Elisabete Jacinto: “Há gestos que fazemos que são absolutamente discriminatórios na educação e nem paramos para refletir um bocadinho sobre isso”

Elisabete Jacinto é a única mulher a pilotar um camião em competições todo o terreno com regularidade. Era professora de Geografia até decidir que a sua paixão pelo todo o terreno merecia a sua dedicação a 100%. Não se esquece nunca dos desafios acrescidos que uma mulher nesta modalidade enfrenta, e espera poder ser um exemplo para jovens que queiram quebrar estereótipos.

 

Para começar, gostava de lhe perguntar sobre o seu percurso. Como é que se descreve?

Apesar de todas as coisas que tenho feito eu considero-me uma mulher perfeitamente comum, igual a todas as outras. Tive uma infância absolutamente normal, uma educação super clássica, daquelas que dizem que os homens fazem uma coisa e as mulheres fazem outra completamente diferente. Estudei, tirei o curso de Geografia, tornei-me professora. Mais tarde, quando estava já a leccionar, eu e o meu marido decidimos tirar a carta de mota. Eu porque não tinha ainda carta de carro e ele porque tinha tirado carta de carro e não tinha ainda de mota. Tirámos a carta de mota e comprámos uma mota para os dois, uma 125 daquelas de guarda lamas alto, tipo motocross. Nessa altura o Jorge estava a trabalhar numa empresa: tínhamos um carro (ou ele tinha um carro, não é, que já era dele). Ia para o emprego todo engravatado, de carro, e a mota ficava na garagem. Então eu comecei a utilizar a mota como meio de transporte na cidade.

 

Estamos a falar de que ano, mais ou menos?

1985/86, por aí. Para mim tinha uma certa graça. Mais tarde, pela graça de ter uma mota tipo motocross, inscrevemo-nos num clube todo o terreno. Lembro-me de ir fazer um passeio com o Jorge. Nessa altura ele já tinha decidido comprar uma mota maior para ele: porque um homem não anda de 125, não é? E então já tinha cada um a sua mota: eu andava com a 125cc e ele andava com a Honda de 600cc. E fomos fazer um passeio que era a Ronda dos Castelos, ao qual eu fui sem experiência. Mas no final olhámos um para o outro e pensámos que tínhamos descoberto o hobby da nossa vida. E foi aí que começámos a brincadeira de todo o terreno a sério – comprámos as revistas da especialidade, líamos os conselhos dos craques e depois ao fim de semana tentávamos pô-los em prática. Era uma galhofa enorme, nós os dois sozinhos ou então com um grupo de amigos. As passeatas começaram a ser cada vez mais animadas e o grupo cada vez maior. E a certa altura há um deles que decide fazer uma prova de competição, e desafia todos os outros para a ir fazer. Eu, claro, como boa mulher pus-me logo à parte, mas eles olharam para mim e disseram que eu também tinha de vir, que existiam outras raparigas e que eu sabia andar bem. Lembro-me que era o Grândola 300, uma prova em Grândola com 300km. Foi em 1992 que fiz essa primeira prova, já tinha eu os meus 27 anos. E a a partir daí nunca mais parei de fazer corridas até hoje. E foi sempre uma luta muito grande comigo própria para conseguir fazer mais, mais e mais. Porque de facto no princípio quando comecei a andar de mota com eles eu tinha muitos medos: tinha medo de subir, de descer, de curvar à direita, à esquerda… E depois fui fazendo muitas conquistas. Foi essa gestão dos medos, das minhas ansiedades e das minhas inseguranças que me fizeram levar o desporto de uma forma muito séria e fazer sempre mais e mais. E até hoje tenho estado sempre num processo de conquista que não acabou até agora.

 

Como começou o seu percurso nas competições?

Comecei a fazer provas do campeonato nacional. No início era só sobreviver e chegar ao fim. Depois comecei naquela brincadeira da Taça das Senhoras. Depois pensei: “Vamos lá ver se consigo resultados na Geral!”. Depois pensei em fazer uma prova em Espanha, e não dormi a pensar que não ia conseguir fazer. A primeira prova correu muito bem, tive um bom resultado e fiquei toda entusiasmada. A segunda prova tinha 630km. Ui, como é que ia conseguir fazer 630km? Aquilo foi uma coisa muito séria. Lembro-me de parar numa zona de assistência completamente exausta de cansaço e dizer ao Jorge que não aguentava mais. E ele dizia “Claro que te aguentas! Olha, o não sei quantos já desistiu, o outro está atrás de ti, o outro não passou…”. E eram todos fulanos que eu pensava que eram melhores que eu. E de repente pensei que se calhar não estava a fazer assim tão mal. Depois de comer, lá fui eu.

Elisabete Jacinto

 

Disse que era professora de Geografia. Em que ponto é que começou a pensar “Isto não é para mim”?

A partir daí foi a minha desgraça. O Dakar era considerado uma prova só para homens de barba rija: partiam 200 ou 300 rapazes e chegavam 20 ou 30 ao final. Eu achava que era a super mulher, que tinha uma enorme força de vontade, um espírito de sacrifício enorme, que era capaz de fazer o mesmo que eles. Convenci-me verdadeiramente disto e comecei a preparar o Dakar, uma obsessão abosluta: eu era capaz, eu ia fazer, eu queria fazer. Tive imensos contratempos, não consegui terminar o primeiro Dakar, desisti porque a mota teve vários problemas mecânicos. Consegui superar alguns, mas depois houve um que me deitou abaixo e tive mesmo de vir para casa. Mas como tinha sido a mota e não tinha sido eu, queria continuar a fazer. Tentei um segundo ano. Na etapa mais dificil, da Mauritânia, parti o motor e tive de desistir. E de repente as coisas começaram-se a tornar muito sérias. “Já tentei duas vezes, não consegui vez nenhuma. As duas vezes foram por causa da mota. Sei que sou capaz, mas se calhar tenho de me preparar melhor”.  Pedi uma licença sem vencimento na escola e comecei-me a dedicar a 100% ao desporto. E percebi que de facto se uma pessoa quer fazer uma coisa bem feita tem de se dedicar a ela. Os dias parece que cresceram e eu comecei a fazer e a pensar em muitas coisas para me preparar nas quais nunca tinha pensado. E isso para mim foi de facto importante. No terceiro Dakar – que eu já consegui terminar – ganhei a Taça das Senhoras e tudo, foi excelente! Mas na verdade foi só em 2003/2004 deixei mesmo de dar aulas.

 

E como é que esta sua vitória foi recebida?

Estavam imensos portugueses à beira das pirâmides (nesse ano o rally tinha acabado no Egito), e havia imensas pessoas que me davam os parabéns. Mas no final todas as pessoas sem excepção me davam aquelas palmadinhas nas costas e diziam-me “Mas tiveste sorte que o Dakar este ano teve menos quatro dias”. E eu dei comigo a pensar se eu seria capaz.  Lembro-me de chegar a casa e de o Jorge me dizer que se calhar estava na altura de deixarmos a competição. E eu disse: “Não, porque ninguém acredita que eu sou capaz de fazer o Dakar se o Dakar tiver os dias todos. Eu quero fazer, e quero provar a toda a gente que sou capaz”. A vida tem coisas muito estranhas, e coisas que às vezes nos fazem pensar. O que eu lhe disse a ele é que eu queria fazer um Dakar duro, difícil, provar a toda a gente que era capaz de fazer. E foi isso que eu tive. Realmente o próximo Dakar foi extremamente difícil, teve um percurso levado da breca. O meu carro de assistência pisou uma mina na fronteira de Marrocos para a Mauritânia. As pessoas foram todas evacuadas, eu fiquei sozinha e sem nada! Senti-me completamente perdida, sem saber o que é que havia de fazer, de pensar, e telefonei para Portugal. E a pessoa que falou comigo disse-me “Oh Elisabete, a última coisa que o Zé Ribeiro quer é que a Elisabete desista!”. Vou-lhe dizer que caí 300 mil vezes e 300 mil vezes me levantei. Parti três costelas, fiz uma lesão na virilha que para me montar na mota levantava a perna muito devagarinho (as pessoas olhavam para mim a ver quando é que caía), parti três ossos no metatarso, e tinha de pegar no braço para o pôr em cima do volante, que ele não ia lá sozinho. Mas no final eu tive a certeza absoluta que 90% dos rapazes que lá estavam não teriam acabado se se vissem nas minhas circunstâncias, e eu acabei. Portanto eu tinha conseguido aquilo que eu queria, um Dakar duro e difícil.

 

Isso foi tudo de mota, certo? Como é que acabou a ser piloto de camião?

Depois desse Dakar voltei a dar aulas, porque como não fiz nenhum resultado desportivo digno de aparecer nos jornais os patrocinadores cortaram-me a verba. Comecei a ponderar deixar a competição e lembro-me de um dia vir na rua e de tomar a decisão que tinha tanta dificuldade em tomar. Decidi: “Pronto, acabou. Vou deixar a competição, vou deixar as motas”. E no segundo seguinte dei por mim a pensar assim: “Espera aí, porque é que eu não faço camião? Camião é muito giro, nunca nenhuma mulher fez”. E de repente imaginei-me dentro do camião a saltar as dunas como eu via na televisão, e aquela imagem ganhou uma força tal… Tirei a carta de pesados nesse ano, fiz o exame em outubro e em janeiro estava a fazer o Dakar de camião. Portanto, nesse ano eu ainda estava a dar aulas. Esse Dakar foi extremamente difícil: como deve imaginar eu não sabia nada, a minha experiência era de mota. Vivi todas as histórias que se possam imaginar sobre as dificuldades que se podem ter num Dakar, desde virar o camião, a ficar para trás, a ter de fazer não sei quantos quilómetros sozinha fora de corrida para apanhar a comitiva do rally, a ter de ajudar o outro piloto da equipa que se tinha virado nas dunas… Mas no final eu dei comigo a pensar “Não, eu de camião posso ser muito mais competitiva do que era com a mota. Posso fazer os resultados que eu não fiz com a mota”. De repente consegui criar condições para fazer camião e então percebi que não conseguia acumular as duas atividades, porque o camião é muito mais exigente, puxa muito mais por nós, e eu precisava de tempo para me preparar, preparar o camião e tudo o mais. E foi aí que eu comecei naquela onda das licenças sem vencimento, nas dispensas de serviço, e a partir daí nunca mais retomei.

