou oito anos sem a cédula marítima. Ao fim destes anos, um senhor convenceu-me que como andava no mar, mas sem cédula, era melhor ir fazê-la.

 

Foi difícil fazer a cédula?

Foi muito giro. Tinha que apresentar a escolaridade que tinha, tinha só a quarta classe. Tinha que ter um registo criminal e o atestado médico. Tirar o registo criminal foi muito engraçado. Perguntaram-me porque é que queria, e quando eu disse que queria ser pescadora, eles mal acreditaram: “Pescadora a sério? Para andar no mar?” Depois chamaram lá todos os colegas para mostrar que eu era a primeira pescadora a tirar a cédula marítima. Deram-me os parabéns, acharam engraçado, e disseram que merecia uma garrafa de champagne! Depois fui a Trafaria entregar os documentos necessários e tinha que nadar. Haviam alguns pescadores que não sabiam nadar na altura, o que era muito perigoso. No dia que marcaram estava a chover. Chegamos à porta da agua com o senhor do escritório e ele disse que eu tinha que nadar até uma boia. Eu disse que até aquela boia no ia, que molhar-me para ir ali não valia a pena. Eu só ia se for para nadar até o fundo. E ele respondeu: “Eu sei que a senhora sabe nadar.” E afinal não foi preciso ir ao banho.

 

Júlia Duarte, pescadora

 

É perigoso andar no mar?

É um trabalho muito perigoso. Uma vez quando estava grávida fui ao fundo. E outra vez quando fui pescar com o meu marido, começou a haver muito vento. Cada vez mais mar e vento e ondas. Chegámos a terra, nem durou uma quarta hora e chegou uma tempestade que se tivesse apanhado essa tempestade, a gente tinha ficado no mar. Eram vagas muito grandes e o barco era pequeno. Mas o resto andou tudo bem.

 

Depois sempre continuou a pescar com o seu marido?

Sim, e depois comprámos barco, arrasto, tratores. Eu era a única mulher ali a andar de trator. As outras achavam muita piada eu andar ali sozinha de trator com tantos homens.

 

Continua a trabalhar no mar?

Fui operada a um rim e sou reformada por invalidez por isso não posso fazer esforços. A minha idade já não mo permite. Porque é um trabalho que exige muito da gente, é um trabalho de muito esforço. E é preciso gostar. O meu marido também já está um bocado velhote, agora é o meu filho que vai ao mar.

 

Júlia Duarte, pescadora

 

Tem saudades?

Tenho, quando tive de deixar de ir, fiquei com muita pena. No principio tinha um grande desgosto. Quando os via todos à tarde a ir para o mar tinha uma pena grande. Fiquei com muitas saudades daquela força de vontade de ir para o mar, de mandar, daquela labuta com eles todos, daquela convivência, porque nós temos muita convivência. Mas sempre fiquei ligada ao mar e a pesca. Depois fazia grandes parodias com o trator: no meu trator só iam mulheres! Sete mulheres no meu trator! Pronto, seguiu assim a minha vida, acabou e ainda não morri! Mas se fosse necessário, continuava a fazer a mesma coisa.

 

 

Entrevista e fotos: Borbála Kristóf

Sofia Branco: “Para fazer a investigação levei dois meses e meio sem falar com ninguém”

Sofia BrancoSofia Branco é jornalista e trabalha na Agência Lusa desde 2009. Antes disso passou pelo Público, jornal onde publicou uma das primeiras reportagens que abriu o debate político sobre a Mutilação Genital Feminina. Dar voz às mulheres é o mote que a acompanha.

 

Já é jornalista desde 1999, quando começou a trabalhar no Público. Como é que descobriu que o jornalismo era a profissão para si?

A resposta é básica. Eu queria mesmo era escrever, depois o jornalismo veio como opção lógica – até porque não achava que iria ser escritora, no sentido ficcional do termo. Queria escrever, mas sobre a realidade. E acho que tenho algumas características que acho fundamentais para um jornalista que é a curiosidade, o querer saber mais, a capacidade de ouvir as pessoas. E tinha também a hipótese de traduzir o mundo, fazendo uma espécie de filtro entre as pessoas e o que se passa de uma forma mais simples, mais curta para que as pessoas consigam entender realmente o que se passa numa realidade que é muito complexa. Então foi nessa base de querer escrever. Fiz um curso normal e só na Universidade optei por jornalismo.

 

Já é jornalista desde 1999, quando começou a trabalhar no Público. Como é que descobriu que o jornalismo era a profissão para si?

A resposta é básica. Eu queria mesmo era escrever, depois o jornalismo veio como opção lógica – até porque não achava que iria ser escritora, no sentido ficcional do termo. Queria escrever, mas sobre a realidade. E acho que tenho algumas características que acho fundamentais para um jornalista que é a curiosidade, o querer saber mais, a capacidade de ouvir as pessoas. E tinha também a hipótese de traduzir o mundo, fazendo uma espécie de filtro entre as pessoas e o que se passa de uma forma mais simples, mais curta para que as pessoas consigam entender realmente o que se passa numa realidade que é muito complexa. Então foi nessa base de querer escrever. Fiz um curso normal e só na Universidade optei por jornalismo.

 

Nessa altura considerava a luta pela igualdade de género?

Isso veio um pouco mais tarde. Eu tive uma educação nessa base, onde não fui propriamente tratada como uma “menina”. Eu e a minha irmã (7 anos mais nova) costumamos dizer a brincar que fomos educadas como “rapazes” no sentido em que a minha mãe sempre fez tudo em casa e não nos quis ensinar nada daquelas coisas de que as mães às vezes querem ensinar às filhas. Ela teve uma história em que realmente ela tinha de fazer isso tudo. Eram muitos irmãos e ela não tinha propriamente uma relação muito próxima com os pais, era assim daquelas famílias muito grandes onde as irmãs faziam tudo – Porque os rapazes não faziam absolutamente nada. E ela, para contrariar um bocado isso, educou-nos de outra maneira.

