Ana Rita Chaves e G Fema: “Está na hora de eu despertar, não ficar cantando futilidades. Tenho que me valorizar como mulher e buscar os meus direitos”

Hip Hop de Batom

Hip Hop de BatomAna Rita Chaves foi a criadora do Projeto Hip Hop de Batom, que pretende denunciar a violência contra as mulheres e contribuir para o seu empoderamento através do movimento hip hop. G Fema é uma jovem rapper que participou na primeira edição do projeto e que continua a transmitir os valores de igualdade e empoderamento das jovens.

 

Como é que surgiu o projeto Hip Hop de Batom?

Ana: Veio do empoderamento mesmo da mulher, principalmente dentro do movimento hip hop em Portugal. Eu venho do Brasil onde as mulheres já estão um pouco mais à frente nessa cultura: tem muitas “grafitteiras, djs e rappers”. E quando cheguei, em 2008, o movimento era muito pequeno em termos de mulheres e não tinham essa valorização, com todas elas reivindicando os seus direitos, falando das suas problemáticas. E eu achei que estava na hora. A ideia era começar um projeto com rapazes , mas em virtude de eu ter percibido essa situação, fizemos um projeto com mulheres. E fazendo a seleção das mulheres fui vendo cada dia mais as problemáticas que envolviam essas meninas: violência no namoro, violência doméstica. Existia uma urgência para dar a conhecer estas situações. Fomos pesquisando sobre a realidade de Portugal e aí vim a saber da mutilação genital feminina, que era muito mais grave do que eu poderia imaginar. Então fui encomendando às meninas que fizessem uma letra para falar um pouquinho sobre a sua história de vida ou de pessoas que conviviam com elas. E depois fizemos uma letra em conjunto, na qual cada uma falou um pouquinho da situação e do que conhecia. A G Fema cantou em criolo, a Gata em francês, a Madalena em português, a Gabriela em português do Brasil. O hip hop tem 5 elementos: rap, dj, grafitti, dança e conhecimento e sabedoria. Porque para fazer uma letra, você precisa de ter conhecimento. Estava na hora da mulher mandar as suas mensagens sobre o machismo, dentro do movimento mas também fora, no dia a dia dela e da sua comunidade. Nós tentamos capacita-las para a formação, como líderes dentro e fora da comunidade. Incentivamos algumas a voltar a estudar e a gente resolveu manter o projeto, mesmo quando o apoio acabou. Já temos 3 e vamos fazer outra versão, agora dentro das prisões: “Tomando rumo de batom”.

 

Os objetivos deste novo Batom são os mesmos?

Ana: Sim, denunciar a violência contra as mulheres. Todos os tipos de violência. Também a parte emocional, para elas ganharem força. Nós no geral, as mulheres, somos um pouco frágeis porque fomos criadas num mundo muito machista. Todas nós, até na minha geração. Eu sempre resisti a isso, mas as meninas que estão comigo, elas não são assim. Por determinadas carências que envolvem a situação da mulher, da mulher da comunidade, ela se elude ainda muito e às vezes se envolve. Principalmente vejo muitas a envolverem-se com presos, mas não é que não tenha presos que querem mudar de vida mesmo. Eu conheço muitos que já estão nesse processo. Mas muitos que não. E as mulheres acabam envolvendo-se pela carência e muitos saem e nunca mais querem saber delas. E também tem o lado da mulher na prisão, que está presa por causa dos homens. Porque ela se deixou levar pelo sentimento e se envolveu ao ponto de prestar determinados favores. Isso é uma coisa que eu vou querer trabalhar no Hip Hop de Batom 3, para poder ajudar as meninas a refletirem sobre a vida delas mas sem preconceito.

 

Vocês trabalham nas prissões mas mais especificamente com mulheres pressas?

Ana: Sim, trabalhamos na prisão de Tires. Uma das meninas do projeto saiu recentemente e ella está com a gente, firme. No início ella estava com muito receio mas diu uma palestra que até a juíza bateu palmas, foi fantástica. As meninas saem e permanecem com a gente para poder ser exemplo para outras meninas.

 

Hip Hop de Batom

 

O que tem de importante a cultura do hip hop para as mulheres?

Ana: Eu acho que é tudo. O protesto social. Através, principalmente do rap, poder estar mandando a mensagem delas, reivindicando, falando, contando a história de vida delas ou a história de alguém que elas conhecem. Por exemplo, a Magdalena contou a história dela mas também, numa outra música, contou a história de uma amiga que apanhou SIDA. Esta questão da SIDA também é muito importante e é um alerta que eu quero passar no Hip Hop de Batom 3, que não foi passada na altura porque ainda não conhecia a realidade de Portugal. Para colocar a temática, a gente tem que estudar mesmo a temática. A mutilação por exemplo, embora não seja uma coisa praticada no Brasil, aqui em Portugal já era, havia locais onde se praticava. É uma prática que muitos países, principalmente os PALOP’s, trazem para cá. Uma vez foi a um seminário sobre a mutilação genital. Até um dos oradores, oriundo de um pais onde a mutilação é praticada, falou sobre a situação dessas mulheres e colocou as mulheres em baixo, como se fossem sujas. Até nesta situação, não tens uma mulher ali que possa tomar voz e falar sobre a situação.

 

Vocês contam com o apoio de homens da cultura Hip Hop em Portugal?

Ana: Na altura do projeto, tivemos alguns MC’s que participaram connosco, como o Pina G. Tivemos dois rapazes que participaram e outros que estiveram ali com a gente, fazendo beats.