 

Já agora, até por curiosidade. Quais são os desafios específicos de um camião e as grandes diferenças face à mota?

A mota é um veículo extremamente físico, onde conduzimos com o corpo. A minha mota do Dakar pesava 200 quilos. E é um veículo muito solitário. É um veículo extremamente violento nesse sentido: temos de ser autónomos, temos de fazer tudo. Navegamos, conduzimos, se tivermos problemas de mecânica temos de resolver, estamos imensamente desprotegidos, expostos ao frio, ao calor, a tudo. Não temos comida, não temos água, e temos de sobreviver a isso tudo. Mas foi graças àqueles anos que fiz de mota que tive coragem e consegui fazer de camião. O camião é um veículo muito diferente, ele nasce para andar devagar, para carregar carga, e nós queremos levá-lo para corridas a andar depressa, a andar ligeiro. Portanto é um veículo que naturalmente não é concebido para aquilo que queremos fazer com ele. É muito grande, muito pesado, muito alto, muito largo, muito comprido, com uma caixa de velocidades super difícil, e nós queremos fazer com ele o que fazemos com as motas. Portanto eu vou sentada, posso comer quando quero, posso ligar a soflagem e aquecer a cabine se for caso disso, tenho montes de coisas na caixa de carga, tenho mais duas pessoas ao meu lado. Mas é difícil em termos psicológicos. É muito violento porque todos os problemas são à dimensão do camião. Todas as dificuldades são à dimensão do camião. Um piloto de camião tem que ser perfeito. Não pode ter dúvidas porque não pode errar. Se eu perante uma situação tiver dúvidas se o camião passa ou não passa, eu pura e simplesmente já não passo, porque eu não me sujeito a pôr o camião em más condições.

 

Como é que a Elisabete consegue continuar a pilotar camiões quando a maioria das mulheres acaba a desistir?

Eu se calhar dou mérito ao meu marido, que trabalha comigo. Se ele não estivesse ao meu lado eu já tinha deixado há muito tempo. É um trabalho de equipa. E se calhar também tenho de dar mérito aos meus patrocinadores, que têm estado ao meu lado estes anos todos, porque sem eles eu não fazia nada. Eu trabalho muito, é um facto. Dedico-me de corpo e alma, faço todos os sacrifícios que sejam necessários para continuar a correr, mas se me faltassem esses dois pilares eu caía logo para o lado e não tinha possiblidades por maior força de vontade que tivesse. É um desafio muito pessoal, é um facto. É uma luta que eu quero vencer, chegar ao topo da classificação geral. Era o meu sonho com a mota, fazer um brilharete nas corridas, mas nunca consegui. E é o que eu quero fazer com o camião. Dou tudo por tudo, mas tenho que reconhecer que eu tenho um apoio muito grande que se calhar as outras raparigas que apareceram não tiveram. Deixe-me contar uma história gira. Quando eu ganhei o rally de Marrocos houve um jornalista marroquino que foi fazer uma entrevista ao Jorge e não a mim. E perguntava-lhe “Você não acha que uma mulher ganhar a categoria dos camiões desvaloriza a modalidade?”. Isto traduz aquilo que as pessoas pensam quando eu tenho bons resultados. De facto é duro, é difícil, só homens fazem. Mas se há uma mulher que faz então não é assim tão difícil. Não é um “Ela é suficientemente boa para fazer como eles.” Ou é levada ao colo, ou não fez o caminho todo, ou alguém a levou, ou alguém conduziu por ela.

 

Há vários veículos num rally, não é? Tenho ideia que existem por exemplo mais mulheres nos carros, é verdade?

Sim, muitas como navegadoras, porque têm a capacidade de ficar concentradas muito tempo. Aparecem algumas como navegadoras, e como condutoras poucas. Há algumas, mas não muitas. Contam-se pelos dedos.

 

Mas porquê? Tem alguma ideia?

É assim: dizem – ou está escrito nos livros – que as mulheres têm uma menor capacidade de entendimento espacial do que os homens, e de facto a condução exige uma leitura de espaço muito grande. Esta poderá ser uma das razões. Outra razão é que as mulheres se defendem muito mais do que os homens dos perigos e dos acidentes. São menos arrojadas a situações periogsas. Por outro lado, e eu acho que de todas esta é a razão principal, tem a ver com a nossa educação. Somos educadas numa segregação enorme de atividades, de ideias, de pensamentos, de tudo. Somos habituadas a que uma coisa seja para os rapazes, outra para as raparigas, eu não posso fazer aquilo porque aquilo é dos meninos, os meninos é que fazem. E crescemos assim.

 

E mesmo que tenha conseguido quebrar esse estereótipo, se calhar há pessoas que ainda só a vêem como uma mulher num desporto de homens…

Vou-lhe contar. Porque é que eu consigo estar aqui hoje? Porque eu decidi fazer corridas de camião. E como não havia mulheres a conduzir camiões eu tive um sucesso enorme, apareci nos jornais todos. Se calhar apareci mais nos jornais por dizer que ia fazer uma corrida de camião do que quando ganhei uma geral. Mas apesar de todos os jornais terem posto a minha fotografia a dizer que tinha feito o Dakar de camião, ninguém, absolutamente ninguém acreditava que fosse eu a conduzir o camião. Nem os meus colegas de rally de mota acreditavam. Perguntavam todos assim: “Então e quem é que conduz o camião?”. Não era evidente que fosse eu a conduzir o camião. De forma que os primeiros rallies que eu fiz – e ainda hoje tenho essa tendência – eu agarrava-me ao volante e não largava nunca. Eu conduzi de dia e de noite. E não havia ninguém que visse o meu parceiro do lado a conduzir o camião por mim, porque eu já sabia que se houvesse alguém que dissesse “Eu vi o não sei quantos a conduzir” era o descrédito absoluto. E eu precisava muito dessa credibilidade para conseguir patrocínios e para conseguir continuar a correr. Por isso, cá está, é o preconceito e o estereótipo. “O camião é para homens”. Aquele preconceito que se tem muito enraizado na nossa cabeça, porque é assim que as nossas mães nos ensinam, e é assim que ainda hoje a gente ensina os nossos filhos. Não pensamos, não questionamos… Porque ninguém ensina ninguém a educar, não é? Nós fazemos como os nossos pais fizeram connosco, reproduzimos e não questionamos sequer. E há gestos que fazemos que são absolutamente discriminatórios na educação e nem paramos para refletir um bocadinho sobre isso.

 

Elisabete Jacinto

 

Acha que ajudou a quebrar estereótipos na escola, quando era professora?

Os miúdos adoravam a sua professora de Geografia porque ela chegava de mota, de capacete enfiado no braço. Isso era um facto. E as miúdas começaram a perceber que as raparigas também podem andar de mota. Lembro-me de uma situação muito constrangedora que eu tive uma vez com a mãe de uma aluna (que era minha colega na escola). Ela veio ter comigo e disse “Por favor Elisabete, faz o que puderes para tirar da cabeça da minha filha esta ideia maluca que ela tem de querer andar de mota. Porque eu não vou conseguir suportar ver a minha filha a andar de mota”. E eu senti-me muito mal nesse momento. Porque achava que era um bom exemplo, de prática do desporto, de associar o desporto ao estudo, ao trabalho, aquelas coisas todas. Continuei a fazer a minha vida tal e qual, mas de facto percebi que eu de certa forma era um modelo para as miúdas, ou pelo menos que as fazia questionar qualquer coisa.

 

Como é que se sente com o facto de ser a primeira mulher a pilotar camiões? É algo que a leva para a frente e a motiva?

Nós vamos buscar incentivos aqui e acolá. Eu não lhe contei muitas histórias que tenho para contar, mas no meu primeiro Dakar, eu tive de pedir dinheiro emprestado para participar porque não consegui patrocínios. Eu andei aí a bater à porta de todas as empresas do país. Consegui a mota, depois consegui um patrocínio para as inscrições mas precisava de dinheiro para as outras despesas todas. Fiz aqueles dias de Dakar com muitas dificuldades. Tive muitos problemas mecânicos. E desisti. E quando cheguei a casa, completamente deprimida e de rastos, comecei a ver o que é que tinha saído nos jornais sobre mim. E há um jornalista que tem a coragem de escrever uma coisa que me abanou completamente, foi como se eu levasse assim um bofetão na cara, daqueles bem fortes. Ele dizia-me assim “Já vi várias mulheres terminarem o Dakar, mas francamente, tinham corpo de homens. Não acredito que esta menina de aspeto frágil consiga sobreviver a mais de uma semana” ou de sete dias, ou algo desse género. Mas isto só para dar o exemplo de situações que nos põem para fora. Há muitas. Muitas. No nosso dia a dia estamos constantemente a enfrentá-las. Outro exemplo que lhe vou dar: nós vamos para as corridas e compramos imagens de televisão, e distribuímos as imagens pelas televisões. Se eu fizer um bom resultado, as televisões podem pôr uma imagem minha (para mim é bom, para os patrocinadores também, mas temos nós de a pagar). E havia um canal de televisão que falava do rally, falava de toda a gente, punham imagens de todas as pessoas e minhas nunca punham. E passou uma corrida, duas, três, quatro, e um dia a rapariga que me faz a assessoria de imprensa decidiu perguntar se havia algum problema com as imagens, porque nunca punham imagens minhas. E o jornalista dizia “A Anabela tem de perceber, a Elisabete está lá porque é senhora…”. E a Anabela dizia “Não, a Elisabete ganhou os camiões no rally de Marrocos”. “Ela ganhou mas foi as senhoras!”. “Não, a Elisabete não ganhou as senhoras, a Elisabete ganhou a geral dos camiões, ganhou a corrida na categoria camião.” “Mas oh Anabela, tem de compreender que como ela é mulher não faz sentido…”. Isto é só um exemplo, mas temos muitos, muitos. Com aquilo que eu já tenho feito, se eu não fosse mulher já tinha aí um destaque enorme.

 

Entrevista: Inês Fernandes | Fotos: Borbála Kristóf

 

Alexandra Oliveira: “A sexualidade continua a ser uma dimensão da nossa vida que é moralmente muito reprimida e balizada”

Alexandra OliveiraAlexandra desde muito cedo entendeu que se tivesse nascido rapaz as coisas seriam diferentes. Escolhe a rua para iniciarmos esta conversa, porque sente que este espaço de todos/as ainda é vedado às mulheres, pelas prescrições comportamentais a que este espaço as expõem. É também nas ruas, junto das pessoas e ouvindo as suas histórias, que foi encontrar a voz que quer dar ao seu trabalho enquanto investigadora.