Fui intervindo (em relação à igualdade de género). Mas acho que assim de uma forma mais séria, racionalmente pensando, é só como jornalista que começo a manifestar interesse. Comecei a procurar falar com mulheres quando só se fala com homens, procurar diversificar fontes nesse sentido e isso tem de se fazer todos os dias, o que dá muito trabalho. Há muito pouca gente a fazer, por isso é que as pessoas se queixam que os jornalistas falam sempre com os mesmos. E ir convencê-las a elas ainda mais trabalho dá. Porque as mulheres quando são boas naquilo que fazem, são muito difíceis de convencer a falar sobre aquilo que fazem. Não estão habituadas a fazê-lo, desconfiam imenso, acham que podem fazê-lo menos bem e isso trará consequências e portanto não arriscam tanto. Já os homens não querem saber, falam de qualquer maneira, até do que não sabem. Isto é um bocado estereotipado e generalista. Mas é muito assim, o espaço público que é muito dominado por homens.

 

Sofia Branco

 

Na altura em que começou a trabalhar como jornalista podia fazer a diferença na luta pela igualdade de género?

Sim, completamente. Acho que qualquer pessoa pode fazer a diferença, porque a diferença começa a título individual, quer no jornalismo e na forma como se faz jornalismo quer nos temas que se trata. Eu acho que os jornalistas muitas vezes dizem “Eu tenho de fazer o que me pedem” e isso não é bem assim. O jornalismo até é das profissões que mais margem tem para isso. Tem-se sempre a opção de dizer “eu não vou falar com essa pessoa, conheço outra que é muito mais interessante e vou tentar falar com essa”. Tem-se sempre de convencer os editores mas acho que há sempre uma hipótese de fuga, no sentido de fazer outra coisa. Nós temos de facto esse poder de seleção, o poder de perguntar, o que é enorme. Temos de ter noção disso porque nos dá muita responsabilidade. A forma como se pergunta e o que se pergunta condicionam as respostas que vamos obter. Imaginando que vou falar com um ministro qualquer e o assunto não é esse (quanto à igualdade de género) mas eu posso fazer-lhe uma pergunta sobre isso ligando ao assunto em questão. Sempre que vem a propósito nunca deixo cair uma pergunta sobre igualdade de género. Só para dar um exemplo, fui acompanhando a eleição do Guterres para Secretário-geral da ONU e eu continuei sempre a dizer que havia uma grande parte da população que queria uma mulher naquele cargo. Isso deixou de ser dito porque de repente ele era o Português que estava lá – mas esse argumento não me é suficiente-. Portanto ele próprio foi-se comprometendo com a igualdade, escolhendo mulheres para os cargos logo a seguir ao dele, as pessoas de confiança dele são todas mulheres, de diferentes geografias. Ele foi respondendo a isso também. Mas é preciso fazer este “vigiar”.

 

Quando começou a trabalhar era, de alguma forma, fácil escrever sobre a igualdade de género ou ser feminista numa redação na altura em que começaste?

Não. Ainda agora não é muito, mas agora é mais politicamente incorreto não se deixar que isso aconteça. No início era muito difícil. O “lá vens tu com essa coisa das mulheres” era uma frase que eu ouvia muitas vezes mesmo. Acho que na maior parte dos casos ainda pensam mas já não dizem, porque já não é politicamente correto dizer.

 

Havia algum assunto completamente tabu?

Eu apanhei o primeiro referendo do aborto e o segundo. E essas alturas não foram fáceis nas redações – são situações que dividem muito, desde logo as mulheres e as feministas, que se posicionam de maneira muito diferente sobre o assunto. Os argumentos que usam, embora possam defender a interrupção voluntária da gravidez são muito diferentes entre grupos feministas, portanto aquilo dava questões de meia-noite. Mas havia obviamente um conservadorismo maior entre os homens da redação. Essa altura foi interessante, porque eles não colocavam a questão como direitos das mulheres, mas podiam colocar como saúde pública. A história do direito ao corpo era algo que eles não suportavam ouvir e isso dizia-se nas redações.

 

A primeira mulher a ter carteira de jornalista em Portugal, Manuela de Azevedo, morreu no dia 10 de Fevereiro. Ela teve alguma influência no seu trabalho?

Eu confesso que não a conheci. Conheci-a só agora numa homenagem que lhe fizemos em Agosto exatamente no dia em que ela fazia 105 anos e nós fizemos lá uma homenagem no sindicato em conjunto com o Museu Nacional de Imprensa onde esteve presente o presidente da república. Mas ela era uma figura! Tinha uma memória inacreditável aos 105 anos – Eu não vou estar assim daqui a 10 anos, nem agora estou assim! Ela era incrível, lembrava-se de coisas com um detalhe impressionante. Ficámos todos de boca aberta. Era uma pessoa que estava muito atualizada, não era apenas aquela coisa das memórias do passado, ela contava coisas com muita piada e usava aquilo para conselhos futuros. Ela disse lá uma frase que me marcou: “O jornalista diz o que pensa e pensa no que diz”. O que eu acho que é uma máxima ótima porque aí está a noção de responsabilidade mas de liberdade também. Porque não é de facto um cidadão como os outros, é um cidadão com direitos especiais e deveres especiais. Haviam muitos jornalistas que estavam lá por causa do Presidente da República mas que acabaram por ficar a ouvi-la também porque eram muito mais novos e porque são relatos de um outro tempo. Ela trabalhou até aos 80 anos. Não propriamente no ativo de redação já, mas trabalhou e além disso escreveu vários livros, escreveu poesia – era uma mulher incrível.

 

Sofia Branco

 

Acha que é muito possível mudar as coisas através do jornalismo?

Claro! Este papel é fundamental, principalmente se bloqueares a discussões para certos assuntos. Agora o foco é neste lado económico e haverá uma nova discussão sobre a introdução de cotas. Portanto, vem aí daquelas discussões fantásticas sobre mérito para as quais eu não tenho paciência nenhuma. Confirma-se, com as cotas da política, de que elas eram precisas. Não adoro cotas, não é uma ideia muito agradável, mas a cota é temporária. É até criar o hábito.

 

A Sofia foi eleita presidente do Sindicato de Jornalistas em 2014. O que é que isso te trouxe? Foi um passo importante para as mulheres jornalistas?

