Maria José, uma mulher de Abril. Docente universitária e investigadora, acredita no potencial transformador da educação e nas novas gerações. Pensa que quando as mulheres se juntam têm a capacidade de fazer o mundo parar e depois avançar.
Onde anda este espírito de Abril?
Eu sinto que neste momento, em Portugal, vivemos uma altura de maior esperança depois de uns tempos complicados. Mas, preocupa-me muito a pobreza em Portugal. Quando passamos o 25 de Abril, havia sectores que não tinham nem água nem luz elétrica e chegar aos 40 anos após o 25 de Abril, no século XXI, e saber que há prédios inteiros e famílias que não têm luz elétrica nem água canalizada, porque não têm dinheiro para pagar o serviço, para mim, é inadmissível e inacreditável. Ainda há uns tempos uma assistente social disse-me que estava numa situação em que tinha um frango para oferecer a uma família e a senhora lhe disse que não o podia sequer cozinhar porque não tinha gás em casa, nem podia podia pedir a uma vizinha porque ninguém nesse bairro tinha gás. Chegar a um ponto em que nem sequer há condições para receber as dádivas é uma situação que eu não admito. Mas sinto que há uma nova geração a brilhar, a organizar-se e a mobilizar-se… De há 3 ou 4 anos a esta parte há uma maior abertura para as outras pessoas pessoas e uma esperança no ar, e não é só em Portugal.
Que conselho poderia deixar às novas gerações de mulheres?
O conselho é: juntas somos fortes. Quando as mulheres se juntam o Mundo muda. E, apesar das divergências, das perspetivas diferentes, quando encontramos um motivo para nos juntarmos e fazer coisas, o Mundo pára e depois avança. A união faz a força é um cliché, mas realmente para as mulheres esta união é realmente mais difícil, porque toda a nossa socialização é feita no sentido de nos separar. A Maria Teresa Horta até me contava que se ensinava “não leves a tua amiga para dentro de casa”, com medo daquelas coisas do marido e tal. Ensinava-se a menina a desconfiar da amiga. E depois toda esta desvalorização da mulher, da sua arte, do seu contributo científico, do seu trabalho, da sua opinião… Isto separa-nos, porque nós também desvalorizamos a opinião umas das outras. Então quando conseguimos pôr isso de parte e juntamo-nos, há uma energia. As mulheres estão muito isoladas, têm uma carga de trabalho muito grande, continuam a assumir as responsabilidades de cuidar, continuam a culpabilizar-se. Portanto, mantenhamo-nos juntas e fortes.
Educadora sexual para adultos, Carmo Gê Pereira faz workshops e dá aconselhamento privado nas áreas da educação e formação sobre práticas, identidade, orientação sexual e formas de estar, no contexto da diversidade e aceitação.
Como decidiu dedicar-se à educação sexual?
Comecei há dez anos a vender sex toys. E como as pessoas acabavam por me contar aspetos muito íntimos da vida delas, eu senti que era eticamente muito pouco correto eu não prosseguir nenhum tipo de formação perante isso. Portanto comecei a fazer cursos de Sexologia, depois fui para mestrado em Estudos sobre Mulheres, no Porto. Foi a altura em que me politizei, em que saí do armário como feminista e em que também encontrei um enquadramento crítico ao nível do meu trabalho no feminismo. Foi também nessa altura que comecei a fazer workshops.
Que tipo de workshops faz?
Tenho o workshop de pompoarismo, que é a arte de controle e movimento dos músculos vaginais, ao qual juntei numa certa altura um workshop de autoerotismo. Vi e ouvi imensas vezes este sentimento quase dissociado do próprio corpo, em que havia a questão de pessoas que tinham uma vida sexual que consideravam saudável, mas por exemplo nunca se tinham masturbado. E então havia esta noção de que a sexualidade não era delas, o que pode ser um dos problemas desta tal educação sexual mais centrada no afeto. Portanto eu fiz um workshop dedicado a reconhecermo-nos e reencontrarmo-nos connosco fisiologicamente e depois percebermos como é que a cultura e a sociedade afetam a forma como nós nos relacionamos com o nosso corpo, e desmontarmos isso, e também depois genitalizarmos a sexualidade e para o fim do workshop haver um momento de desgenitalizar. Perceber que o corpo inteiro é muito mais sexual após o conhecimento dos genitais e que a nossa sexualidade vai para além disso.