 

O que te construiu na mulher e feminista que és?

Tenho de recuar à infância e aí a família é central. Para falar da minha construção enquanto pessoa e, neste caso, enquanto mulher tenho de começar por aí. Venho de uma família de classe média, com pais que se preocuparam em dar o melhor às filhas e ensinar-nos valores. Nasci numa família onde há carinho, amor e respeito. Depois no meu contacto com a escola, quando chego à adolescência, começo a ter consciência de algumas injustiças, nomeadamente discriminações de género. É aí que a minha consciência feminista começa a ganhar mais consistência. Eu acho que já nasci com ela mas é na adolescência que começo a ganhar mais consciência do significado de ser mulher e das injustiças, nomeadamente das diferenças de género e das desigualdades; porque é quando nós nos começamos a afastar do espaço de conforto, que é o espaço familiar, e começamos a tomar mais contacto com um mundo que nos desafia e que nos chama a atenção para algumas coisas. A questão da rua, por exemplo, enquanto espaço que é vedado às mulheres, foi algo que eu senti logo desde miúda. A certa altura, na adolescência, quando começamos a querer alargar o nosso espaço e a ganhar a nossa autonomia, começo a perceber que a rua era um espaço muito mais masculino do que feminino. Começo a ter consciência de todas as normas de género que nos são impostas e dos comportamentos apresentados como adequados ou não para uma mulher. Quando nós deixamos de ser apêndices dos nossos pais e começamos a querer conquistar o nosso espaço, entendemos que no mundo exterior à família também há regras, e que essas regras nos limitam e nos restringem os comportamentos. As questões relacionadas com a diferença de comportamento entre rapazes e raparigas foi algo que não me fez sentido. O que era apresentado como a forma de uma menina se comportar parecia-me muito castrador. E eu nasci em 1969, portanto, tive a minha adolescência nos anos 80, uma altura em que a sociedade era um bocadinho diferente da sociedade atual e que cerceava muito mais os comportamentos. Depois também nasci numa cidade pequena, num meio onde toda a gente se conhece e sentia muito a imposição dos valores morais conservadores. As questões da sexualidade foram muito fortes, a contracepção, o acesso aos meios anticonceptivos, o comportamento sexual feminino… Todas estas questões que nos limitam, embora atualmente com mais alguma liberdade, foram determinantes para que eu me construísse enquanto feminista. Não houve um marco específico, mas toda esta constelação de questões que tem que ver com o género feminino, com a mulher, com a liberdade e com os comportamentos que nos prescrevem como sendo os que devemos ter. E é nas questões da sexualidade que o comportamento feminino é mais controlado, é onde se sente mais. Outro exemplo da questão com a qual me fui confrontando: o facto de uma rapariga que não quisesse ter uma relação com um só rapaz ser imediatamente alvo de reprovação moral e rotulada como mal comportada. A minha indignação também tem a ver com isto: qualquer mulher que tenha um comportamento que não é de acordo com o que é esperado dela sexualmente, facilmente recebe a etiqueta de prostituta.  Esta questão do estigma de ‘puta’ é uma espécie de espada de Damocles que está por cima de qualquer mulher. Qualquer mulher que pise o risco, ou que pise um bocadinho ao lado, facilmente fica com esse rótulo. E eu fui tomando consciência dessas coisas e fui-me questionando. Não tinha lido nada sobre feminismo mas já tinha essa consciência de que até nas questões da aparência, da estética, de tudo o que uma mulher deve ser visualmente havia prescrições e regras que me prejudicavam. Depois comecei a ler algumas coisas sobre feminismos e comecei a situar-me. A faculdade foi igualmente importante. Estive bastante envolvida com as questões da legalização do aborto, há mais de 10 anos. Foi uma luta grande.

 

E como foi essa luta? 

Foi uma grande vitória e uma vitória mais do que necessária na altura. Nós tínhamos relatos de casos muito graves de mulheres que morriam até. De mulheres que eram perseguidas judicialmente por causa dos abortos clandestinos. E tínhamos as forças mais conservadoras da sociedade a tentar travar qualquer mudança legislativa, por razões morais. Temos aqui uma vitória dos movimentos feministas e dos movimentos sociais que se preocupam de facto com as mulheres – esses são realmente os movimentos pró-vida, aqueles que se preocupam com a vida das mulheres. E depois de uma grande batalha foi conseguido aquilo que eu acho que é justo. Até porque esta questão só acentuava ainda mais as desigualdades, quer dizer, se eu quisesse fazer um aborto e tivesse dinheiro, eu não ia fazer um aborto em más condições. Eu sabia onde estavam as clínicas e onde eu podia fazê-lo pagando e sem precisar de correr risco de vida. Ou seja, a desigualdade de género interseccionava com a desigualdade económica, o que sempre acontece nestas coisas. E é uma vitória que penso que não é reversível. Se bem que com o último governo PSD/CDS houve um retrocesso com a introdução de taxas moderadoras e com a obrigatoriedade de acompanhamento psicológico prévio à decisão da mulher.  Não passa pela cabeça de ninguém. As mulheres sabem decidir por elas e não precisam que as infantilizem.

 

Alexandra Oliveira

 

Neste momento em termos de feminismos onde achas que Portugal está?

Acho que os movimentos feministas continuam necessários. Há ainda a fazer um trabalho muito importante. Se pensarmos, por exemplo, nas questões da violência na intimidade, o que tem sido feito é muito mas ainda há muito por fazer porque as mulheres continuam a morrer vítimas dos seus companheiros conjugais, vítimas das pessoas de quem mais gostam. E isso mostra que ainda é preciso mudar muito na nossa sociedade. Houve alterações legislativas importantes. Há, neste momento, uma série de meios à disposição das mulheres como, por exemplo, as casas abrigo. Mas é necessária uma mudança de mentalidades e isso não se alcança de imediato. Acho que tem que ser feito um trabalho com as pessoas mais novas da sociedade, as crianças, através de formação sobre o que é a desigualdade de género, sobre o respeito pelo outro.

 

E o que achas que falta para passarmos este impasse?

Não acho que estejamos num impasse. Se as questões legislativas podem parecer as mais fáceis, na verdade às vezes não são fáceis. Até que a violência doméstica fosse crime público, por exemplo, houve que vencer muitas forças de resistência. Acho que devemos estar alertas, atentas e sempre a lutar porque as mulheres continuam a ser vítimas de grande desigualdade, a sofrer, a morrer, a ganhar menos, a ter menos acesso ao emprego, a ter mais entraves no acesso aos cargos de chefia… sabemos tudo isso, então é preciso uma luta constante pela igualdade.

 

Numa época em que parece falar-se muito de feminismo e de forma muito aberta, por outro lado também temos estas situações. Achas que estamos a ir no caminho certo?

Nós temos mais do que um feminismo e em algumas áreas específicas eu distingo diferenças muito grandes entre os diversos feminismos. Em termos globais, sim, estamos a ir no caminho certo. Quem diz o contrário é quem pretende defender o estado das coisas. Nas redes sociais as pessoas expressam-se abundantemente e, muitas vezes, sem freio e é frequente vermos posições fortemente anti-feministas, como aquele epíteto ‘feminazi’ que surge como uma forma de descredibilizar o trabalho feito pelas mulheres feministas e manter os privilégios masculinos. Quem toma essas posições pega nos feminismos como um todo e na sua parte mais anedótica e exagerada e posiciona-se contra. Há pessoas que dizem que são pela igualdade de direitos entre homens e mulheres mas que não são feministas porque há toda uma imagem criada da feminista como uma mulher radical que quer ser superior aos homens… Quase como se o feminismo fosse uma espécie de machismo ao contrário quando isso, no fundo, é ignorância das pessoas que não sabem o que é o feminismo. Não podemos deixar que o trabalho das feministas e dos feministas seja descredibilizado.

 

Atualmente como achas que a sociedade encara a sexualidade da mulher?

Continua a prescrever muito. A sexualidade da mulher é muito controlada, embora a do homem também. E quando digo prescrever é dizer exatamente como se deve comportar um homem e como se deve comportar uma mulher. Não estaremos como há 40 ou 50 anos, mas, a sexualidade feminina, ainda continua a ser muito vigiada e a ser rotulada negativamente quando não se enquadra no comportamento sexual que é considerado apropriado para uma mulher. Mesmo nos meus alunos da faculdade que têm 18, 19, 20 anos, ainda vejo muito esses julgamentos diferenciados sobre o que deve ser um comportamento de uma rapariga e de um rapaz. A forma como educamos as nossas crianças contribui para isso, desde pequeninos lhes são incutidas diferenças de género. Mas o comportamento sexual masculino também é submetido a controlo, o comportamento sexual masculino também é pensado de uma determinada forma, não há, no que respeita aos homens, espaço para a feminilidade ou para a passividade… Quando acontece são imediatamente rotulados de gays e rejeitados… A sexualidade continua a ser uma dimensão da nossa vida que é moralmente muito reprimida e muito balizada. Temos o exemplo da transgeneridade, em que se tem feito um bom caminho, mas, depois, no dia-a-dia, as pessoas são maltratadas na rua, são perseguidas, são vítimas de bullying homofóbico… Continua a haver miúdos que se suicidam porque não aguentam a pressão na escola. A sexualidade ainda é, assim, um grande reduto das forças mais conservadoras.

 

Enquanto mulher o que achas que vem a seguir para os/as jovens? Qual seria o caminho que te parece haver a fazer?

Acho que os jovens, considerados ainda em desenvolvimento, devem ser consciencializados paras as diferenças de género, para as discriminações e para necessidade de lutar contra elas. Isto é imprescindível. Para  lutar contra as desigualdades é preciso ter consciência delas, por isso é necessário dar conhecimento das discriminações de género, do sexismo e até da misoginia. É preciso mostrar exemplos específicos: as desigualdades salariais, a violência no namoro… É preciso que tenham consciência dos micromachismos. Há discriminações que as pessoas não vêem como tal. Nós continuamos a ter órgãos de comunicação social neste país a terem painéis exclusivamente de homens a comentar assuntos que dizem respeito a homens e a mulheres. É preciso tomar consciência destes casos, nestas áreas todas, para querer lutar por uma sociedade mais justa e livre.

