Jornalista, apresentadora e uma das fundadoras da plataforma feminista com mais visibilidade em Portugal. Rita Ferro Rodrigues e as Capazes vieram revolucionar o feminismo no digital. Com 16 anos lançou-se para a televisão, mas é atrás das câmaras que mais luta pela Igualdade de Género.
Começou a sua carreira aos 16 anos, com o programa Caderno Diário. Foi um acaso ou já sabia que queria seguir jornalismo?
Eu sabia que queria seguir comunicação desde muito pequenina, gostava de sentir o impacto das palavras nas pessoas. Desde a forma como escrevia, porque adorava – e adoro – escrever, fazer logo desde miúda debates na escola e perceber o que é que as pessoas pensavam. Portanto não foi assim uma grande surpresa, o que foi surpresa foi ter começado a fazer televisão. Isso, sim, foi um absoluto acaso.
Ainda antes de começar a trabalhar no Caderno Diário, a Rita entrevistou a Amália Rodrigues. Como é que essa entrevista aconteceu?
Foi uma entrevista conjunta, com vários alunos (do liceu Pedro Nunes). Estava toda a gente cheia de vergonha. Tinha 12 anos e pus-me a fazer perguntas à Amália e foi por causa dessa entrevista que depois me chamaram para fazer o Caderno Diário. Havia um rapaz da RTP que achou que tinha jeito e foi uma entrada gira na televisão. Devo à Amália.
Eram as eleições no liceu e, na altura, as listas – como ainda hoje acontece, chamavam figuras de todo o país para serem entrevistadas. E a minha lista, que era a lista I – independente – chamou a Amália para ir. O que eu já acho extraordinário, agora conhecendo as coisas como são, ela ter ido. Só o facto de ela ter ido já é genial. Então estava o anfiteatro cheio de miúdos, com a Amália super bem disposta, mas ninguém tinha coragem de fazer perguntas e eu comecei a fazê-las. Lembro-me que uma delas foi se ela gostaria um dia de ir à lua e ela levantou-se e escondeu-se debaixo da mesa. Foi muito engraçado! Perguntei-lhe como é que ela lidava com o assédio dos homens e ela riu-se imenso e explicou que lidava mal, por norma. Mas eu também tinha uma lata que não sei se repetiria a proeza. Mais tarde ela escreveu uma carta para o liceu Pedro Nunes – eu achei uma coisa incrível –, que dizia: “Vi a Rita com o seu sorriso e deve ir para comunicação. Mas antes deve tirar um curso superior”. Só nisso é que a desiludi porque não acabei o curso.
Em que altura da sua vida é que se apercebeu que era feminista?
Acho que desde sempre. Mas a noção e dar um nome às coisas, só quando me tornei mulher, quando percebi que o meu corpo tinha um impacto e que eu não desejava esse impacto – só queria que ele fosse um corpo-. Quando entro no mundo das mulheres, no sentido em que de repente tenho um corpo e depois percebo “que é isto? O que é que se está a passar aqui? Porque é que me tratam de maneira diferente? porque é que tenho medo de andar na rua?” Essa questão da segurança foi o meu primeiro confronto com o feminismo.
Houve uma fase de trauma, como acontece com muitas mulheres. A primeira vez que eu vi um homem nu tinha 12 anos e foi no Jardim da Estrela, porque era um exibicionista. Isto já aconteceu a quase todas as mulheres. Depois falava com as minhas amigas e percebia que isto era uma coisa normal e pensava “mas que é isto? Que raio de violência é esta a que estamos sujeitas?” E portanto a forma de resolver foi fazer disso uma luta. Reagia sempre ao assédio e ia-me envolvendo em problemas graves. Uma vez ia levando um estaladão de um tipo que me assediou num autocarro. Agora eu acho graça, mas como tenho uma filha de 14 anos não acho graça nenhuma porque sei que ela é igual a mim, também tem pelo na venta. Sei que responder a um assédio, que é aquilo que, por norma, nos apetece fazer também pode ser perigoso. E isso irrita-me imenso, estamos a responder a uma agressão.
A Rita tem um irmão gémeo rapaz. Alguma vez sentiu disparidade entre ambos em relação ao género?
Eu cresci sem ver nenhuma distinção entre mim e o João a qualquer nível. Nem das capacidades, mesmo as físicas para o desporto, nem de cores nem de brincadeiras. Eu brinquei com os brinquedos deles e eles com os meus, nem sequer havia distinção entre brinquedos de rapaz.
No ativismo feminista ouve-se muitas vezes que as mulheres não são obrigadas a sorrir. Como é que gere isso num trabalho em que tem de ser naturalmente simpática?
Por norma eu sou sorridente, eu gosto de sorrir mas isso não me pode nunca ser imposto. A Inês Castel- Branco, por exemplo, é uma das minhas grandes amigas, mas ela não é uma pessoa sorridente. É uma pessoa queridíssima, terna, mas ela não tem que mostrar isso às pessoas. E ela é criticada por não sorrir. Para mim é tão estúpido ela ser criticada por não sorrir, como eu ser criticada por sorrir. As pessoas têm de ser o que são. Esta é uma questão que nunca se punha a um homem. Nunca ouvi alguém dizer: “O Rodrigo Guedes de Carvalho não sorri”. Sempre geri com muita autenticidade.