O que acha mais importante no seu trabalho, que seja mais necessário comunicar ou transmitir?
Seria muito importante haver uma educação sexual desde a infância que acompanhasse as pessoas ao longo da vida. Uma educação centrada mais no prazer, com uma abordagem sex-positive. Que significa ter uma visão crítica da sexualidade, incorporando-a como mais um aspeto da vida, sem entrar nesta expetativa social que por um lado é pecado e por outro lado é o que nos torna seres válidos; parece que a sociedade anda nestes dois oitos e oitentas.
Faz também aconselhamento para casais. Que questões ou problemas acha os mais comuns?
Comunicação. É muito engraçado como as pessoas começam a desbloquear quando começam a falar. Há uma cristalização do guião: as pessoas conhecem-se e começam com certas práticas e passam 10 anos e a pratica não muda, mas a sexualidade delas muda. Então o que é preciso é haver uma redescoberta de quem está ao nosso lado, de quem somos neste momento, porque sempre vamos mudando, o que é um processo maravilhoso. Também é importante não sermos tão exigentes em relação com o nosso corpo. As coisas não têm que ser de uma determinada maneira, são o que são, podemos olhar para elas, vivenciá-las com mais à vontade e dando-nos também este espaço para crescer, manter, mas sem objetivos. Uma sexualidade com objetivos pode ser extremamente castigadora.
Ainda acha que se fala pouco sobre a sexualidade? Que continua a ser tabu?
Não é que se fale pouco. É que se fala sempre da mesma maneira. O sexo já não é um tabu. O que é um tabu é a diversidade na sexualidade.
Lia é uma jovem da Covilhã, cuja paixão pelo desenho, aliada a um sentido de responsabilidade social a impeliu para a arquitetura. Na sua tese de Mestrado, explorou a questão dos espaços construídos por homens, as formas como as mulheres os habitam e transformam e o percurso profissional e educacional das mulheres na arquitetura. Atualmente trabalha num espaço de cowork e está a desenvolver a sua tese de Doutoramento sobre processos urbanísticos e práticas profissionais com perspetiva feminista.
O que é que te motivou a seguir arquitetura como área académica e profissão?
Eu sempre desenhei e pintei muito, desde pequena, e tinha muito claro que queria seguir por uma qualquer via artística profissional que me permitisse lidar sempre com esta parte do desenho e da experimentação. Decidi seguir Artes no secundário. No 12º ano tive de escolher se ia para arquitetura ou design ou pintura, escultura, as hipóteses pendiam dentro destas áreas. A arquitetura pareceu-me aquela mais versátil, ou seja, em que podia englobar muitas outras artes, em que podia comunicar muito pelo desenho, que era a parte que mais me interessava. Só depois, já durante a licenciatura, surgiu a parte de poder contribuir e construir a transformação do mundo físico, onde as pessoas habitam e a vida se desenrola, uma vertente que sempre me interessou muito. Foi um pouco este o caminho. Parecia que, por exemplo, a pintura e a escultura dentro das suas valências, podiam ter uma componente social não tão direta na vida das pessoas. Eu acho que nós, arquitetas e arquitetos, temos uma responsabilidade muito grande, essa, de fazer e pensar os lugares onde a vida comum acontece. Acho que a motivação inicial veio dessa parte do desenho, mais tarde, do comprometimento e responsabilidade social da arquitetura.
Podes falar um pouco sobre a tua tese de Mestrado? O tema, objetivos e que conclusões retiraste?