Trabalho! (risos) Acho que nenhum de nós tinha grande noção do que isto implicava. Hoje em dia já só se pode participar nisso com muito esforço pessoal, porque a lei concede muito poucos direitos a quem faz este tipo de trabalho. Nós só temos direito a um dia de dispensa por semana. Estamos constantemente a negociar com os sítios onde trabalhamos. Ainda bem que trabalho num sítio semipúblico. Nos privados é muito mais difícil de o fazer. Os jornalistas deixaram cair um bocadinho isso porque muitas vezes dá problemas.

Dá mesmo muito trabalho, mas é mesmo importante que se faça. Acho que já conseguimos alterar um bocadinho a imagem de um sindicato que era visto, pela nova geração, como muito desfasado da realidade. Continuo a achar que há um pensamento na nova geração que não percebe muito bem a importância dos sindicatos, da mesma maneira que não percebe bem os partidos políticos. Já não se reveem em estruturas tradicionais e um pouco mais antigas. E é importante mudar isso. Não tenho nenhuma receita milagrosa, mas há coisas que só os sindicatos é que podem fazer. Não quer dizer que os sindicatos não se devam adaptar, e nós tentamos fazer um bocado isso, como com os trabalhadores independentes que não existiam para o sindicato – até porque a precariedade é o grande assunto-. E depois conseguimos fazer o congresso com muito esforço.

 

Foi um passo importante para as mulheres jornalistas?

Foi, e foi uma opção deliberada também. Somos três fundadores – um homem e duas mulheres – e eu achava que quem tinha mais perfil até era ele. Mas eles acharam que não, que quem devia concorrer era uma mulher. É uma fase de rutura e ele já se achava muito velho nessa altura para concorrer. Nós somos, de facto, de outra geração e ele achou que eu conseguia melhor fazer a ponte com esta geração mais jovem.

 

Ao longo da sua carreira, a Sofia deparou-se com a questão da Mutilação Genital Feminina, fizeste reportagens e escreveste um livro sobre isso. Como é que te apercebeste que a excisão é, de facto, uma prática real?

Fui fazer uma conferência de imprensa normal convocada pela UMAR em conjunto com ativistas guineenses que estavam cá. A conferência tinha um visionamento de um filme que me chocou imenso porque nunca tinha visto nada do género. Conhecia o tema, mas assim muito por alto. Acabei por ficar lá a conversar com as ativistas guineenses e uma delas disse-me: “Não te admires que isso aconteça aqui”. Foi como se me tivessem atirado uma pedra à cabeça. Aquela coisa de “temos muita pena do que estamos a ver naquele filme, mas aquilo não é passado aqui, é lá longe”, dá-nos um distanciamento um bocado diferente do que nós pensamos. E isso começou aí, eu comecei a investigar. Concluí que havia tudo para que se passasse, mas eu não vi nada. Ninguém sabe propriamente de nenhum caso, só se ouve falar. Não é como em França ou como em Inglaterra que houve efetivamente casos – e que foram julgados.

A excisão tem a ver com uma tradição e essa tradição faz-se no solo da Guiné. O que acontece muito em Portugal é que eles vão de férias, isso acontece lá e voltam. O que não deixa de ser uma questão.

Isto foi uma investigação que para eu escrever o primeiro artigo levei dois meses e meio. E trabalhei esses dois meses e meio sem falar com ninguém – o segredo é mesmo a alma do negócio-. Quando terminei, Cheguei ao diretor do público e disse: “tens aqui esta investigação. Mas isto é para publicar do princípio ao fim como está, porque senão eu vou publicar noutro sítio”. E deu oito páginas de jornal, que era impensável hoje.

 

E sente que as pessoas se interessaram pela reportagem?

Claro que sim. Aquilo teve um efeito gigantesco. É nestas alturas que se percebe o que vale o jornalismo. Ninguém sabia do que é que se estava a falar, ficou tudo em choque – e o primeiro choque foi sobretudo político. Foi uma batalha que uniu todos os partidos, ficaram muito chocados com a possibilidade de isso poder acontecer aqui.

Se se pensar no tema da mutilação genital feminina, a atenção que tem é completamente desproporcional à quantidade de pessoas que afeta aqui. Isso levou logo a que universidades fossem estudar o assunto. Houve vários jornalistas que fizeram trabalhos depois de mim, desde logo em televisão. E o tabu foi diminuindo. Há inúmeras coisas que se foram fazendo nas comunidades. Essa foi a grande investigação que fiz, sem dúvida nenhuma.

 

Sofia Branco

 

Em 2015 lançou o livro “As Mulheres e a Guerra Colonial”, no qual ouviu a história de 49 mulheres. O que é que encontrou quando foi falar com elas? De que forma é que viveram a guerra?

Nós já vamos ouvindo (histórias) e a Guerra Colonial está sempre mais ou menos presente. E ouve-se só homens a falar sobre o assunto e, mais uma vez, há esta coisa aqui dentro de se ouvir as mulheres. A guerra é uma coisa que afeta toda a sociedade e nunca houve uma discussão sobre os efeitos secundários. É evidente que os atores da guerra foram os homens, tirando as enfermeiras paraquedistas que foram de facto aos cenários, mas livros sobres as enfermeiras havia. Sobre as outras, as atrizes secundárias. E eu quis contar mesmo pela voz delas e eu fui buscar gente muito diferente quer em termos de classes sociais, com instruções muito diferentes e que contam histórias muito diferentes. Mas a ideia era mesmo dar um retrato de um país daquela altura contado pelas mulheres e que, qualquer mulher que vá ler o livro se encontre ali. E isso tem acontecido. Também foi muito engraçado perceber que vários homens, ex-combatentes, ainda hoje me falam e dizem que foi importantíssimo. A Guerra Colonial afetou muita gente e ainda é muito tabu em Portugal. Passou-se uma espécie de esponja por cima daquilo, mas nunca se tratou psicologicamente estas pessoas. E isto é muito grave. Hoje tem-se efeitos na sociedade que eu acho que têm a ver com pessoas não diagnosticadas e não tratadas na sequência dos efeitos da Guerra Colonial. Foi de facto uma geração que viveu muita violência e que, muitas vezes, trouxe essa violência para o seio da família. A história de uma filha, no fim do livro, é propositada – aquela filha tem a minha idade -. Podia ter acontecido que aquele pai violento tivesse incutido na filha essa história de violência. E gera-se aqui um ciclo de violência.