Ainda há pouco tempo dei uma entrevista com o Rui Unas no Maluco Beleza e ele disse-me que foi a entrevista que mais haters teve. É misoginia! Ele próprio ficou muito surpreendido. Só por ter falado em questões feministas. E explicar estas questões? É difícil, mas eu não desisto. Faz parte de ser feminista. A partir do dia em que és, deixas de ver o mundo da mesma maneira. Tens sempre o “alerta feminista” ligado. Eu adorava o Pretty Woman quando era pequenina, e agora vou ver o filme e penso “Bem, se calhar não gosto tanto”. Confrontas-te com a tua própria evolução enquanto pessoa, e isso é ótimo. E isto pode ser enervante para as outras pessoas mas eu não abdico disso. E as pessoas dizem imensas vezes: “lá estás tu a exagerar”. E quando envolve questões de identidade de género, ainda faz mais confusão com as pessoas.
A plataforma “Capazes” é das plataformas feministas com mais visibilidade no país. Como surgiu a ideia para criar a plataforma? Aproveita a sua influência para dar visibilidade nas questões de género?
Já andava na minha cabeça há muito tempo! E coincidiu num ano em que tanto eu como a Iva Domingues estávamos com menos trabalho e um bocado desgostosas por percebermos que algumas das razões pelas quais não tínhamos trabalho também se prendiam pelo facto de sermos mulheres. E depois de uma noite em que falámos muito, em que vimos o discurso da Emma Watson – que nos fez imenso sentido -, e pensámos: “Em Portugal não há nada disto”. É claro que há feministas extraordinárias e pessoas que fazem um trabalho de igualdade de género há muitos anos, mas é preciso alguma coisa de novo, com muito impacto e que associasse também figuras públicas, sim. Não vale a pena sermos ingénuos e vê-se isto em todo o lado do mundo. Ainda ontem a Beyoncé, nos Grammys, fez uma declaração extraordinária sobre feminismo. É preciso para dar o exemplo e é preciso para ganhares outro tipo de pessoas para a causa. E teve uma adesão muito, muito superior àquilo que pensávamos que ia ter.
Como é que luta por direitos iguais dentro do seu local de trabalho?
É difícil, às vezes. No Portugal em Festa, por exemplo, tinha imensa dificuldade em entender que houvesse bailarinas no palco. Eu digo aquilo que tenho a dizer, mas eu não mando nos conteúdos dos programas. Aquilo que faço é ser sempre muito solidária com elas, eu era a sindicalista das bailarinas. Dizia: “Pelo menos ponham aqui também homens para a coisa ser paritária”. É tentando ir fazer a revolução devagarinho, cada vez com mais chefias mulheres – isso permite-te um entendimento diferente. Mas não é fácil. Agora no programa novo que vou ter, vou tentar trazer alguns temas feministas.
E com ou sem a palavra feminismo?
Eu uso sempre a palavra feminismo. Das coisas que mais me enerva é as pessoas dizerem que acreditam na igualdade de género, mas que não são feministas. Mas é o tal rótulo que, infelizmente, foi muito bem aplicado por todas as pessoas que contrariaram os movimentos feministas, desde o sufragismo até agora, e que continua a intoxicar a palavra. E por isso é que é tão importante as Beyoncés e Madonnas porque tornam a palavra outra vez cool, no sentido em que ela é mesmo cool. E é cool porque queremos viver num mundo mais justo. Faz todo o sentido tirar o estigma à palavra.
Notas que, no seu trabalho, há uma grande disparidade no modo como tratam as mulheres e os homens?
Sim, claro que sim. Tenho a sorte de trabalhar com parceiros e companheiros homens que são sensíveis a essa questão. Eles próprios detetam esses micro machismos e essas micro discriminações. E depois eu não deixo passar e o facto de ser eu também faz com que esses micro machismos e essas micro discriminações existam menos. As pessoas já pensam: “Espera aí que eu já não te posso dizer não-sei-o-quê”.
Há temas que são abordados e que acham que “isto é mais para um homem fazer”. E em relação aos homens também. Tenho parceiros que fazem todo o tipo de temas e que também são discriminados porque certo tema é mais feminino. Não é nada, não existe isso. Consigo fazer esta desconstrução no dia-a-dia com muito sentido de humor. E as equipas também começam a interiorizar certos conceitos. Não sinto isso como um drama, é um desafio. E tenho notado imensa diferença, então com as Capazes tem sido incrível. Estas mulheres estão a ser convidadas para ir à televisão, por exemplo, e estão a ocupar um espaço público que não existia antes. Os homens são ainda muito mais chamados para ocupar o espaço público, mas nós estamos a tentar empurrar aqui uma cota nossa.