 

Alexandra Oliveira

 

Quais os sonhos ou lutas que ainda estás à espera de agarrar?

O sonho de uma sociedade mais justa e livre implica uma luta à qual não podemos renunciar. Por muitos avanços que tenham ocorrido, a luta das mulheres e homens feministas pela justiça e pela igualdade é algo do qual não podemos desistir. Eu espero que haja lutas que vão deixar de fazer sentido porque as desigualdades a que respeitam foram resolvidas. Por exemplo, eu espero que, um dia destes, já não haja necessidade de, em termos da linguagem, ter que continuar a explicar que o masculino é um falso neutro. Hoje já não precisamos de lutar pelo direito de voto das mulheres, pelo menos em Portugal, mas há muitas outras desigualdades e discriminações que é preciso combater. As opressões são muitas e, embora atualmente a igualdade entre mulheres e homens esteja consagrada na lei, é preciso estar atenta aos grupos de mulheres que são mais oprimidos, às mulheres que continuam tomadas pela submissão e subalternidade. Serve isto para dizer que a luta do feminismo é uma luta da qual ainda não podemos abrir mão por muitos avanços que tenham ocorrido. Esta é uma luta que agarrei e que vai continuar a ser minha.

Entrevista: Joana Torres | Fotos: Nélida Cardoso

Joana Sales e Teresa Sales: “Faz muita falta que as mulheres se unam para lutar contra as discriminações”

Teresa e Joana Sales são mãe e filha e juntas lutam ativamente pela Igualdade de Género. Foi apenas o início quando Joana, aos 12 anos, passou a utilizar só o apelido da mãe. Teresa juntou-se à luta e hoje partilham mais do que ideias: ativismo feminista, principalmente através da UMAR.

 

 

Quando é que se aperceberam que eram feministas?

Teresa: Desde sempre que fui feminista. A minha mãe sempre me ensinou que as raparigas têm que estudar e trabalhar para nunca dependerem de um homem. Eu lembro-me que tinha uma empregada doméstica que chegava lá a casa batida. E sempre me insurgi. A verdade é que ir à polícia não dava em nada.

Em minha casa o meu pai fazia a comida, partilhava as tarefas com a minha mãe, que não era normal nos anos 50. Apercebia-me que havia uma discrepância entre o que se passava em minha casa e na dos outros.

Joana: Acho que me comecei a sentir como feminista através do assédio sexual de rua, já desde pequena. Foi aquilo que me fez sentir a opressão machista. É aí que começo a sentir a invasão, o que é o poder masculino sobre nós.

 

Faz 10 anos que o aborto deixou de ser penalizado. Como é que viveram essa vitória?

Teresa: Tanto uma como outra estivemos bem metidas no movimento pelo Sim. No dia 11 [de 2007], quando terminou estava toda chorosa! Foram tantos anos, isto foi uma luta brutal!

Joana: Entre o referendo de ’98 e o de 2007, houve muitas tentativas e estive sempre ativa nesses anos. Houve julgamentos de mulheres por abortos em que cheguei a estar em frente ao tribunal. Foi uma luta mesmo muito grande.

 

O que é que acham que falta ao feminismo em Portugal?

Teresa: Atualmente as mulheres quase todas dizem que são feministas, começa a tornar-se “moda”. Faz muita falta é o ativismo feminista, que as mulheres se unam para lutar contra as discriminações.

Joana: O feminismo está muito mais “desestigmatizado”, e isso é bom. Cada vez mais estrelas da cultura pop dizem ser feministas e têm essa influência. Apesar disso, as outras pessoas do movimento geral ainda não se incluem muito. Acho que as pessoas não veem isto como um assunto também político e como um direito humano fundamental.

 

Teresa e Joana Sales

Entrevista: Margarida Henrique | Fotos: Pedro Pinto Basto

Aida Suárez: “A ficção também educa, também te dá pautas, por isso tentámos que os livros não reproduzam estereótipos ou situações de discriminação”

Aida, que desde muito cedo de viu dividida entre Portugal e Espanha, encontra nos livros a ponte entre os dois países, ao trazer de Espanha a vontade de abrir uma livraria de Mulheres em Portugal. E se desde cedo liga a sua vida com a presença do livro, a Confraria Vermelha vem dar a tónica que faltava a esta relação e ao seu comprometimento com as questões de género.

 

 

Como foi a tua infância e juventude?

Desde que nasci até aos seis anos foi passada entre duas cidades e entre dois países. Metade do ano no Porto e a outra metade em Espanha, em Leon, que era e continua a ser muito diferente do Porto. E, na década de 80 as diferenças entre os dois países eram muito mais vincadas do que possam ser agora. Era viajar entre duas culturas e entre duas famílias, a paterna e a materna. Era uma mistura de culturas e de línguas. Costumava brincar e dizer que a minha língua na parte de cima falava português e na parte de baixo espanhol e quando chegava à fronteira desligava uma das partes.

Quando entrei para a escola primária os meus pais decidiram que devia ser aqui e fiz a escola  numa escola muito modesta, na zona de Campanhã. Eu cresci num bairro social, o Bairro de S. Roque, ou seja, cresci no meio de bairros sociais e eu acabava por os frequentar por causa dos meus amigos. No final da escola primária fui estudar para Espanha dois anos e depois voltei. Entre os sete e os oito anos que tive o meu primeiro contato com o ativismo, juntamente com amigos e inscrevemo-nos numa coisa que se chamava pelouros e, no caso, inscrevemo-nos no da saúde. Naquele ano tinha havido muitas amigas próximas ou conhecidas que engravidaram, com idades entre os doze e os dezasseis anos, sendo que dentro desses casos havia já outras complicações a que a gravidez se somava. Nós queríamos fazer alguma coisa em relação a isso, fazer com que as meninas fossem acompanhadas no Centro de Saúde. Pensávamos “Neste momento eu não queria e se fosse comigo o que eu queria que me fizessem?”. Então conjuntamente e Centro de Saúde montamos uma estrutura com pessoas para ajudar. O nosso papel era criar a ponte entre as jovens e os Centros de Saúde e a escola. E tentávamos duas coisas: que não abandonassem os estudos e que fossem seguidas em consultas. Esse foi o primeiro momento de ativismo. Acabamos por entender que a raiz daquilo era a educação sexual e preparamos sessões para a escola. Foi muito interessante e tivemos muito apoio. Vindo de um problema, procuramos estratégias e éramos umas miúdas da mesma idade que as que contatávamos.

No secundário fui para Humanidades, mas não gostei e depois passei para animação sociocultural. Daí a chegar aos livros foi rápido: fui para o curso profissional e depois para a faculdade e aí percebi que o livro pode ser uma ferramenta para as coisas que eu achava que podia contribuir. Durante o curso, tudo o que era bibliotecas escolares eu envolvia-me e dizia “Quando acabar o curso vou trabalhar numa biblioteca”. E assim foi. Trabalhei na E.B. 2/3 da Areosa muito tempo. A relação com o livro como ferramenta do fazer pensar. Depois fui para a Santa Casa e depois fui para uma ervanária.

A área de animação sociocultural não é fácil, principalmente ao nível das instituições, cansa. Depois comecei a fazer oficinas de desenvolvimento pessoal e eram oficinas de mulheres, para mulheres através do recurso “arte” e “livre” e cada vez mais a questão de trabalhar com mulheres começou a crescer.

 

E a livraria, como surge?

Em 2009 fomos a Barcelona e eu queria ir à livraria de mulheres de lá. E fiquei com a ideia: “aquilo é giro”. No ano seguinte fomos à de Madrid e aí eu disse: “quero uma livraria de mulheres no Porto”, não só para poder manter o vínculo mulheres e livros, mas também com uma perspetiva de género. Um projeto sobre o pressuposto de que 90% do catálogo disponível na livraria é assinado por uma mulher e também vamos tentando (e isto é mais difícil, mas vamos tentando) e que os livros de ficção tenham algum cuidado com as questões de género. Por exemplo, uma das coisas que acontece na literatura e até no cinema é usar o abuso, a violação sexual e agressão sexual para tentar descrever personagens ou, quando o enredo está às voltas, metes ali uma violação ou tentativa e logo ali ficas com o enredo todo solucionado: tens o vilão, quem salva e a pessoa que é agredida (que normalmente são mulheres). Usa-se isso porque sim, de uma maneira muito frívola e nem criando por vezes empatia com a vítima. É um abuso do abuso como recurso fácil, porque muitas vezes nem acrescenta nada á história. E a ficção também educa, também te dá pautas, por isso tentámos que os livros não reproduzam estereótipos ou situações de discriminação. Não quer dizer que não falem. Tu podes fazê-lo, mas faz com que o teu enredo o faça de maneira coerente e não reproduza. E por isso nasce a confraria, porque acho que é necessário, no mundo da literatura, que as escritoras tenham alguma visibilidade; que se mostrem as diferenças que ainda existem, não só nesta profissão, mas o facto de ser uma livraria especializada, ajuda. Tentamos que os livros também tenham uma perspetiva de género, que não reproduzam estereótipos, que não reproduzam racismo ou discriminação, seja ela qual for. E não quer dizer com isto que não se falem destas coisas nesses livros mas as personagens e o enredo podem expor as problemáticas de maneira coerente e não reproduzindo.

 

Aida Suárez, Confraria Vermelha

 

Onde está o feminismo em Portugal, neste momento?

