Alexandra desde muito cedo entendeu que se tivesse nascido rapaz as coisas seriam diferentes. Escolhe a rua para iniciarmos esta conversa, porque sente que este espaço de todos/as ainda é vedado às mulheres, pelas prescrições comportamentais a que este espaço as expõem. É também nas ruas, junto das pessoas e ouvindo as suas histórias, que foi encontrar a voz que quer dar ao seu trabalho enquanto investigadora.
O que te construiu na mulher e feminista que és?
Tenho de recuar à infância e aí a família é central. Para falar da minha construção enquanto pessoa e, neste caso, enquanto mulher tenho de começar por aí. Venho de uma família de classe média, com pais que se preocuparam em dar o melhor às filhas e ensinar-nos valores. Nasci numa família onde há carinho, amor e respeito. Depois no meu contacto com a escola, quando chego à adolescência, começo a ter consciência de algumas injustiças, nomeadamente discriminações de género. É aí que a minha consciência feminista começa a ganhar mais consistência. Eu acho que já nasci com ela mas é na adolescência que começo a ganhar mais consciência do significado de ser mulher e das injustiças, nomeadamente das diferenças de género e das desigualdades; porque é quando nós nos começamos a afastar do espaço de conforto, que é o espaço familiar, e começamos a tomar mais contacto com um mundo que nos desafia e que nos chama a atenção para algumas coisas. A questão da rua, por exemplo, enquanto espaço que é vedado às mulheres, foi algo que eu senti logo desde miúda. A certa altura, na adolescência, quando começamos a querer alargar o nosso espaço e a ganhar a nossa autonomia, começo a perceber que a rua era um espaço muito mais masculino do que feminino. Começo a ter consciência de todas as normas de género que nos são impostas e dos comportamentos apresentados como adequados ou não para uma mulher. Quando nós deixamos de ser apêndices dos nossos pais e começamos a querer conquistar o nosso espaço, entendemos que no mundo exterior à família também há regras, e que essas regras nos limitam e nos restringem os comportamentos. As questões relacionadas com a diferença de comportamento entre rapazes e raparigas foi algo que não me fez sentido. O que era apresentado como a forma de uma menina se comportar parecia-me muito castrador. E eu nasci em 1969, portanto, tive a minha adolescência nos anos 80, uma altura em que a sociedade era um bocadinho diferente da sociedade atual e que cerceava muito mais os comportamentos. Depois também nasci numa cidade pequena, num meio onde toda a gente se conhece e sentia muito a imposição dos valores morais conservadores. As questões da sexualidade foram muito fortes, a contracepção, o acesso aos meios anticonceptivos, o comportamento sexual feminino… Todas estas questões que nos limitam, embora atualmente com mais alguma liberdade, foram determinantes para que eu me construísse enquanto feminista. Não houve um marco específico, mas toda esta constelação de questões que tem que ver com o género feminino, com a mulher, com a liberdade e com os comportamentos que nos prescrevem como sendo os que devemos ter. E é nas questões da sexualidade que o comportamento feminino é mais controlado, é onde se sente mais. Outro exemplo da questão com a qual me fui confrontando: o facto de uma rapariga que não quisesse ter uma relação com um só rapaz ser imediatamente alvo de reprovação moral e rotulada como mal comportada. A minha indignação também tem a ver com isto: qualquer mulher que tenha um comportamento que não é de acordo com o que é esperado dela sexualmente, facilmente recebe a etiqueta de prostituta. Esta questão do estigma de ‘puta’ é uma espécie de espada de Damocles que está por cima de qualquer mulher. Qualquer mulher que pise o risco, ou que pise um bocadinho ao lado, facilmente fica com esse rótulo. E eu fui tomando consciência dessas coisas e fui-me questionando. Não tinha lido nada sobre feminismo mas já tinha essa consciência de que até nas questões da aparência, da estética, de tudo o que uma mulher deve ser visualmente havia prescrições e regras que me prejudicavam. Depois comecei a ler algumas coisas sobre feminismos e comecei a situar-me. A faculdade foi igualmente importante. Estive bastante envolvida com as questões da legalização do aborto, há mais de 10 anos. Foi uma luta grande.