 

 

Entrevista: Margarida Henrique | Fotos: Pedro Pinto Basto

Ana Rita Chaves e G Fema: “Está na hora de eu despertar, não ficar cantando futilidades. Tenho que me valorizar como mulher e buscar os meus direitos”

Hip Hop de BatomAna Rita Chaves foi a criadora do Projeto Hip Hop de Batom, que pretende denunciar a violência contra as mulheres e contribuir para o seu empoderamento através do movimento hip hop. G Fema é uma jovem rapper que participou na primeira edição do projeto e que continua a transmitir os valores de igualdade e empoderamento das jovens.

 

Como é que surgiu o projeto Hip Hop de Batom?

Ana: Veio do empoderamento mesmo da mulher, principalmente dentro do movimento hip hop em Portugal. Eu venho do Brasil onde as mulheres já estão um pouco mais à frente nessa cultura: tem muitas “grafitteiras, djs e rappers”. E quando cheguei, em 2008, o movimento era muito pequeno em termos de mulheres e não tinham essa valorização, com todas elas reivindicando os seus direitos, falando das suas problemáticas. E eu achei que estava na hora. A ideia era começar um projeto com rapazes , mas em virtude de eu ter percibido essa situação, fizemos um projeto com mulheres. E fazendo a seleção das mulheres fui vendo cada dia mais as problemáticas que envolviam essas meninas: violência no namoro, violência doméstica. Existia uma urgência para dar a conhecer estas situações. Fomos pesquisando sobre a realidade de Portugal e aí vim a saber da mutilação genital feminina, que era muito mais grave do que eu poderia imaginar. Então fui encomendando às meninas que fizessem uma letra para falar um pouquinho sobre a sua história de vida ou de pessoas que conviviam com elas. E depois fizemos uma letra em conjunto, na qual cada uma falou um pouquinho da situação e do que conhecia. A G Fema cantou em criolo, a Gata em francês, a Madalena em português, a Gabriela em português do Brasil. O hip hop tem 5 elementos: rap, dj, grafitti, dança e conhecimento e sabedoria. Porque para fazer uma letra, você precisa de ter conhecimento. Estava na hora da mulher mandar as suas mensagens sobre o machismo, dentro do movimento mas também fora, no dia a dia dela e da sua comunidade. Nós tentamos capacita-las para a formação, como líderes dentro e fora da comunidade. Incentivamos algumas a voltar a estudar e a gente resolveu manter o projeto, mesmo quando o apoio acabou. Já temos 3 e vamos fazer outra versão, agora dentro das prisões: “Tomando rumo de batom”.

 

Os objetivos deste novo Batom são os mesmos?

Ana: Sim, denunciar a violência contra as mulheres. Todos os tipos de violência. Também a parte emocional, para elas ganharem força. Nós no geral, as mulheres, somos um pouco frágeis porque fomos criadas num mundo muito machista. Todas nós, até na minha geração. Eu sempre resisti a isso, mas as meninas que estão comigo, elas não são assim. Por determinadas carências que envolvem a situação da mulher, da mulher da comunidade, ela se elude ainda muito e às vezes se envolve. Principalmente vejo muitas a envolverem-se com presos, mas não é que não tenha presos que querem mudar de vida mesmo. Eu conheço muitos que já estão nesse processo. Mas muitos que não. E as mulheres acabam envolvendo-se pela carência e muitos saem e nunca mais querem saber delas. E também tem o lado da mulher na prisão, que está presa por causa dos homens. Porque ela se deixou levar pelo sentimento e se envolveu ao ponto de prestar determinados favores. Isso é uma coisa que eu vou querer trabalhar no Hip Hop de Batom 3, para poder ajudar as meninas a refletirem sobre a vida delas mas sem preconceito.

 

Vocês trabalham nas prissões mas mais especificamente com mulheres pressas?

Ana: Sim, trabalhamos na prisão de Tires. Uma das meninas do projeto saiu recentemente e ella está com a gente, firme. No início ella estava com muito receio mas diu uma palestra que até a juíza bateu palmas, foi fantástica. As meninas saem e permanecem com a gente para poder ser exemplo para outras meninas.

 

Hip Hop de Batom

 

O que tem de importante a cultura do hip hop para as mulheres?

Ana: Eu acho que é tudo. O protesto social. Através, principalmente do rap, poder estar mandando a mensagem delas, reivindicando, falando, contando a história de vida delas ou a história de alguém que elas conhecem. Por exemplo, a Magdalena contou a história dela mas também, numa outra música, contou a história de uma amiga que apanhou SIDA. Esta questão da SIDA também é muito importante e é um alerta que eu quero passar no Hip Hop de Batom 3, que não foi passada na altura porque ainda não conhecia a realidade de Portugal. Para colocar a temática, a gente tem que estudar mesmo a temática. A mutilação por exemplo, embora não seja uma coisa praticada no Brasil, aqui em Portugal já era, havia locais onde se praticava. É uma prática que muitos países, principalmente os PALOP’s, trazem para cá. Uma vez foi a um seminário sobre a mutilação genital. Até um dos oradores, oriundo de um pais onde a mutilação é praticada, falou sobre a situação dessas mulheres e colocou as mulheres em baixo, como se fossem sujas. Até nesta situação, não tens uma mulher ali que possa tomar voz e falar sobre a situação.

 

Vocês contam com o apoio de homens da cultura Hip Hop em Portugal?

Ana: Na altura do projeto, tivemos alguns MC’s que participaram connosco, como o Pina G. Tivemos dois rapazes que participaram e outros que estiveram ali com a gente, fazendo beats.

 

Quais são os maiores problemas que as mulheres de um bairro social passam e como foi para ti entrar no Batom?

G Fema: Discriminação. Para mim foi muito difícil, havia alturas em que não tinha muita credibilidade. Não tive muito apoio, e quando o tive, talvez eles quisessem outras coisas. Mas a minha família sempre me apoiou. Depois eu tive mais ajuda em termos profissionais, no estúdio e na fase de construção de letras, em beats.

 

Você trabalhava num projeto similar no Brasil, voltado para o Hip Hop. Quais são as principais diferenças entre a comunidade brasileira e a portuguesa?