Ainda não está. Nós achamos que está, mas ainda não está. E não está porque o feminismo tem que ser uma coisa prática e, para isso, tem que ser acessível a todas as mulheres. O que não é. E quando digo que tem que ser uma coisa prática quero dizer que tem que estar presente no teu dia a dia e tem que dar resposta às necessidades do dia a dia de cada mulher. E se ainda não nos está a dar todas as ferramentas para os obstáculos que nos apresentam, então é porque ele não está onde tem que estar, que é na rua. Para mim o feminismo é isso, uma coisa do quotidiano e uma coisa prática. Não pode ficar na esfera académica, política ou na esfera do pensamento. Basta ver quando há uma manifestação de mulheres, que tipo de mulheres lá estão. E não estamos todas, faltam muitas. Então, é preciso chegar a essas muitas que não estão ainda. Como? Não sei. Mas é preciso lá chegar. Ainda por cima, nesta altura em que se fala tanto de feminismo (que eu nem sei se gosto que se fale tanto). Digo isto porque voltamos a cair nas garras do patriarcado porque ás vezes nem nos apercebemos que quem está a falar muito dele é a voz patriarcal que o transforma numa coisa que ele não é. É quase como “popizá-lo” , não me parece que exista a palavra, mas é uma ideia para dizer que embora o feminismo deva ser uma coisa popular, torna-lo pop no sentido Andy Warhol… acho que é contraproducente. Agora, acho que se estão a fazer coisas. Aqui no Porto há grupos a trabalhar e a criar redes de apoio. E é isso o feminismo quotidiano, criar redes de apoio entre mulheres que respondam às necessidades que elas têm no seu dia a dia. Porque apesar de por vezes querermos acreditar que as coisas mudaram , algumas não mudaram tanto como achamos. Há até a mudança legal, mas depois há a mudança real e essa às vezes não é suficiente. As mulheres continuam a ser sobre quem recai os cuidados: dos filhos, pessoas doentes, idosas. Há uma dupla ou tripla jornada e recai em situação de crise a precariedade num índice maior… Então estas fazem parte das inúmeras questões a que as mulheres tem que dar respostas e estas redes  são sem dúvida uma resposta e um suporte. Isto é o que é realmente o significado desta palavra que tem sido tão resgatada: a “sororidade”. A sororidade não significa que eu tenha de ser tua amiga, mas passa sim por trabalhar no mesmo sentido para que determinado tipo de coisas vão dando lugar a outras. O que o feminismo tem que fazer neste momento é fazer com que as mulheres que sofrem com menos dimensões de exclusão não andem para trás mas puxem as que estão atrás, e que sofrem de mais desigualdade, para a frente. Até esse momento nós não estamos realmente a trabalhar. Todas temos de ter acesso à educação, ao trabalho digno, a andar na rua livre de assédio, de violência… Às vezes nem sabemos o que temos e é importante parar para pensar no que tens e no uso que fazes disso. Para mim, neste momento, enquanto pessoa e ativista, o meu trabalho está assente nessa desconstrução. Aprender a estar calada quando alguém que está ao meu lado tem que falar e falar quando me calei. Saber onde a minha voz tem que estar e como a devo usar e, isso é um trabalho fundamental. Nós pensamos sempre em grandes projetos, mas este trabalho individual de desconstrução de privilégios é fundamental para que quando vais fazer um projeto o faças de forma mais consciente. Falamos muito da diversidade e inclusão sem pensar que não posso ser inclusiva se não me desconstruir.

E o meu trabalho deste ano na livraria é pensar em como chegar a quem o feminismo ainda não chega. Mesmo que seja pouco. Às vezes queremos fazer muito porque queremos uma mudança rápida mas é preciso dosear. Nestas coisas as coisas são difíceis de mudar,  se pensarmos: “Porque é que o feminismo sempre é empurrado, combatido e confundido?” Porque é uma maneira de pensar e de viver, mais do que uma filosofia, digamos assim. Como dizem as companheiras espanholas “é pôr uns óculos violeta (simbólicos), que desde que pões nunca mais consegues tirar nem ver as coisas da mesma forma”. E é normal que ao teres esses óculos 24 sobre 24 horas vejas coisas que não queres ver e irritas-te… Então tens de aprender a dosear isso e arranjar maneiras diferentes  de estar com isso e que pode ser através do afeto, por exemplo. E é preciso ir ouvir as outras, as tais mulheres que ainda faltam. A mim faz-me muita confusão as muitas formações que agora há. Por exemplo, há uma formação sobre a mulher cigana e depois não está nenhuma mulher cigana em sítio nenhum. Como podemos falar de uma problemática sem ter as pessoas a quem lhes diz respeito? Faz-me imensa confusão. Estamos a querer fazer por… Não vai funcionar. A nível institucional acho que se faz mais do que se devia. Depois não gosto de outra coisa, que é acharem que as mulheres fazem coisas corajosas. Era muito mais produtivo eu não ter de estar nessa posição combativa, nem quero mérito por isso. Tu não te tornas feminista, nasces feminista, com mais ou menos consciência disso. E percebes que o és desde que começaste a falar. Já o era a tua avó e a tua mãe. Sem elas se calhar nem terem mencionado a palavra feminismo. Mas o feminismo também não tem que ser mencionado.

 

E durante o teu percurso, como foi assumires-te como feminista?

Eu tenho muita dificuldade em meter-me dentro de caixas e esta é a única onde estou confortável. As restantes podem oscilar. O feminismo é como se estivesse no meu ADN. Com o nascimento da confraria realmente começo a usar a palavra de forma mais burocrática. Eu nunca tive problemas em dizê-lo, embora haja pessoas que em alguns ambientes não o dizem para não criar atrito. E eu entendi algumas coisas sobre isso. Há meia dúzia de anos engalfinhava-me em discussões que não me levavam a lado nenhum. Neste momento não o faço. Entendi que enquanto feminista não tenho que assumir o papel de educadora e entendi que, na verdade, nas discussões de quotidiano, quem te pergunta sobre feminismo são pessoas que não querem saber, mas querem irritar-te, para entrarem numa discussão. Não vale a pena. Ultimamente, com o feminismo tão pop, tenho tido alguma reserva em o dizer, as pessoas vão entender pela minha forma de estar. E quando digo pop é pop de popstar e isso não pode acontecer, como não pode acontecer o feminismo ficar na esfera académica ou na agenda política. É necessário mas não suficiente.

 

Aida Suárez, Confraria Vermelha

 

E assumindo essa tua leitura dos feminismos pop, como achas que as gerações mais jovens têm recebido isto?

Acho que corremos o risco de acontecer o que acontece no jogo do telefone em que a informação quando chega ao último receptor já está toda  atropelada. E é aí que vejo perigo deste merchandising que se faz. O feminismo sem conteúdo não faz sentido.

 

E entre a Aida dos 20 e a Aida de agora, quais são as maiores diferenças?

Já não compra todas as batalhas. Consigo perceber a verdadeira batalha. Engalfinhar-me num jantar com machões não é pensável, não entro nesse looping. Aprendi principalmente qual é o foco, apesar de saber que muitas pessoas vão-me tentar desviar pelo caminho e agora também faço um exercício de desconstrução dos privilégios, que os vinte anos custa-te mais a fazer. Aqui entram as pessoas, os contactos com outros feminismos que, quando dá conta, estão a ajudar-te a fazê-lo.

 

Entrevista: Joana Torres | Fotos: Nélida Cardoso

Patrícia Vassallo e Silva: “Sem dúvida que foi a eletricidade que me tornou feminista”

Patrícia Vassallo é fundadora do movimento “Por todas nós”. Eletricista de profissão, depois de contar a sua história para as Capazes, decidiu dar a cara e a voz por todas as mulheres, por todas nós.

 

 

Quando é que reparaste que querias ser eletricista?

Quando fui estudar audiovisuais e entrei no curso de produção, há dez anos atrás. Achei que queria ser técnica de iluminação para espetáculos e depois comecei a ver que o que eu queria ser era eletricista. Só que nunca ninguém te mostra que podes ser eletricista. Como mulher não pões essa hipótese. Mas depois, houve um momento em que larguei a produção e fui estudar à noite. Candidataram-se 50 pessoas e apenas 3 mulheres. Pensei que não me iam chamar, mas chamaram. Tirei o curso de eletricidade e comecei logo a trabalhar na área. Juntava-me a colegas que já eram eletricistas e ia com eles, porque ainda não tinha experiência.

 

Sentiste alguma discriminação na tua área?

Onde eu senti mais discriminação foi no mercado de trabalho. Tinha colegas a trabalhar, e até podiam ter a mesma experiência que eu, mas a mim não me chamavam.  Mas durante o curso nem o tratamento era igual. Era: “deixem a Patrícia falar, é a menina…”. E eu também não queria isso, queria igualdade. Há dias que eu sentia que não havia espaço para mim. Mas eu tinha de o conquistar.

Na minha oficina tinha um poster gigante sobre desigualdade, mas para o conseguir pôr tive de ir com outro tipo de conversa: “vocês estão-se sempre a meter comigo e só por causa disso esta é a minha resposta a todas as vossas piadinhas”. O que eu fazia era decorar a minha oficina com mensagens feministas e falava muito do assunto. Mas houve uma vez que senti que me prejudicou um bocado.

 

Porquê?

Porque fui fazer um trabalho a teste durante uma semana e apresentei-me como feminista, e depois não me chamaram. Acho que o feminismo está a assustar cada vez mais os homens. A nível profissional não foi bom para mim, mas de resto sensibilizei aqueles homens para alguma coisa, por isso para mim já valeu a pena ter lá estado e seguir o meu caminho por outro lado.

Quando estás a trabalhar na área da manutenção estás a trabalhar juntamente com as senhoras das limpezas, com os jardineiros…e eu tinha muitas conversas com elas e eles. Lembro-me de falar quando saiu a FemAfro: de repente vejo todas as mulheres negras a agarrar no telemóvel e a perguntar como é que se chamava o coletivo para fazer like no Facebook. Isso para mim já é uma luta. Mas também tive situações desagradáveis, tive de apresentar queixa de um superior. Mas acho que como mulher sou muito privilegiada comparada com outras mulheres e é a mim que me cabe. Há mulheres que não podem fazer nada, estão nos seus trabalhos e têm medo de os perder por se defenderem e eu tomei aquela posição: vou-me defender por mim e por elas. Mas o meu dia a dia é uma luta constante.

 

Já foste recusada em alguns trabalhos pelo facto de seres mulher?

Sem dúvida. No sítio onde eu estagiei tinha um colega que queria muito que eu ficasse. Mas depois soube por teceiros que ele dizia: “não quero aqui uma mulher que não posso dizer palavrões. Não quero aqui uma mulher que não posso falar à vontade”. Na realidade eu achei que se sentiam ameaçados, porque depois de uma mulher hão de vir duas, ou três ou quatro.

E pagam menos, eu era a que recebia menos. Quando comecei a trabalhar por conta própria ia com um colega. E muita gente pensava que eu era a mulher dele, que estava a fazer companhia e a ajudar. Mas é isso todos os dias. Não é fácil, enquanto existir o machismo.

 

Patricia Vassallo Silva

 

Achas que tem havido algum avanço na posição das mulheres relativamente ao trabalho e à representação pública e social?