E como foi essa luta?
Foi uma grande vitória e uma vitória mais do que necessária na altura. Nós tínhamos relatos de casos muito graves de mulheres que morriam até. De mulheres que eram perseguidas judicialmente por causa dos abortos clandestinos. E tínhamos as forças mais conservadoras da sociedade a tentar travar qualquer mudança legislativa, por razões morais. Temos aqui uma vitória dos movimentos feministas e dos movimentos sociais que se preocupam de facto com as mulheres – esses são realmente os movimentos pró-vida, aqueles que se preocupam com a vida das mulheres. E depois de uma grande batalha foi conseguido aquilo que eu acho que é justo. Até porque esta questão só acentuava ainda mais as desigualdades, quer dizer, se eu quisesse fazer um aborto e tivesse dinheiro, eu não ia fazer um aborto em más condições. Eu sabia onde estavam as clínicas e onde eu podia fazê-lo pagando e sem precisar de correr risco de vida. Ou seja, a desigualdade de género interseccionava com a desigualdade económica, o que sempre acontece nestas coisas. E é uma vitória que penso que não é reversível. Se bem que com o último governo PSD/CDS houve um retrocesso com a introdução de taxas moderadoras e com a obrigatoriedade de acompanhamento psicológico prévio à decisão da mulher. Não passa pela cabeça de ninguém. As mulheres sabem decidir por elas e não precisam que as infantilizem.
Neste momento em termos de feminismos onde achas que Portugal está?
Acho que os movimentos feministas continuam necessários. Há ainda a fazer um trabalho muito importante. Se pensarmos, por exemplo, nas questões da violência na intimidade, o que tem sido feito é muito mas ainda há muito por fazer porque as mulheres continuam a morrer vítimas dos seus companheiros conjugais, vítimas das pessoas de quem mais gostam. E isso mostra que ainda é preciso mudar muito na nossa sociedade. Houve alterações legislativas importantes. Há, neste momento, uma série de meios à disposição das mulheres como, por exemplo, as casas abrigo. Mas é necessária uma mudança de mentalidades e isso não se alcança de imediato. Acho que tem que ser feito um trabalho com as pessoas mais novas da sociedade, as crianças, através de formação sobre o que é a desigualdade de género, sobre o respeito pelo outro.
E o que achas que falta para passarmos este impasse?
Não acho que estejamos num impasse. Se as questões legislativas podem parecer as mais fáceis, na verdade às vezes não são fáceis. Até que a violência doméstica fosse crime público, por exemplo, houve que vencer muitas forças de resistência. Acho que devemos estar alertas, atentas e sempre a lutar porque as mulheres continuam a ser vítimas de grande desigualdade, a sofrer, a morrer, a ganhar menos, a ter menos acesso ao emprego, a ter mais entraves no acesso aos cargos de chefia… sabemos tudo isso, então é preciso uma luta constante pela igualdade.
Numa época em que parece falar-se muito de feminismo e de forma muito aberta, por outro lado também temos estas situações. Achas que estamos a ir no caminho certo?
Nós temos mais do que um feminismo e em algumas áreas específicas eu distingo diferenças muito grandes entre os diversos feminismos. Em termos globais, sim, estamos a ir no caminho certo. Quem diz o contrário é quem pretende defender o estado das coisas. Nas redes sociais as pessoas expressam-se abundantemente e, muitas vezes, sem freio e é frequente vermos posições fortemente anti-feministas, como aquele epíteto ‘feminazi’ que surge como uma forma de descredibilizar o trabalho feito pelas mulheres feministas e manter os privilégios masculinos. Quem toma essas posições pega nos feminismos como um todo e na sua parte mais anedótica e exagerada e posiciona-se contra. Há pessoas que dizem que são pela igualdade de direitos entre homens e mulheres mas que não são feministas porque há toda uma imagem criada da feminista como uma mulher radical que quer ser superior aos homens… Quase como se o feminismo fosse uma espécie de machismo ao contrário quando isso, no fundo, é ignorância das pessoas que não sabem o que é o feminismo. Não podemos deixar que o trabalho das feministas e dos feministas seja descredibilizado.