Ana: Sim, como profissional no Brasil eu era produtora de rádio e televisão. E também trabalhava com a comunidade no Rio de Janeiro e em São Paulo. Eu acho que as pessoas do Brasil estão mais sedentas. Quando elas pegam numa coisa, elas agarram aquilo com unhas e dentes. Elas querem mesmo fazer, se envolvem muito. Aqui, até eles ganharem a confiança, passam mil coias na cabeça deles. Até você ganahar a confiança para trabalhar no projeto com eles, mesmo à serio, e que eles se envolvam…Eles pensam tudo.

 

Hip Hop de Batom

 

Quais são as razões pelas quais não há tanto envolvimento das pessoas em Portugal? É preciso mais ativismo na sociedade portuguesa?

Ana: É preciso uma linguagem mais própria. A gente têm o projeto na prisão e nos perguntam porque é que esse projeto dá tão certo e porque as famílias dos reclusos estão connosco. Porque nós conquistamos a confiança dos reclusos com um projeto na linguagem deles, onde eles se identificam e confiam na nossa experiência e no nosso carinho. Nós nos envolvemos com eles num projeto voluntário onde a gente não ganha dinheiro. O próprio Batom teve um financiamento de um ano, mas a gente continuou com o projeto três anos. Fomos das poucas associações que ganhou um financiamento pequeño e conseguiu manter o projeto mesmo depois de acabar. E o mesmo acontece na prissão. Últimamente estou triste porque agora estou sem motorista e o projeto está parado até eu conseguir uma outra pessoa para dirigir até lá. Isso deixa-me muito triste porque eu tenho uma responsabilidade com aqueles jovens. Mas como não consigo falar com eles, então reúno a família para a família mante-lhes motivados.

E também há muito preconceito. Eu já passei por isso quando cheguei com o projeto. Eu sou do movimento Universal Zulu Nation, que foi o criador do movimento Hip Hop no mundo, e quando falei que ia trazer o movimento para Portugal, muita gente discriminou porque eu era uma mulher, estrangeira e mais velha, dentro do movimento Hip Hop. Eu também senti na pele esse machismo.

 

As meninas que participam do projeto, elas estão conscientes dos problemas que elas passam ou é mais uma coisa que vocês vão construindo?

Ana: As duas coisas. Tem umas que têm uma certa consciência, mas acaba-se despertando mais. E tem outras que não têm. E tem muitas que vivem o problema, mas não sentiram ainda na pele aquela coisa de “está na hora de eu despertar, eu não posso ficar cantando futilidades aqui. Eu não posso fazer isso, tenho que me valorizar como mulher e buscar os meus direitos. Tenho que mostrar que eu estou aqui e tenho os mesmos direitos que ele”. Tem muitas que têm o protagonismo dentro da sua comunidade mas ainda não utilizaram o protagonismo para se superar, para defender os seus próprios direitos e os das suas amigas, da sua mãe, do seu pai, da sua mãe perante o seu pai. Passa por aquela situação de violência dentro de casa, mas ainda não tomou a atitude de se levantar para que outras mulheres que passam por essa situação se possam também unir nessa luta. Elas passam na delas, dói mas dói com elas próprias. No Brasil, quando a mulher pega isso, principalmente as rappers no Brasil, todas elas vão à luta para ganhar a sua comunidade, para batalhar pelos seus direitos, pelas coisas que estão erradas.

 

Hip Hop de Batom

 

As problemáticas que as jovens de bairros sociais têm continuam a ser as mesmas ou avançou-se um bocadinho?

Ana: Muito pouco. Tinha que ter agora multiplicadoras em vários pontos, para poder trabalhar aquelas pessoas ali na comunidade com as meninas novas. Por exemplo a G Fema, a experiência que ela passou com o Batom, ela poderia fazer disso um trabalho para estar ali na comunidade, trabalhando com essas meninas. Se a gente tivesse agora un Hip Hop de Batom que pudesse pegar na G Fema e outras mulheres de outros bairros, e trabalhar com as meninas numa capacitação, poderiamos ter o projeto em vários locais.

 

O que signifcou o projeto para ti G Fema?

G Fema: Significou muito, porque sabia que com a minha experiência de vida, tudo o que eu já passei, poderia aconselhar outras raparigas e fazer elas verem o que é o certo e o errado. E apoia-las em tudo o que fosse, como é a violência doméstica, a discriminação no trabalho…essas coisas. É muito importante. Eu gostei de fazer parte, mas algumas têm medo, têm receio de ser discriminadas. Pensam que aquilo é só para os homens.

 

Qual é a mensagem que queres transmitir quando escreves uma letra?

G Fema: Que as mulheres sejam independentes, que não tenham receio de se mostrar perante a sociedade. Se elas querem cantar,eu apoio. Eu estou aqui para esclarecer qualquer dúvida que elas tenham. E para nunca desistirem, serem fortes, sempre fortes.

 

 

Entrevista: Marta López | Fotos: Rebeka Dávid

Magdala de Gusmão: “Emigrar é muito para corajosos!”

Magdala de Gusmão, ComunidáriaMagdala de Gusmão emigrou do Brasil para Portugal há mais de 10 anos e com ela trouxe o seu filho de 6. Hoje, com 49 anos, sabe que venceu as adversidades de quem chega a uma terra estranha.

 

 

Estudou Marketing em São Paulo e Desigualdade e Desenvolvimento Sustentável em Madrid. Como é que veio parar a Portugal?

A primeira etapa em Portugal – que não foi a única – foi motivada pelo meu ex-marido, já falecido. Ele emigrou primeiro e eu vim ao encontro dele. Foi assim que eu vim parar a Portugal. Foram esses primeiros passos que me deram a grande lição e a grande experiência de estar imigrante com um filho de seis anos, sem emprego – mesmo com um nível superior da melhor universidade da América Latina.

 

Qual foi o seu principal desafio quando decidiu deixar o Brasil e vir para a Europa?

Desde menina que eu já sabia que não ia permanecer para sempre no Brasil. Eu sabia que ia ter várias experiências, mas as oportunidades não chegavam.

Eu vim um pouco anestesiada, um pouco desconhecedora e com um monte de ignorância. E essa coisa do desconhecimento profundo e de algumas decisões que a gente toma, fez a saída do Brasil não ser dura. O que foi duro mesmo foi a permanência. Os primeiros momentos, em menos de um ano, é muito difícil. Realmente emigrar é muito para corajosos e corajosas. Não é, de facto para qualquer um! (Risos) Parece até que é. Emigrar é sempre um desafio. Tem esse momento de uma entrada pesada num deserto. Era um deserto de relações, era um deserto de tudo, até a língua! Chegar a uma terra estranha e não ter onde resolver as questões.