Eu acho que tem havido avanços. Até podemos ver pela política, já há mais mulheres a dar a cara e há avanços também na sensibilização. Eu tenho 31 anos, e quando falo com as pessoas que têm vinte e poucos acho que são uma geração que foi muito protegida, porque já é privilegiada em vários temas e então não liga. Por exemplo, relativamente ao voto, eu lembro-me de amigas mais novas que não vão votar: eu digo-lhes que houve mulheres que morreram para elas poderem votar e elas respondem que não estiveram lá. Eu digo-lhes: “ Tudo bem, mas olha que alguém lutou para poderes andar de mão dada com a tua namorada em público. Tu por seres negra, claro que sofres discriminação, mas alguém também lutou para não sofreres tanta”. Acho que é responsabilidade nossa pelo menos manter o que as outras mulheres já conseguiram. Mas também devemos dar continuidade. E o Por todas nós ajuda-me a perceber isso. Temos gente que nos apoia e pertence a outros coletivos. Eu tenho a Ana Cansado, da UMAR, que me apoia e me está sempre a ensinar e aprendemos uma com a outra. Tenho a Felipa Mourato das Capazes, a Alexandra Santos do Queering Style…tenho algumas pessoas a quem me posso encostar para me ajudarem, o que é bom.

Para mim o mais difícil é gerir as pessoas, os diferentes tipos de pessoas. Porque há pessoas que vêm com outros objetivos e tu tens que estar ali numa luta. Eu sou aquela que quer receber toda a gente e acho que toda a gente vem por bem, mas na realidade não é assim. É muito complicado, pois eu não quero discriminar ninguém. O que eu costumo dizer às pessoas é que o Por todas nós não tem uma cara, são várias pessoas que se dedicam e trabalham para isto.

Por exemplo, uma questão que se fala muito é a questão dos partidos políticos. Eu ando a descobrir onde é que os partidos políticos se encaixam aqui ainda. Eles são muito importantes, sem dúvida alguma, pois depois são eles que na realizade conseguem terminar certas lutas, concretizar o que nós queremos ou passar a nossa mensagem.  Eu defendo muito que nós somos apartidárias e defendo que os coletivos, as pessos individuais e o feminismo têm que estar à frente e os partidos têm que nos apoiar. Por exemplo, na Marcha do Orgulho LGBT, os partidos estão lá mas respeitam as pessoas e vão atrás. Não pode ser de outra forma, porque senão a imagem vai ser dos partidos.  Os partidos têm de nos dar voz e mostrar a mulher que está em casa e que não foi trabalhar para cuidar o filho ou que não fez uma carreira. Têm que deixar essas pessoas falarem e aparecerem. Os media vão à bandeira do partido, não vão a essas mulheres. E essa é a minha luta, mais uma. É isso que eu tento com o Por todas nós.

 

Quando começaste a interessar-te pelo feminismo?

Tive uma cliente feminista que me contratou, estava eu ainda a acabar o curso. Conversámos muito sobre desigualdade entre homens e mulheres e não haver espaço para as mulheres. E eu até lhe disse que estava a ser um bocado exagerada,  mas depois comecei a ver as coisas à minha volta de outra forma. Essa pessoa, Felipa Mourato, insistiu em que tinha de escrever a minha história. E a partir do momento em que escrevi começou a sair a dor e a força que eu tinha de ter todos os dias. Senti que havia muita coisa para fazer e comecei a lutar por conseguir o meu espaço como mulher na minha área. Sem dúvida que foi a eletricidade que me tornou feminista.

 

Como é que surgiu a ideia de o Por todas nós?

Quando a REDE fez o Encontro de Jovens Feministas fez uma plataforma no Facebook para trocar mensagens. O Álvaro Ávila, que também está no Por todas nós, perguntou se íamos fazer alguma coisa para o Por todas elas e eu subscrevi, mas vimos que não tínhamos resposta. E ele disse que tinha de ser eu. Então criei o evento e já tinha vários coletivos a contactar assim que o evento saiu, para marcar uma reunião, para preparar as coisas…e aconteceu. É o que eu digo, o Por todas nós é mesmo rua.

 

Achas que o ativismo em Portugal tem relevância ou é preciso mais mobilização?

Eu comecei no ativismo quando fizemos a primeira concentração e senti muita dificuldade em saber para onde é que poderia ir ou a quem é que me poderia juntar para ser ativista. Apesar de ter conhecido a REDE, que foi muito importante para mim, não sabia para onde ir. Sentia que os grupos já estavam criados e acabei por fazer por mim, com o apoio de várias pessoas.

 

Tu conseguiste criar um movimento, um grupo onde ter o teu espaço. Achas que essa é uma possibilidade para quem quer começar a participar no ativismo feminista?

Eu acho que o movimento que criámos é um bom movimento para as pessoas começarem. Neste momento somos mais de 1.000 pessoas na página do Facebook e há muita informação. Hoje em dia já o considero uma base de dados feminista onde por exemplo, a REDE, a UMAR, a ILGA partilham as suas atividades. Imensas associações partilham.

O melhor deste movimento, do Por todas nós, é a diversidade. Há pessoas de partidos políticos, há pessoas que não são de partidos políticos e conseguem conhecer-se umas às outras e perceber o seu caminho. Mas, independentemente do grupo ao qual pertencemos, nós temos que estar unidas e unidos. E isso provou-se quando fizemos a primeira concentração. Ainda não era o Por todas nós, era o Por todas elas. De repente temos a Praça da Figueira cheia, nunca pensei. E várias pessoas a contactar e a quererem participar.

 

Patricia Vassallo Silva

 

E o que pretende o Por todas nós no futuro? Vai ser um movimento autónomo ou irá ser integrado num outro já existente?

O Por todas nós tem a dificuldade de não ser uma associação. Na realidade somos uma marca, existe um logotipo, está registado. Por isso é que nós preferimos dizer que somos um movimento, em vez de dizer que somos um coletivo. Estamos a ganhar estrutura.

Há uns tempos acreditava que isto é para toda a gente, mas não é. Infelizmente há pessoas que não têm os mesmos princípios que nós e se aproximam do grupo. Portanto acho que estamos numa fase em que o ideal é juntarmo-nos a outras forças. Estamos, por exemplo, na Rede 8 de Março, juntamente com outros coletivos. Não é que o Por todas nós não tenha uma iniciativa própria, mas para já estamos a tentar seguir “a união faz a força”. Mas não deixamos de ser o Por todas nós. Acho muito importante, quando estamos na rua, mostrar que há vários coletivos, grupos e pessoas.  O Por todas nós também é um espaço para quem não quiser pertenecer a nenhum coletivo. Há pessoas que não querem estar associadas a um grupo.

Na realidade nós só existimos desde junho, mas crescemos muito rápido. E espero que continue a crescer, essa é a nossa força. Mas realmente, assim para já, nós não queremos nada para nós ou para mim Patrícia. Queremos é conseguir fazer a nossa luta, juntarmo-nos a outros grupos, a mais pessoas, chamar pessoas. Para mim o mais importante é sensibilizar as pessoas para o feminismo, para a importância do feminismo. E o Por todas nós consegue isso. Eu acho que o Por todas nós é na realidade um movimento de sensibilização feminista e que dá espaço e voz às mulheres e aos homens.

 

Por todas nós é um movimento muito abrangente. A diversidade existente é difícil de gerir?

É muito difícil. Há gente que já saiu do grupo. Eu e as pessoas que estão no núcleo duro do movimento somos a favor da diversidade mas há pessoas que não lidam bem com isso. Eu já falei com pessoas que não se sentiam representadas e disse-lhes para mostrar no grupo como é que nós as poderíamos representar. Eu dou muito o exemplo da minha profissão e que eu acredito que a profissão não tem género e me sinto muito sozinha neste tema. Mas quero sensibilizar as pessoas, e sou a pessoa que mais publica esses artigos e esses vídeos. Eu tenho crescido imenso como pessoa com o grupo e espero que outras pessoas também. Mas a diversidade é difícil de gerir, muito.

 

E as pessoas coolaboram ativamente no grupo ou há muitas desistências?

Há, por isso é que eu tento ver as coisas não ligadas ao grupo em si, mas ao projeto. É dar a liberdade às pessoas de participarem da forma que podem, que querem e que conseguem.

 

Achas que as redes sociais ajudam ao crescimento deste tipo de coletivos e movimentos?

Imenso. O Por todas nós vem de uma rede social, senão nem existia. É super importante. No Por todas nós as associações, os coletivos e mesmo as pessoas individuais vão lá partilhar as coisas e eu fico muito feliz com isso.

 

Achas que se tem que haver um espaço para os homens no feminismo?

Acho que tem que haver um espaço dos homens no feminismo, mas eles têm de perceber melhor o que é que é o espaço dos homens no feminismo. Por exemplo, na Marcha contra a Violência Contra as Mulheres, uma coisa que eu senti foi que a voz deles se ouvia por cima da nossa. E isso não pode ser. É muito importante estarem lá a apoiar-nos, mas o apoio deles não era gritar mais alto, era deixar-nos gritar. Por acaso, no Por todas nós, uma coisa de que eu me orgulho muito é termos homens no grupo e eles respeitarem muito o nosso espaço. Eles próprios já sugeriram entre eles terem reuniões à parte. Para discutirem entre eles o que é que podem fazer e como é que podem fazer. Porque, como o Álvaro Ávila e o Bruno Góis dizem, ainda não estamos numa fase que podemos estar lado a lado. Primeiro ainda temos que dar espaço às mulheres, elas virem e sentirem-se à vontade, criarem a sua luta, as suas raízes e depois aí é que eles entram. Porque senão o que vai acontecer é que eles vêm mas nós vamos a continuar a sentir-nos como nos sentimos, abafadas por eles. Vão haver mulheres que não vêm porque não se vão sentir à vontade, vão se sentir oprimidas só pela presença de um homem. Eu acho que o apoio dos homens é super importante. Agora, a maior parte deles precisa saber onde é o seu lugar. É só isso. E não é menos ou mais que o nosso lugar, é o lugar deles.

 

O que dirias a uma jovem mulher que está a descobrir o feminismo e o ativismo feminista?

Há mulheres que dizem que são feministas mas não ativistas, a sentirem-se menos que outras. Elas são ativistas da sua forma, ao seu ritmo. O que eu digo sempre a estas mulheres é: “ tu vens ao nosso lado quando tu quiseres; o teu feminismo é no teu dia a dia e tu, dia a dia, vais descobrir o que é que tu queres fazer mais”.