Sim, de facto queria começar por explicar como é que eu lá cheguei, como é que escolhi esse tema, porque de facto, na minha área e em Portugal, essa temática é muito recente. Já é explorada há alguns anos, desde a década de 80, principalmente em Espanha e nos países Anglo-Saxónicos. Em Portugal não tínhamos reflexões sobre o assunto e, de repente, em 2010, em Coimbra, houve uma exposição, uma conferência e, posteriormente o primeiro número da revista JOELHO, que se intitularam “Mulheres na Arquitetura”, organizadas pelo Professor Jorge Figueira, que naturalmente acabou por ser o orientador da minha dissertação. Este evento significou que se começava a apalpar terreno, como é que se podia pegar neste tema em Portugal, quais as nossas especificidades. Eu sou feminista desde muito cedo – claro que os níveis de consciência foram evoluindo -, apenas tive professores homens na faculdade, nunca uma professora – facto que me despertou um sentimento imediato da desigualdade no seio da disciplina – então nessa altura pensei “Ok, tenho de fazer uma tese daqui a um ano, é mesmo por aqui que eu quero ir, junto as duas coisas e… Perfeito, parece-me que faz sentido!”. A alavanca foi, sem dúvida esta exposição e palestra. E depressa percebi que era um tema difícil e que levantavam muitos obstáculos. Perguntaram-me várias vezes “A sério que isso é um tema de tese de investigação? Não queres repensar?”. Ou seja, encontramos muitas resistências. Apenas tive um semestre com uma professora de Geografia, que não chega a ter o papel de servir de referência para as novas gerações… Diria que neste momento 60%/55% das estudantes são mulheres e não continuam a não existir muitas referências de destaque, tanto na profissão, na educação, em cargos de topo ou na atribuição de prémios. A situação não está muito equilibrada… além disso, passamos todo um curso – 6 anos – sem ouvir falar da biografia ou de projetos de uma arquiteta. Quase todos os anos temos disciplinas de história e teoria da arquitetura que vão percorrendo os vários séculos, e havia um silêncio sobre as contribuições das mulheres – e elas existem. Também foi por estes motivos que decidi, então, avançar. E tive de contar a história quase do zero, ou seja, registar o nome das pioneiras, compreender os conceitos e perceber quem, como e onde se produziu e se estava a produzir este tipo de investigação é um trabalho que tem de ser feito quando se lança um tema novo. A minha tese foi, basicamente, catalogar o que estava feito até àquele momento, ou seja, até 2012. O que é que já tinha sido estudado nos outros países, quais eram as obras de referência em termos de literatura e quem eram as principais personagens que estavam a refletir sobre este tema. A minha tese dividiu-se em duas partes: uma primeira sobre as cidades e a arquitetura construída maioritariamente por homens e as formas como as mulheres habitam esses espaços, enquanto cidadãs, ou seja, como é que elas percebem, sentem e modificam o espaço, e também como é que são representadas. O segundo capítulo fala sobre as mulheres que constroem o espaço, as arquitetas, e tentar recuperar alguns nomes, porque realmente não se conhecem. É difícil as pessoas identificarem muitas mulheres nesta área – pessoas que estão dentro e fora dela – e o objetivo era um pouco trazer esta parte da história também para dentro da própria disciplina. Onde é que elas estão, como é que começaram, quais os percursos educacionais e profissionais, qual é o estado da profissão neste momento. E, aqui, uma das conclusões que se tira é que, nos últimos tempos, muitas mulheres entraram para o curso, grande parte terminou-o, começam a trabalhar dentro da área e depois, em algum momento, perdem-se, saem e vão trabalhar para outro campo, fora da arquitetura. Alguns estudos tentam perceber porquê e uma das conclusões a que geralmente se chega tem que ver com a combinação dos horários que é exigida à nossa profissão com a maternidade, ou com o facto de se querer fazer outras actividades… Muitas também optam pela academia, pela Universidade ou simplesmente desistem e seguem por outra via. Porque realmente há muito este mito, que desde os tempos da faculdade nos é muito incutido, a ideia de que para ser um bom arquiteto ou arquiteta temos de trabalhar até altas horas da manhã e, se temos uma entrega de projeto amanhã, então há que fazer direta durante esta noite, porque é assim e é quase uma norma. E não é verdade e não pode ser assim. E realmente, elas vão-se perdendo. Há muitas mulheres que chegam a uma certa fase da vida que deixam a profissão e seguem por outra via, pela pressão, pelos horários, pela questão da maternidade… Outra conclusão é que as pioneiras, portanto, as poucas que começaram nos anos 20, 30, 40 do século XX, as que que se esforçaram muito para obter o curso e para conseguir trabalhar na área, foram muitas vezes encostadas ao tema do doméstico e do design de interiores, quase como um prolongamento natural da sua condição de mulher. Por exemplo, na Bauhaus, que foi uma escola muito importante nas artes e na arquitetura nos anos 20 e 30 na Alemanha, elas ficaram entregues à parte da tecelagem, incluída nas disciplinas consideradas menos nobres, porque a arquitetura era uma coisa de homens.
Referiste que a tua tese estava dividida em duas partes. Primeiro trataste da questão dos espaços construídos por homens e de como é que as mulheres os habitam e depois, do percurso profissional das mulheres na arquitetura. Mulheres e homens constroem espaços de forma diferente?