 

Magdala de Gusmão, Comunidária

 

E porque é que acha que uma pessoa com as suas habilitações, não consegue arranjar emprego?

Acho que no primeiro momento esse deserto das relações e da desinformação. Eu não tinha ninguém. A única pessoa que eu tinha aqui era um marido, mas um marido é muito pouco! O núcleo familiar é insuficiente. Eu vim para o nada. Outras pessoas não, já vêm com suporte, já tem outras pessoas da família, já tem amigos que prometem (e não cumprem!). Eu não tinha nem promessas, e até agradeço. Em terceiro plano, houve uma altura que fiquei indocumentada e vivi um pouco da chamada “imigração ilegal” – eu não gosto de chamar ilegal-. Quando ia buscar os empregos tinha toda essa experiência. Eram só trabalhos muito precários. Estive em dois trabalhos terríveis, mas tive a sorte de terem sido experiências muito curtas.

Eu imigrei em 2005, e vim com um filho de seis anos. Fui uma das mais malucas! Não sei, de facto, onde é que eu estava com a cabeça. Foi de uma ingenuidade, de um desconhecimento tão imenso. Muitas mulheres que vejo, independentemente do nível socioeconómico, poucas emigram com os seus filhos. Não foi um trajeto nada tradicional, e isto foi uma grande barreira. Em todas as entrevistas de emprego que tive, eu assumia que tinha um filho. Ouso dizer que mais do que os documentos, a história de ter um filho ao meu encargo pesou mais [para não arranjar trabalho]. Eu sentia um peso muito grande nessa história da maternidade por ter tomado uma decisão que o meu filho não podia tomar. Fiz isto sem calcular todas as variáveis, tudo o que poderia acontecer. E insistia em dizer “Eu me recuso a abdicar da minha maternidade”(Risos).

E depois a questão da idade, eu já estava com 39 anos.

O meu primeiro emprego mesmo foi um emprego muito mal remunerado, mas também foi uma opção minha. Era um emprego com contracto, na igreja católica portuguesa. Eu fazia tudo, da sacristia ao secretariado! Era a pessoa que dinamizava as iniciativas da igreja, eu atendia as pessoas desesperadas – ficava, acompanhava e organizava as celebrações religiosas. E brincavam comigo, diziam que eu só não era um padre porque tinha nascido mulher. Foi incrível! Foi na igreja que eu conheci a gestão de uma organização não lucrativa e a força do patriarcado – ver aqueles homens todos e o aparato feminino em torno deles todos, a voz deles é a única que manda e a que é ouvida.

 

E foi na altura em que deixou de trabalhar na Igreja que fundou a ComuniDária?

A ComuniDária eu fundei sem nada. E fundei ainda antes de trabalhar na igreja. Eu casei pela segunda vez, continuava desempregada mas continuava a fazer voluntariado. Entreguei o meu curriculum para várias organizações. Nenhuma me respondeu. Eu já tinha experiência a trabalhar com prisões, com marginalização, violência. As únicas organizações que me responderam, por incrível que pareça, foram duas igrejas.

Eu já tinha me jogado no mundo. Antes, eu já estava a atender imigrantes. E aí fui cansando dessa situação que quando eu ia com as imigrantes as pessoas diziam: “A senhora é advogada?”, “A senhora está fazendo o quê aqui?”, me disseram que estava fazendo advocacia ilícita. E tive que formalizar essa situação. Tinha que ter, no mínimo, uma cobertura institucional. E a cobertura institucional sou eu mesma. Aí criei a ComuniDária, com o meu marido e a minha cunhada, que era a rede que eu tinha. Em Portugal não existia, como ainda não existe, nenhuma estrutura em que eu pudesse ser uma empreendedora social. Na época eu teria feito isso, não teria aberto uma associação, nunca. Mas aí dei um passo consciente. Comprei o único livro sobre associativismo, vi a estrutura, vi as restrições, vi a falta de benefícios. Mas não existia solução para mim, fui forçada. E falo com a maior transparência. Realmente teria outra modalidade, de empreendedora social por iniciativa própria. Porque sempre foi isto, não era uma questão de protagonismo.

 

Magdala de Gusmão, Comunidária

 

O que é que acha que mudou em Portugal relativamente à imigração desde que chegou cá?

Muita coisa. Quando eu cheguei [há 10 anos] havia muito poucas estruturas de apoio institucional para a imigração. Pouquíssimas respostas para as várias situações difíceis. E existia um fluxo grande de imigração de língua portuguesa e do leste europeu. Agora se vê outra presença, do médio oriente, mulheres dos países asiáticos. Nestes últimos três anos mudou muito. E essa questão burocrática, das leis, se via os imigrantes muito mais desesperados com a não-informação.

Nestes últimos anos, a tendência é de fechamento. Quando entrei era tudo mais fácil – para quem conhecia – na documentação.  As regras eram melhores, menos rigorosas. Os procedimentos administrativos são cruéis. Mas mesmo com aquilo que precisa ser melhorado, desconheço melhor lei tendo em conta outros países europeus. E Portugal vai continuar a ganhar o Prémio da Integração. E acho que é merecido na lei da expulsão dos imigrantes. Desconheço outro país que seja mais flexível que Portugal na questão das deportações. Mas não é merecido no requisito da integração efetiva, em que os imigrantes têm acesso a oportunidades e de uma inclusão que não seja pelas margens. Eu diria que Portugal tem uma coisa hipócrita: “é bonito receber mas você fica à margem”.

Ouvi a semana passada uma jovem que me disse: “Magdala, eu não quero ficar na prostituição, eu tenho qualificação”. A inclusão não é isto, a integração não é isto. Integração não é uma pessoa chegar como faxineira e morrer como faxineira, e as suas filhas continuarem como faxineiras.

 

Quando ainda estava no Brasil já tinha uma veia ativista pelos direitos das Mulheres, Imigrantes e Minorias Étnicas, ou foi algo que descobriu mais tarde?