 

Quais são os maiores problemas que as mulheres de um bairro social passam e como foi para ti entrar no Batom?

G Fema: Discriminação. Para mim foi muito difícil, havia alturas em que não tinha muita credibilidade. Não tive muito apoio, e quando o tive, talvez eles quisessem outras coisas. Mas a minha família sempre me apoiou. Depois eu tive mais ajuda em termos profissionais, no estúdio e na fase de construção de letras, em beats.

 

Você trabalhava num projeto similar no Brasil, voltado para o Hip Hop. Quais são as principais diferenças entre a comunidade brasileira e a portuguesa?

Ana: Sim, como profissional no Brasil eu era produtora de rádio e televisão. E também trabalhava com a comunidade no Rio de Janeiro e em São Paulo. Eu acho que as pessoas do Brasil estão mais sedentas. Quando elas pegam numa coisa, elas agarram aquilo com unhas e dentes. Elas querem mesmo fazer, se envolvem muito. Aqui, até eles ganharem a confiança, passam mil coias na cabeça deles. Até você ganahar a confiança para trabalhar no projeto com eles, mesmo à serio, e que eles se envolvam…Eles pensam tudo.

 

Hip Hop de Batom

 

Quais são as razões pelas quais não há tanto envolvimento das pessoas em Portugal? É preciso mais ativismo na sociedade portuguesa?

Ana: É preciso uma linguagem mais própria. A gente têm o projeto na prisão e nos perguntam porque é que esse projeto dá tão certo e porque as famílias dos reclusos estão connosco. Porque nós conquistamos a confiança dos reclusos com um projeto na linguagem deles, onde eles se identificam e confiam na nossa experiência e no nosso carinho. Nós nos envolvemos com eles num projeto voluntário onde a gente não ganha dinheiro. O próprio Batom teve um financiamento de um ano, mas a gente continuou com o projeto três anos. Fomos das poucas associações que ganhou um financiamento pequeño e conseguiu manter o projeto mesmo depois de acabar. E o mesmo acontece na prissão. Últimamente estou triste porque agora estou sem motorista e o projeto está parado até eu conseguir uma outra pessoa para dirigir até lá. Isso deixa-me muito triste porque eu tenho uma responsabilidade com aqueles jovens. Mas como não consigo falar com eles, então reúno a família para a família mante-lhes motivados.

E também há muito preconceito. Eu já passei por isso quando cheguei com o projeto. Eu sou do movimento Universal Zulu Nation, que foi o criador do movimento Hip Hop no mundo, e quando falei que ia trazer o movimento para Portugal, muita gente discriminou porque eu era uma mulher, estrangeira e mais velha, dentro do movimento Hip Hop. Eu também senti na pele esse machismo.

 

As meninas que participam do projeto, elas estão conscientes dos problemas que elas passam ou é mais uma coisa que vocês vão construindo?

Ana: As duas coisas. Tem umas que têm uma certa consciência, mas acaba-se despertando mais. E tem outras que não têm. E tem muitas que vivem o problema, mas não sentiram ainda na pele aquela coisa de “está na hora de eu despertar, eu não posso ficar cantando futilidades aqui. Eu não posso fazer isso, tenho que me valorizar como mulher e buscar os meus direitos. Tenho que mostrar que eu estou aqui e tenho os mesmos direitos que ele”. Tem muitas que têm o protagonismo dentro da sua comunidade mas ainda não utilizaram o protagonismo para se superar, para defender os seus próprios direitos e os das suas amigas, da sua mãe, do seu pai, da sua mãe perante o seu pai. Passa por aquela situação de violência dentro de casa, mas ainda não tomou a atitude de se levantar para que outras mulheres que passam por essa situação se possam também unir nessa luta. Elas passam na delas, dói mas dói com elas próprias. No Brasil, quando a mulher pega isso, principalmente as rappers no Brasil, todas elas vão à luta para ganhar a sua comunidade, para batalhar pelos seus direitos, pelas coisas que estão erradas.

 

Hip Hop de Batom

 

As problemáticas que as jovens de bairros sociais têm continuam a ser as mesmas ou avançou-se um bocadinho?

Ana: Muito pouco. Tinha que ter agora multiplicadoras em vários pontos, para poder trabalhar aquelas pessoas ali na comunidade com as meninas novas. Por exemplo a G Fema, a experiência que ela passou com o Batom, ela poderia fazer disso um trabalho para estar ali na comunidade, trabalhando com essas meninas. Se a gente tivesse agora un Hip Hop de Batom que pudesse pegar na G Fema e outras mulheres de outros bairros, e trabalhar com as meninas numa capacitação, poderiamos ter o projeto em vários locais.

 

O que signifcou o projeto para ti G Fema?

G Fema: Significou muito, porque sabia que com a minha experiência de vida, tudo o que eu já passei, poderia aconselhar outras raparigas e fazer elas verem o que é o certo e o errado. E apoia-las em tudo o que fosse, como é a violência doméstica, a discriminação no trabalho…essas coisas. É muito importante. Eu gostei de fazer parte, mas algumas têm medo, têm receio de ser discriminadas. Pensam que aquilo é só para os homens.

 

Qual é a mensagem que queres transmitir quando escreves uma letra?

G Fema: Que as mulheres sejam independentes, que não tenham receio de se mostrar perante a sociedade. Se elas querem cantar,eu apoio. Eu estou aqui para esclarecer qualquer dúvida que elas tenham. E para nunca desistirem, serem fortes, sempre fortes.

 

 

Entrevista: Marta López | Fotos: Rebeka Dávid

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