É sempre uma boa questão. Há várias coisas a ter em consideração nessa pergunta. Eu acho que eles e elas não constroem os espaços de forma diferente, o que pode existir é uma sensibilidade diferente na forma como se olha para os espaços porque as experiências de vida também são distintas. Mas, no essencial, importante olhar o espaço com os “óculos feministas”. Num dado momento, alguém questionou a existência ou não de uma arquitetura feminina com características próprias; eu digo que não, que ela não existe, da mesma forma que não existe essa ideia de essência feminina. Parece-me que, por outro lado, estamos todos e todas a caminhar sem grandes desvios. Isto porque a forma como esta profissão é ensinada é demasiado rígida e normativa, os estudantes têm de se aproximar de um objetivo principal muito focado e afunilado, e não permite outras abordagens. Falando da minha experiência: eu fui ensinada só por homens, portanto, fui orientada a olhar e a pensar o espaço apenas por homens. Se isso tem alguma consequência na forma como eu depois projeto, não sei, talvez (risos). Para concluir, acho que existe, não uma arquitetura feminina em oposição a uma arquitetura masculina, mas sim uma perspetiva feminista sobre o espaço. E aqui sim haverá um outro olhar e outras sensibilidades sobre o território e a arquitetura.
A arquitetura feminista pode melhorar a vivência das mulheres na vida quotidiana?
Dizer primeiro que o território e a cidade foram construídos e pensados sem ter em consideração as vivências das mulheres – e que, quando falamos de cidade, falamos também e sobretudo do espaço público e coletivo que durante muito tempo lhes foi inacessível -; se durante séculos e séculos de história, as cidades e as aldeias e os bairros e os edifícios foram portanto desenhados por e para eles, de alguma forma as mulheres e outros grupos periféricos foram esquecidos da reflexão e das tomadas de decisão sobre o espaço urbano. Este foi sendo configurado para um sujeito (falsamente) neutro, segundo padrões de uma sociedade patriarcal e é importante perceber como é que as formas físicas contribuíram e contribuem para a perpetuação destes valores e privilégios. Tudo isto para dizer que a perspetiva feminista pode de facto melhorar a vida do quotidiano porque o processo de projeto é acompanhado pela integração das experiências, vivências, necessidades e desejos das mulheres e de pessoas de várias idades, géneros, classe social, com várias capacidades físicas… o resultado tem de ser necessariamente diferente. Quando conseguimos integrar tudo isso num projeto, acho que sim, acho que a vida das mulheres pode ser diferente.
O que é que é uma arquitetura feminista?
Não sei se a definição existe dessa forma, falamos mais em “urbanismo feminista” enquanto processo que inclui diversas valências sobre o desenho do espaço. Precisamente o conceito que estou a estudar agora. O meu doutoramento vai incidir sobre esse assunto, o que é que poderá ser uma arquitetura ou um urbanismo com perspetiva de género. E sabemos que é aquele que trabalha por territórios mais igualitários, sobretudo com as vivências, rotinas e participação das mulheres, das cidadãs. Também é importante perceber como é que as teorias e metodologias feministas podem contribuir para a reflexão sobre os espaços urbanos, que se querem mais plurais e inclusivos. O foco está na questão de repensarmos o mundo que habitamos, com projetos que empoderem as mulheres e outros grupos periféricos, pensar que vamos atuar com a participação ativa das comunidades nos espaços do dia-a-dia, em vez desta coisa dos grandes gestos, de construir um grande edifício, com muito impacto, que seja visível, que seja corporativo, que seja pensado para ganhar prémios… Queremos trabalhar na escala da proximidade, com as micro-histórias dos espaços e da vizinhança e preservando as memórias dos lugares. A perspetiva feminista traz muito este lado da colaboração e dos projetos cooperantes e de proximidade e acho que, quando todo este processo funciona, o objeto final tem necessariamente de ser outro.
Já sentiste desafios por seres mulher na tua profissão?
Sim, completamente. Mais quando falamos de uma área que lida muito com a obra em si, com a parte de construção. E, vamos ser sinceras, a construção é maioritariamente feita pelos homens e, se tenho ótimos exemplos de pessoas com quem adoro trabalhar, tenho outros exemplos em que claramente se sente o machismo na obra. Olham para nós como uma menina, inclusive é assim que frequentemente me tratam. Primeiro, perguntam-se o que é que estás ali a fazer, depois olham “de alto a baixo”. Na relação com os clientes também se sentem diferenças de tratamento muito óbvias; no fundo, somos muitos mais postas à prova e temos constantemente de dar provas. Na Academia igual. As mulheres e os homens ainda não estamos em pé de igualdade na profissão, de facto.