O feminismo é um vírus bom, porque é um virus que não sai e que cresce. Só temos de dizer: “segue o teu caminho, continua a defender o que tu achas” e elas vão-se tornar ativistas porque já vão dar mais atenção às coisas. Aconteceu comigo. Temos de abrir os olhos a outras mulheres mas sem exigências, porque somos todas diferentes. É essa a mensagem que eu tento passar: “Há lugar para todas. Também na eletricidade”.

 

Entrevista: Marta López | Fotos: Rebeka Dávid

 

Raquel Rodrigues e Lúcia Furtado: “Muitas vezes confundem-se privilégios com direitos e essa desconstrução é importante”

FemafroRaquel e Lúcia são duas das fundadoras da FEMAFRO, associação de mulheres negras, africanas e afrodescendentes em Portugal. Esta associação, que começou através de uma página de Facebook, foi responsável pelo primeiro encontro de feministas negras em Portugal e está a querer quebrar as barreiras que ainda se notam quando se fala de raça, classe e nacionalidade.

 

 

Gostava que me fizessem uma pequena introdução sobre quem são, sobre a vossa trajetória.

Raquel – Nós somos a FEMAFRO, Associação de Mulheres Negras, Africanas e Afrodescentes em Portugal, e estamos legalmente constituídas desde Julho de 2016. Começámos como uma plataforma no Facebook, por termos tão pouco espaço para falar sobre as nossas narrativas: a questão da classe, do género, da raça, da interseccionalidade… Começámos a ver um interesse contínuo das pessoas, e algumas começaram inclusive a enviar textos e outras notícias que faziam parte do nosso universo. Achámos que, como a participação estava a ser tão entusiástica e tão grande, estava na hora de fazer o primeiro encontro oficial de feministas negras em Portugal, que se realizou no dia 30 de abril de 2016. A partir daí formou-se um grupo e resolvemos então fundar a FEMAFRO, quando vimos que as nossas necessidades e as nossas reivindicações eram prementes e que de facto faltava uma organização que desse resposta à procura de maior participação cívica e ativista das mulheres negras em Portugal. A questão do feminismo negro é ainda uma ideologia feminista muito pouco falada aqui. Numa perspetiva mais global vemos que efetivamente existe pouca representatividade das mulheres negras no movimento feminista em Portugal e então resolvemos, enquanto associação e organização, dar o nosso contributo para isso.

 

Sobre o feminismo interseccional: porque é que o consideram tão importante para essa frente do feminismo e quais seriam as diferenças na resolução dos problemas para pessoas de classes e raças diferentes?

Raquel – Eu costumo dizer que muita gente identifica o início do feminismo negro a partir dos anos 70, mas não, é algo muito anterior: estamos a falar de finais do século XIX, de figuras como a Sojourney Truth que fez um discurso bastante emocionante marcante, que se chama “Ain’t I a woman?”. Nesse discurso já questionava o tipo de feminismo que naquela altura as mulheres estavam a reivindicar: ela não se sentia integrada, porque esse feminismo não tinha em conta as questões da raça nem da classe social. Naquela altura as mulheres pediam o direito ao voto, ao trabalho, à independência e ao fim da subjugação à cultura patriarcal e machista dominante da época. E ela fala precisamente sobre essa questão, dizendo que enquanto mulher negra já trabalhava há muito tempo e era escrava. A partir daí várias outras mulheres, como a Harriet Tubman, começaram a falar sobre essa questão, a perceber que não se sentiam representadas no feminismo hegemónico que não tem em conta as questões de classe e as questões raciais que durante anos colocaram as mulheres negras e as mulheres afrodescendentes num plano mais frágil. Eu não posso dizer no movimento feminista que sou mulher e depois ir ao movimento negro e dizer que sou negra. Eu sou uma mulher negra. São coisas que estão ligadas a mim, que são indissociáveis.

Quando as mulheres negras vão para o feminismo e falam sobre estas questões muitas vezes vêem-se barradas, principalmente quando tocam na questão da raça, que remete imediatamente para uma questão que não tem a ver com a igualdade de género. Mas tem a ver! Então de que tipo de mulheres é que estamos a falar quando se fala sobre o feminismo, que mulheres é que estão representadas neste feminismo? E nós temos visto que ao longo dos anos o poder e o local da fala é sempre visto de uma forma euro-centrada, não tendo em conta as várias formas de ser mulher. O ser mulher vai muito para além da biologia, e estamos a falar até mesmo do ser mulher enquanto construção social. Nós sabemos que a comunidade africana, devido aos 400 anos de colonialismo e de escravatura a que foi sujeita, foi sempre colocada na base da pirâmide em termos económicos, sociais, culturais, políticos. E as mulheres negras ainda mais porque, para além do racismo e do colonialismo, carregamos também o machismo que também se faz sentir dentro do próprio movimento negro. Porque na frente do movimento negro as mulheres tiveram uma importância muito grande e é preciso perceber porque é que quando nos reportamos à história a invisibilidade das mulheres se torna maior.

 

Femafro

 

Podes explicar um pouco melhor o que é a interseccionalidade?

Raquel – A interseccionalidade é um conceito que foi cunhado academicamente pela Kimberley Crenshaw em 1989 precisamente para que se entenda que as desigualdades não advêm apenas do género e que existem uma série de condicionantes que fazem com que eu adote ou aceite um certo papel social que me foi dado, que me foi imposto pela sociedade em que vivo. E ela fala da importância de trazer este conceito para o feminismo para que mais mulheres se sintam integradas e possam participar.  Dentro do género mulher tem que haver este debate mais aprofundado. Em Portugal, por ser um tema ainda tão recente, causa ainda um certo desconforto falar sobre isso: não se fala abertamente sobre a questão racial em Portugal. E nós temos de perceber como é que conseguimos desconstruir esta ideia e fazermos perceber que quando falamos da questão do racismo não falamos de forma individual, de apontar o dedo e dizer que determinada pessoa é racista. Estamos a falar do racismo em termos ideológicos: é uma ideologia política, social, cultural que discrimina as pessoas muitas vezes com base no seu fenótipo e na sua origem étnico-racial. E como é que esta discriminação muitas vezes impede as pessoas que sofrem destas opressões de aceder a certos espaços sociais, políticos, económicos, culturais… Basta darmos uma vista de olhos à sociedade portuguesa e vermos que de facto os negros estão subrepresentados nestas áreas e estão sobre-representados em áreas como o serviço doméstico, a construção civil, a restauração, a limpeza… Enfim, é vermos como é que estas desigualdades ainda continuam perpetuadas ao longo do tempo, e é preciso discutir esta questão, é preciso efetivamente colocar o dedo na ferida e não ter medo de falar sobre isso.

 

Comentaram que no início fizeram uma página no Facebook para falar sobre feminismo negro e daí várias pessoas mandaram mensagens e começaram a criar um diálogo. Vocês têm algum público alvo definido?

Lúcia – É plural. Na FEMAFRO vamos talvez dos 18 aos 70, pode-se dizer. Acho que também é importante perceber que toda esta narrativa não é dirigida apenas aos africanos e aos afrodescendentes, é também dirigida ao público não negro. Porque o público não negro tem também de começar a falar sobre este tema, a tomar consciência do lugar que tem nesta sociedade e o que pode fazer para nos auxiliar a atingir essa visibilidade que tanto procuramos. Nós queremos também envolver os homens, os adolescentes, as crianças, queremos as mulheres, queremos envolver todos nesta luta, e toda a gente tem de começar a falar desta problemática se queremos que haja evoluçãom que se comecem a desconstruir conceitos.

Raquel – E eu acredito piamente que o racismo não é uma problemática dos negros. O racismo é uma problemática branca, e é importante também que as pessoas não negras tomem a consciência dos privilégios que a branquitude lhes traz e estarem dispostos a desconstruir estes privilégios. Muitas vezes confundem-se privilégios com direitos, e é importante essa desconstrução. Porque nós estamos a falar de séculos e séculos de história, e apesar de dizermos que muita coisa mudou nós não nos podemos acomodar e achar que está tudo bem, que não devemos falar sobre determinados assuntos porque é tabu, que os não negros não estão preparados para falar sobre o racismo. Eu acredito piamente que os não negros estão preparados para falar sobre esta questão e que devem ser chamados a falar, porque isto tabmém lhes diz respeito. Portanto não pode ser esta questão dividida e colocada sobre as costas da população negra, da comunidade africana porque só nós não conseguiremos travar esta luta, precisamos da ajuda, da compreensão, da empatia do outro lado.

Muitas vezes nós dizemos que quando algo não nos diz respeito, quando algo não nos afeta mantemo-nos em silêncio, mas é muito importante vermos o quão o silêncio se torna cúmplice e uma situação que se mantém e se perpetua. E é isto que pretendemos trazer à sociedade portuguesa e às instituições governamentais e não-governamentais: este sentimento de que este é um assunto que diz respeito a toda a gente. E dentro do feminismo nós mulheres negras sempre lutámos e sempre tivemos empatia, e sempre fomos à frente das marchas e sempre fomos à frente das organizações e das atividades juntamente com as mulheres não negras. Sempre lutámos por esta questão do género, mas também temos de começar a pedir responsabilização às mulheres não negras sobre esta questão do racismo que faz parte também do feminismo e que faz parte das pautas reivindicatórias das mulheres negras. Não podemos ser só nós a caminhar pelos outros, nós também temos de sentir esta empatia por parte do feminismo hegemónico para que abram portas e nos deixem ter um lugar de fala.

 

Vocês diriam que o que mais procuram fazer com a organização é essa questão da consciencialização sobre os problemas que vos afetam afetam direta e indiretamente?

Raquel – Claro. E há um coisa que gostava de frisar na entrevista que é a questão do reconhecimento da nossa identidade enquanto mulheres portuguesas.