Atualmente como achas que a sociedade encara a sexualidade da mulher?
Continua a prescrever muito. A sexualidade da mulher é muito controlada, embora a do homem também. E quando digo prescrever é dizer exatamente como se deve comportar um homem e como se deve comportar uma mulher. Não estaremos como há 40 ou 50 anos, mas, a sexualidade feminina, ainda continua a ser muito vigiada e a ser rotulada negativamente quando não se enquadra no comportamento sexual que é considerado apropriado para uma mulher. Mesmo nos meus alunos da faculdade que têm 18, 19, 20 anos, ainda vejo muito esses julgamentos diferenciados sobre o que deve ser um comportamento de uma rapariga e de um rapaz. A forma como educamos as nossas crianças contribui para isso, desde pequeninos lhes são incutidas diferenças de género. Mas o comportamento sexual masculino também é submetido a controlo, o comportamento sexual masculino também é pensado de uma determinada forma, não há, no que respeita aos homens, espaço para a feminilidade ou para a passividade… Quando acontece são imediatamente rotulados de gays e rejeitados… A sexualidade continua a ser uma dimensão da nossa vida que é moralmente muito reprimida e muito balizada. Temos o exemplo da transgeneridade, em que se tem feito um bom caminho, mas, depois, no dia-a-dia, as pessoas são maltratadas na rua, são perseguidas, são vítimas de bullying homofóbico… Continua a haver miúdos que se suicidam porque não aguentam a pressão na escola. A sexualidade ainda é, assim, um grande reduto das forças mais conservadoras.
Enquanto mulher o que achas que vem a seguir para os/as jovens? Qual seria o caminho que te parece haver a fazer?
Acho que os jovens, considerados ainda em desenvolvimento, devem ser consciencializados paras as diferenças de género, para as discriminações e para necessidade de lutar contra elas. Isto é imprescindível. Para lutar contra as desigualdades é preciso ter consciência delas, por isso é necessário dar conhecimento das discriminações de género, do sexismo e até da misoginia. É preciso mostrar exemplos específicos: as desigualdades salariais, a violência no namoro… É preciso que tenham consciência dos micromachismos. Há discriminações que as pessoas não vêem como tal. Nós continuamos a ter órgãos de comunicação social neste país a terem painéis exclusivamente de homens a comentar assuntos que dizem respeito a homens e a mulheres. É preciso tomar consciência destes casos, nestas áreas todas, para querer lutar por uma sociedade mais justa e livre.
Quais os sonhos ou lutas que ainda estás à espera de agarrar?
O sonho de uma sociedade mais justa e livre implica uma luta à qual não podemos renunciar. Por muitos avanços que tenham ocorrido, a luta das mulheres e homens feministas pela justiça e pela igualdade é algo do qual não podemos desistir. Eu espero que haja lutas que vão deixar de fazer sentido porque as desigualdades a que respeitam foram resolvidas. Por exemplo, eu espero que, um dia destes, já não haja necessidade de, em termos da linguagem, ter que continuar a explicar que o masculino é um falso neutro. Hoje já não precisamos de lutar pelo direito de voto das mulheres, pelo menos em Portugal, mas há muitas outras desigualdades e discriminações que é preciso combater. As opressões são muitas e, embora atualmente a igualdade entre mulheres e homens esteja consagrada na lei, é preciso estar atenta aos grupos de mulheres que são mais oprimidos, às mulheres que continuam tomadas pela submissão e subalternidade. Serve isto para dizer que a luta do feminismo é uma luta da qual ainda não podemos abrir mão por muitos avanços que tenham ocorrido. Esta é uma luta que agarrei e que vai continuar a ser minha.