Que estratégias usas para superá-los?
Talvez tenha várias… Sabes que isto também é um processo contínuo de aprendizagem e de consciencialização porque falamos de lutas diárias e de arranjar mecanismos de autodefesa durante a vida. Não sei se tenho algum especificamente dentro da minha área de trabalho, mas tenho muitos escudos protetores que fui arranjando ao longo da vida para me conseguir afirmar, porque, de facto, é mais difícil ser mulher nesta profissão (e na vida no geral!). É preciso alguma bagagem.
Apesar disso tudo, gostas de trabalhar na área?
Sim, gosto, gosto muito. Acho que é muito desafiante. O que ainda me motiva é o que me fez vir para esta área, a questão das formas como podemos habitar e contribuir para a construção e transformação do mundo onde vivemos. Há muita coisa por fazer e muitos paradigmas por mudar. Gosto, por exemplo, de pensar que o mapa que desenhamos é apenas uma ferramenta para ler o território mas não a sua representação real e é por isso que nos temos de envolver além do desenho, numa tentativa de assimilar as diferenças, as diversidades e problemáticas comuns…
Se pudesses escolher um edifício em Portugal que mais admires, qual seria e porquê?
Se calhar vou sair fora da arquitetura reconhecida e, em vez de um, vou referir um conjunto… Isto é a minha experiência pessoal e emocional a falar. Eu vivi em Coimbra, durante alguns anos, numa República, a República do Kuarenta. Em Coimbra existem 26 Repúblicas e são edifícios muito particulares, quer fisicamente quer socialmente, pela vida comunitária e académica que geram. Primeiro, sente-se que não vive só numa casa mas em várias em simultâneo; partilha-se uma rede de edifícios e de vivências distintas do comum. E quando se entra realmente nas suas dinâmicas e se deixa uma marca – que não tem de ser física – nas paredes e no chão e nos móveis e na loiça, nota-se muito a importância da memória de anos passados, da história e de momentos importantes da cidade e da academia. Se calhar, se tivesse de falar de um edifício, podia referir as Repúblicas de Coimbra. Porque são espaços realmente comunitários, que têm as portas abertas e que geram muito esse sentido de partilha entre as pessoas. Foi muito bonito viver lá.
Como é que gostarias de contribuir para a arquitetura em Portugal?
Para contextualizar, em 2013 trabalhei em Sevilha num coletivo chamado Recetas Urbanas e foi um momento brutal da minha vida, em que eu percebi “Ok, é possível fazer aquilo que estamos a falar, que é de alguma maneira a tal arquitetura social”. Trabalhávamos com autoconstrução, ou seja, trabalhávamos em escritório e desenhávamos os projetos durante uma parte da semana e, na outra parte, íamos construir efetivamente com as pessoas. Pôr as mãos na massa! Trabalhávamos com escolas, com casas ocupadas, com coletivos que tivessem algum projeto cultural e isso foi muito interessante porque significa realmente o envolvimento total do arquiteto e da arquiteta com as pessoas. E, se eu pudesse contribui para algum desenvolvimento da profissão no meu país, seria neste sentido, de poder começar algum projeto que trabalhe com este enfoque, não só da autoconstrução, mas de projetos colaborativos que se envolvam diretamente as comunidades e que possa, de alguma forma, fazer a diferença.
Há alguma coisa que queiras acrescentar?
Sim. Apenas acrescentar que a arquitetura continua a assentar demasiado na ideia do star system, numa arquitetura de estrelas, de prémios e de nomes reconhecidos, e que existe realmente uma sobrevalorização da autoria de edifícios e dos projetos e, consequentemente, de uma estética própria. Claro que as arquitetas têm um lugar residual neste estrelato. E, do meu ponto de vista, a importância e foco da disciplina têm de ser outros: o trabalho com o contexto específico do lugar, a potencialização dos saberes das comunidades e das mulheres, e a procura de narrativas e ações mais plurais no espaço público e coletivo. Ou seja, fazer pequenos pedaços de cidade através de relações de empatia com o meio envolvente e de relações mais intensas com os lugares do quotidiano.
Entrevista: Catarina Correia | Fotos: Pedro Pinto Basto