A única relação que eu tinha com a imigração era que quando era menina tinha sido já uma migrante. Migrei de uma fazenda – o meu pai era um grande produtor de tabaco – para a capital, Alagoas. Com 9 anos soube o sentimento de ser estranho. Pode ter o nível socioeconómico que for, mas ninguém fica livre dessa sensação. E depois migrei também para São Paulo. Eu acho que fui uma das primeiras alunas nordestinas da minha faculdade. Era só gente branca, elite, filhos de europeus. Já tinha muitos nordestinos (homens), mas mulheres nenhuma. Tanto que eu era o exotismo em São Paulo.

A minha família paterna é toda ligada à vida comunitária, ao lado extremamente católico e de combate à pobreza. O meu pai, apesar de ter sido um dos maiores empresários do estado de Alagoas, foi um homem que nasceu pobre.  A minha primeira ação comunitária foi com 8 anos, quando eu ainda morava na fazenda. Tinha mais de 500 trabalhadores e eu comecei a chamar as meninas, de 7 anos, lá para casa e dava aulas de alfabetização. Isso sempre veio-me seguindo. Depois com crianças marginais, às idas às favelas. Sempre numa relação direta com a desigualdade.

A militância feminista nasceu em Portugal. O feminismo não, já era feminista acho que desde que nasci. Eu nasci numa base em que pude ver com clareza a desigualdade social, isso estava na frente da nossa casa. O meu pai tinha esses valores éticos, nunca criou muros e que deixou os seus filhos interagirem. Montou uma escola pública e colocou os filhos para estudar junto das outras crianças.

 

Magdala de Gusmão, Comunidária

 

Acha que ainda existe um fosso grande dentro do movimento feminista para com a comunidade imigrante e as minorias étnicas?

Acho que há. A raiz do feminismo aqui [Portugal] é branca e académica. Essa origem tem peso, tem força, e talvez ela seja a grande causa desse fosso. Mas eu não vejo, das minhas amigas dos vários grupos feministas, uma falta de sensibilidade, não vejo nelas falta de solidariedade. Mas vejo que falta proximidade. Não faz parte do seu dia-a-dia, não faz parte estar num bairro pobre, ter vivido, ou ter uma amiga – uma relação horizontal. Posso estar a ser ingénua mas eu não vejo a insistência em ser feminismo branco. Vejo, sim, uma origem branca.

E essas outras mulheres [imigrantes] precisam de arrancar um espaço. Mas no feminismo elas ainda encontram o melhor dos espaços. Nos coletivos feministas é ainda onde elas encontram o melhor dos espaços, porque nos outros há mesmo uma barreira nítida. E este lado vai ter que romper, como tem que ser com as opressões. Sou uma mulher misturada e não podemos ter uma posição infantil nem patriarcal. Não podemos esperar que venha a proteção do outro, nem entrar em choque com ele por ele ser branco. É pelas ideias dele.

São raríssimos os grupos de feminismo negro em Portugal.

 

 

Entrevista: Margarida Henrique | Fotos: Pedro Pinto Basto

Ana Rita Trindade: “Aquilo que me costuma fazer acordar todos os dias são os sonhos que tenho”

A Ana Rita Trindade pertence ao Núcleo da UMAR em Viseu e é presidente da Cooperativa de Animação Turística “AcolheRural”, centrada no turismo ético e responsável. Tem 19 anos, nasceu em Lisboa e vive desde a infância no distrito de Viseu. Encontra-se a estudar no primeiro ano da licenciatura de Educação Social.

 

Quem és tu? 

Eu chamo-me Ana Rita Sousa Trindade. Tenho 19 anos. Nasci em Lisboa, na maternidade Alfredo da Costa, mas desde logo cedo vim para a aldeia. Cresci numa aldeia muito pequenina, com cerca de dez moradores, sendo que cada casa tem cerca de duas a três pessoas. Cresci com a minha mãe, porque os meus pais estão divorciados, com a minha mãe, com os meus avós e com os meus irmãos. Recentemente tirei o curso de Restauração, 12º ano. E agora estou no primeiro ano de licenciatura em Educação Social. Já me têm perguntado muitas vezes porque é que quero prosseguir estudos na área social. Eu acho que é muito importante nós termos pessoas técnicas na área social. Nós  estamos muito direcionados para áreas mais cognitivas, mais científicas e esquecemo-nos que muitas vezes é importante mudarmos a sociedade, mudarmos os estereótipos, mudar e capacitarmos as pessoas para essa mudança. Pronto, daí eu ter sempre um grande interesse em estudar. Cheguei ao 11º e disse logo à minha mãe que queria estudar. Na altura não tinha possibilidades económicas para tal. Depois surgiu esta oportunidade de vir para aqui e agarrei com unhas e dentes, como se costuma dizer. E cá estou eu, a tirar a licenciatura em educação social, no segundo semestre do primeiro ano.

 

Falaste em estereótipos. Quais gostarias de mudar?

Temos muitos. Acerca dos idosos, por exemplo. Acerca também das mulheres temos estereótipos. Acerca de pessoas com deficiência… acerca de muitas, muitas questões.

 

O que é que te levou a participar no trabalho desenvolvido pela UMAR.

Eu cresci numa aldeia onde tem coisas muito boas, mas também tem coisas menos boas. É que na nossa geração, nós queremos evoluir. Eu sempre tive muita necessidade de querer evoluir. De querer seguir e ter uma vida melhor que aquela que tinha. Gosto muito da aldeia. Gosto muito de ir a casa da minha mãe. Vou lá todos os fins-de-semana estar com a minha avó, conviver com as pessoas de lá. Gosto de provocar às vezes para ver o que é que as pessoas dizem. Para ver se já mudou, como é que estamos a nível de sociedade. Mas dava conta que precisava de outras aberturas. E fiz um estágio de nove meses na Associação Fragas através do Centro de Emprego. Aí comecei a abrir o meu campo de conhecimentos noutras áreas. Conheci pessoas que conheciam a Manuela Tavares, que é feminista. Comecei a perceber o que era isto dos feminismos e a pensar: “se calhar eu sempre fui feminista”. Realmente, eu era feminista. Depois formou-se aqui a UMAR em Viseu, eu estive presente na formação do núcleo. Neste momento, estou a fazer formação na área da igualdade de género e da violência no namoro, através do projeto CAMI da UMAR. É uma área que me dá muito interesse, não só porque é uma área de intervenção do meu curso, mas também porque a nível de pessoal me dá gosto saber mais sobre isto. A medida que o tempo vai passando eu vou conhecendo mais, quero conhecer mais.