Lúcia  – Em Portugal ainda não existe o português negro. Ainda há pouco tempo estava numa reunião e perguntei quando é que iam abrir espaço para mim – uma portuguesa negra que nasceu em Portugal, que estudou cá, que paga aqui os seus impostos e trabalha – e remetem-me para o ACM (Alto Comissariado das Migrações). Em qualquer lado onde vamos a primeira pergunta é de onde é que somos. Se dissermos que somos de Portugal, que nascemos ali em Lisboa, dizem “Não não, mas de onde é que é?”. Ficamos ali meia hora até termos de dizer que os nosso pais são de Cabo Verde, de Angola ou de onde for. E também há a primeira coisa que sai da boca de qualquer pessoa quando começam a ofender, “Vai para a tua terra”. E nós temos essa necessidade de ser vistos como portugueses, e agora já temos segundas, terceiras gerações que cada vez têm menos afinidade com o país de origem da família e que mesmo assim não são vistos como portugueses. Ainda em outubro tivemos uma atividade numa escola, onde perguntámos aos alunos se se consideravam portugueses, e a grande maioria disse que não. Os professores ficaram muito espantados mas isto é uma realidade, é um problema muito grave.

Raquel – Quando falam de alguém que não tem identidade nós perguntamos como é que esta pessoa pode exercer a sua cidadania. Porque quando nos dizem que são todos portugueses a partir do momento em que têm o cartão de cidadão, temos de dizer que o cartão de cidadão é um objeto físico que uma pessoa adquire e que utiliza para determinadas situações, mas não é esse o objeto que elimina as discriminações. Esta situação perpetua-se quando falamos dos imigrantes de primeira geração. Eles foram imigrantes, mas os seus filhos, os seus netos, não podem continuar a carregar o estigma da imigração. Eles são portugueses, têm direito, e a própria lei da nacionalidade não admite que filhos de imigrantes que tenham nascido em território nacional sejam considerados portugueses. A lei não assume isto porque vai pela questão de jus sanguinis: filho de imigrante que não tenha nacionalidade portuguesa e que nasça em território nacional adquire automaticamente a nacionalidade dos pais. Isso é uma das grandes batalhas que queremos travar. Queremos afirmar que quem nasce no território português tem direito de ser português, independentemente do país de origem dos seus pais. E quando muitas vezes são barrados pelas próprias instituições, é claro que se cria uma crise identitária. E essa crise leva ao isolamento, à exclusão, à perpetuação da situação da comunidade negra e afrodescendente em Portugal, que é basicamente uma de exclusão da vida pública e da vida participativa da sociedade portuguesa. E logo, se estou excluído e não posso participar, obviamente que não tenho voz, não é? E esta questão da voz é extremamente importante.

 

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Será que vos podia desafiar a falar um pouco sobre a questão da voz?

Raquel – Falar na expressão “Dar voz” causa-me alguma fricção: nós não necessitamos que nos dêem voz. Nós temos voz, nós necessitamos é que nos oiçam e que abram espaço para que possamos falar. Há um conceito extremamente importante do feminismo negro que é o local de fala. Ou seja, a partir das minhas experiências, das minhas vivências enquanto mulher negra poder falar sobre esta minha situação e poder ser ouvida enquanto mulher negra. E o local de fala é extremamente importante porque delimita a questão de eu poder falar e não ter outras pessoas a falar por mim.

 

Às vezes nos movimentos feministas do Brasil, por exemplo, havia muito a questão de meninas que chegavam aos movimentos sabendo que estavam insatisfeitas com coisas mas não sabendo colocar em palavras. Com as pessoas que chegam, vocês sentem que elas já têm as reivindicações muito claras dentro delas ou que vão construindo em grupos?

Raquel – Eu acho que isto é um processo, e todas nós passamos por ele. Pode ser mais lento, mais longo, pode ser mais suave, mais agressivo, mas todas nós passamos por este processo, de nos tornarmos mulheres negras. Começamos pela questão da não muita exposição ao sol, da questão do cabelo, posteriormente da questão das relações sentimentais, de não nos vermos representadas socialmente. São questões que podem ser muito simples, e que estão ligadas à representatividade e à representação da mulher negra. E começa esse questionamento “Então onde é que eu estou, onde é que eu me vejo?”. E começamos a perceber que há certas coisas que não estão certas. Se eu vejo um determinado grupo étnico representado na televisão mas não vejo o meu, eu começo-me a questionar sobre o meu papel social. Eu importo? Se esta representação não existe há-de ser por algum motivo. Aí é que começa o questionamento, aí é que nós começamos também a ir pela história e a ver o que é que se passou para que isto esteja a acontecer. Começamos então, muitas vezes fora do meio académico e do mainstream, à procura de informações que não nos foram passadas durante a nossa infância: quando falamos do colonialismo, por exemplo, é quase como se o continente africano não existisse antes dos Descobrimentos. Numa entrevista da Grada Kilomba ela fala sobre essa questão e vai ainda mais longe, no sentido não só do apagamento da história mas do apagamento da nossa própria identidade.

Muitos de nós, dos nossos antepassados, tínhamos sobrenomes tipicamente africanos, e agora somos Silvas, Mendes, Semedos, Azevedos. Então porque é que nos colocaram estes nomes? Tem a ver com a questão da evangelização: muitas vezes os missionários iam evangelizar as populações que chamavam de populações indígenas, e isso terminava nos batizados. Essas pessoas eram batizadas com sobrenomes ocidentais e começavam a sua nova vida civilizada, cristianizada… É quase como se houvesse um antes e um depois na história do continente africano. É importante reconhecermos isso, e a partir do momento em que começamos a deter e a trabalhar estas informações – principalmente em conjunto – vamos desconstruindo esta imagem e estes pensamentos até nos sentirmos suficientemente fortes para irmos lá fora e falar sobre estas questões. Mas isto é um processo que, como eu disse, varia de pessoa para pessoa, de mulher para mulher, e que às vezes pode até nunca chegar a acontecer. Mas quando acontece já não há como recuar, já não há como calar a voz interna que grita “Por favor oiçam, eu estou aqui”.

 

Porque é que fazemos distinções entre feminismos e direitos humanos?

Lúcia – Eu acho que os direitos humanos se baseiam no princípio da universalidade, e o feminismo é direccionado mais a um “setor” específico, acho que deve ser por isso que se faz um pouco a distinção. Mas, no entanto, não podemos esquecer que nós como mulheres somos seres humanos, e é um direito que nos assiste. Mas são questões complexas.

Raquel – Foi engraçado estarem a fazer essa pergunta porque estive a fazer essa reflexão recentemente, sobre os direitos humanos e o feminismo. Durante muito tempo eu achei que não deveríamos dissociar uma coisa da outra, mas hoje em dia já não acho isso, acho importante dissociar, acho importante haver essa separação no sentido em que enquanto as mulheres não forem consideradas como humanas em muitas sociedades nós necessitamos do feminismo, necessitamos de ouvir, de falar, necessitamos que oiçam as nossas reivindicações. Eu acho muita piada quando as pessoas dizem que não são feministas, são humanistas. Sou humanista, advogo os direitos iguais para todos os seres humanos. E a pergunta que me apetece fazer é: as mulheres são vistas em todas as socidades como seres humanos, as suas reivindicações são tidas em conta? De há uns dois anos para cá temos assistido a um aumento extremo de violência contra as mulheres. E não falo só de violência física, falo também de violência psicológica. E é importante que haja o feminismo para que efetivamente se retratem estas questões de uma forma direta. Porque se nós colocarmos tudo no mesmo barco, acreditem que vamos afundar. Porque a questão do feminismo se vai desvanecer dentro dos direitos humanos, porque sabemos que quando se fala de direitos humanos falamos dos direitos universais do homem. E não nos enganem e não nos digam que o H maiúsculo representa todos os seres humanos. Nós sabemos muito bem quem é que detém o poder, a legitimadade, o poder de fala. E enquanto homem continuar a deter esse poder de fala ele vai sempre asfixiar a nossa voz, e portanto é necessário criarmos grupos de reivindicações nossos. É importante abarcar o racismo dentro da questão do feminismo também, isso é uma questão primordial. Mas também deve existir a separação entre o feminismo negro e o feminismo hegemónico, porque dentro do feminismo hegemónico ainda não vemos as nossas reivindicações tidas em conta, e se nos aglutinarmos vamos acabar outra vez asfixiadas. Então é importante nós também termos um espaço nosso de reflexão para que possamos efetivamente pautar as nossas reivindicações de forma a que elas sejam tidas em conta dentro do feminismo, tal como o feminismo hegemónico deve pautar as suas reivindicações para que elas sejam tidas em conta dentro dos direitos humanos. E esta é a minha reflexão.

 

Portanto é crucial o reconhecimento da identidade enquanto portugueses e do apagamento da história pré-colonização.

Raquel – Eu acho que é preciso que a sociedade portuguesa se abra para esta questão, que é reconhecer que existem portugueses negros. Penso que é importante que as pessoas tenham esse conhecimento histórico, que nós também queremos trazer para o debate, mas também é importante que as pessoas reconheçam essa identidade, porque enquanto isto não for reconhecido nós não vamos conseguir ir a lado nenhum. E isso nós vemos em variadas frentes, nomeadamente na questão do não reconhecimento das problemáticas que afetam as mulheres negras portuguesas: existe quase uma vontade patológica de nos fazer acreditar que a discriminação racial já não existe. No mundo ideal seria assim, mas nós sabemos que não é. Tem de haver um corte, uma ruptura epistemológica, comportamental por parte de indivíduos e instituições, uma vontade real de diálogo. Eu já ouvi dizer que nós devemos falar menos e ouvir mais. Eu acho precisamente o contrário: passámos a nossa vida a ouvir e que chegou a hora de falarmos. Muitas vezes conotam as feministas negras a discursos muito agressivos. Não considero que seja agressivo: acho que agressão é vermos constantemente negados os nossos direitos cívicos. Eu acho que esta é a verdadeira agressão. Nós combatemos o patriarcado e o machismo, mas muitas vezes vemos que se utilizam de certos privilégios para continuar a oprimir pessoas do mesmo género. Por isso é que surge novamente a pergunta: que tipo de mulheres é que estamos aqui a representar? Não falo apenas de feministas negras, agora estou a falar no movimento mais geral. Esqueci-me referir que referentemente à questão da orientação sexual, das mulheres lésbicas, das mulheres trans, de mulheres que não querem definir o seu género… Vemos que muitas vezes estas questões são ignoradas ou então postas em segundo plano, e não!, tal como a questão das mulheres negras são questões primordiais no feminismo e devem estar lado a lado. É esta a nossa luta a travar, e é exatamente este o nosso objetivo, trazer estas questões e outras que ainda não foram abordadas a debate.

 

Entrevista e fotos: Rebeka Dávid