 

Ana Rita Trindade, Presidente da Cooperativa Acolher Rural

 

O que te levou a participar no projeto “Memórias e Feminismos” também da UMAR?

Estava na UMAR quando houve esta proposta. Tenho uma avó com 75 anos e fomos as duas, por muito interesse da minha avó. Ela tem uma visão que eu, às vezes, fico admirada. Em relação à sexualidade, por exemplo, aceita perfeitamente que os jovens hoje em dia tenham sexualidade sem ser após o casamento. Achámos interessante ter uma avó e uma neta.

 

Sentes que há muitas diferenças entre gerações, em relação à forma como veem as questões da igualdade entre homens e mulheres?

Sim. Há diferenças. A minha avó tem algumas coisas muito agarradas ainda ao passado e à religião Católica. Eu já não tenho essa visão. E à medida que o tempo vai passando, eu vou tendo a visão cada vez mais aberta. Mas ainda há muita situação que pode ser mudada.

 

Agora que trabalhas na UMAR, sentes que estás com mais ferramentas para lidar com estas situações? Consegues reagir de forma diferente?

Sim, muito mais. Por exemplo, a linguagem inclusiva, que é uma questão que eu aprendi na UMAR, era uma coisa que eu nem sequer ligava. Eu própria dizia “o homem” e não dizia “a mulher”. Agora, eu estou nas aulas e digo “bom dia a todos e a todas”.  E as pessoas diziam-me assim na aula “então porque é que tu dizes todos e todas?” Porque há homens e mulheres dentro da sala. E quando há homens e mulheres devemos cumprimentar todos e todas. E não só todos. Porque não é universal. As pessoas dizem que é universal mas não é. Eu fiz uma apresentação de trabalho muito gira sobre educação para a igualdade de género. E uma das questões que nós falamos foi porque é que é o cartão de cidadão e porque é que não é o cartão de cidadã. Porque se eu sou cidadã, eu tenho de ter um cartão de cidadã. Porque eu não sou cidadão. Agora, há pessoas que me dizem “ah, prendem-se a coisas também muito pequeninas”. Mas são as pequeninas coisas que fazem a diferença.

 

Notas muita diferença entre as aldeias e aqui, por exemplo, a cidade?

Sim, nota-se. Principalmente nas aldeias. Como cresci numa aldeia pequenina, nota-se bastante. Também pelo facto de toda a gente conhecer toda a gente e toda a gente conhecer a vida de toda a gente. Também isso influencia. Mas nota-se a diferença. Há mais estereótipos nas aldeias.

 

Ana Rita Trindade, presidente da cooperativa Acolher Rural

 

Em relação ainda ao feminismo, qual é que achas que é a percepção que a maioria dos jovens, hoje em dia, tem?

Eu tenho duas visões acerca dessa questão. Tenho a visão do curso de Educação Social e tenho a visão dos jovens em geral. Dos jovens que não fazem formação nenhuma nisto, que não estão inseridos neste tipo de atividades, eu acho que é muito desconhecido. Se eu for perguntar a uma pessoa que não tenha formação nenhuma, ou que não tenha estado nesta área “o que é o feminismo?” ninguém sabe. Até podem ter atitudes que levem ao feminismo mas não estão informados sobre o que é. Ou porque não querem ou porque também não tiveram oportunidade de chegar a estas questões, mas não estão. Agora, por exemplo, em relação ao curso de Educação Social já tenho visto vários debates e as pessoas estão informadas e já sabem o que é e muitas delas concordam e também já começam a fazer a linguagem inclusiva e essas questões.

 

E tens alguma sugestão sobre o que é que se poderia fazer para promover a igualdade de género entre os e as jovens?

Acho que se pode fazer uma intervenção socioeducativa. Não vale a pena, por exemplo, nós estarmos ali e dizer com um PowerPoint “olhe, deve ser assim e assim e assim”. Acho que devemos pôr as pessoas a pensar, a refletir e, sem as pessoas darem conta, chegarmos aos nossos fins. Eu acho que isso é importante.

 

Como surgiu a Cooperativa de Animação Turística “AcolheRural”?

Fiz formação na Associação Fragas e achámos que as aldeias tinham muito potencial, e que devíamos criar algo que desse seguimento àquilo que tinha sido o projeto Acolher. Neste, tínhamos sido capacitados, rapazes e raparigas, para mediadores de turismo ético e responsável. Decidimos criar uma cooperativa de animação turística. A nossa direção é só mulheres. É uma coisa que toda a gente acha piada; é das primeiras perguntas que me fazem: “Porque é que são só mulheres?”, – “Porque os homens fugiram”. Eles fizeram formação. Mas houve alguns que foram para a escola estudar e houve  outros que desligaram-se, não quiseram ficar com estes encargos, porque eu acho que as mulheres agarram-se mais a estas questões. Agarram-se mais e são mais lutadoras. Não desistem assim tão facilmente.

 

Além da questão da persistência, achas que pode ser uma área que atrai mais mulheres?

Eu acho que isso é relativo. Isso também é um estereótipo: aquilo é para os homens e aquilo é para as mulheres. Não é a questão de atrair mais mulheres.. As mulheres é que avançaram.

 

Ou seja, não houve uma intencionalidade de trabalhar só em especial com as mulheres, mas foi acontecendo?

Sim, foi acontecendo. Também queríamos fazer reunião com as mulheres. Na altura por causa das casas de acolhimento. Mas também trabalhamos com homens.

 

Ana Rita Trindade, Presidente da Cooperativa Acolher Rural

 

Quais são os teus planos futuros?

Costumo dizer em tom de brincadeira, que acho que aquilo que me costuma fazer acordar todos os dias são os sonhos que tenho. Quero acabar a licenciatura. Gostava de fazer uma pós-graduação na área. Gosto de música ( a Ana pertence ao grupo musical Ars Nova). Gosto de escrever. Tenho muitos interesses!

 

 

Entrevista Catarina Leitão | Fotos: Denise Bettencourt