Capicua: “Encaro o rap como uma militância e como uma forma de intervenção social”

CapicuaAna Matos, mais conhecida por Capicua é portuense e encontrou no rap a sua forma de expressão. Um espírito crítico solto desde criança, abandona a sua vertente de investigação enquanto socióloga  para dar lugar ao seu sonho de ser rapper “ nesta terra que ainda não tinha uma MC de jeito”.

 

Gostava que nos partilhasses um bocadinho da tua infância… Como é que a Ana chega até aqui?

Sempre fui uma criança com espírito critico bastante apurado e inquieto. Estava sempre a observar o que me rodeava, a ouvir a conversa dos adultos, a questionar as respostas deles. E desde cedo descobri que gostava muito de escrever. E acho que também porque os meus pais ouviam muito aquelas músicas de Abril do Sérgio Godinho, do José Mario Branco, Fausto… Acabei por encontrar na música também essa ideia de que a palavra vem sempre associada, pelo menos para mim, a um veículo de discurso como ferramenta para a mudança do mundo e  das mentalidades. Mais tarde, na adolescência, quando encontrei o hip hop, acabou por fazer sentido por essas mesmas razões, porque o rap implicava o domínio das palavras, de que eu tanto gostava, porque é uma música onde a mensagem é o mais importante. Primeiro como ouvinte de rap e depois como aprendiz de rapper acabei por fazer das palavras o meu veículo de expressão e uma forma de intervir socialmente. Além dessa tribo eu também fiz  imensa política e na faculdade participei em alguns órgãos estudantis. E portanto na minha adolescência, além do hip hop,  uma coisa que foi muito marcante foi esse percurso associativo  e também político na esquerda, e na forma como fui tendo contacto com o movimento anti-racista, com o movimento feminista, com o movimento ecologista e com essas temáticas todas da esquerda. Fui para sociologia e acrescentei ainda as ciências sociais a esse espírito critico. Quando acabei o doutoramento decidi tirar uma ano para terminar o meu primeiro disco e dedicar-me à música a 100%. O disco foi um êxito e através do rap e da minha presença pública pude abordar, desconstruir e rebater questões coletivamente de uma forma muito mais direta e sem intermediários. Depois sou também convidada a dar várias conferências em escolas secundárias, universidades, associações, cadeias… Em muitos locais onde depois se acaba por falar sobre todo um conjunto de temas que vai muito além da música. E eu acho que as pessoas acabam por me convidar precisamente porque a minha música tem essa dimensão social e política .

 

Tens aí uma grande responsabilidade…

Toda a gente tem uma responsabilidade, mas acho que quem tem um microfone acaba por ter uma oportunidade. Eu encaro a minha música com uma visão muito autoral, do mundo e do que eu acho que é importante transmitir. E dentro desse conjunto de temas e de abordagens não só estão amor, a vida, e aquilo que nos rodeia como também está este conjunto de temas sociais e políticos porque fazem parte da minha vida, do que eu observo em redor e parte das minhas preocupações. Portanto não faria sentido excluir essa dimensão que é para mim da minha obra, digamos assim. Depois ao mesmo tempo acho que nos acabamos sempre por posicionar, nem que seja pela omissão. E eu prefiro posicionar-me de uma forma afirmativa do que pelo que eu não disse.

 

E ao nível dos feminismos, como achas que está Portugal?

Neste momento a globalização está de tal forma instalada e os media e as redes sociais fizeram encolher tanto distâncias entre povos que eu acho que estamos a viver um bocadinho o boom do feminismo trendy que se instalou desde 2013/2014, mais ou menos. Agora o feminismo está presente nos discursos das figuras públicas, fala-se de feminismo nas escolas, nas empresas, nos media, de uma forma muito menos preconceituosa do que se calhar no passado. Mas ao mesmo tempo vejo que esse feminismo também se esvaziou de algum radicalismo que eu acho que lhe dava um poder, sobretudo de rotura, que eu acho que era essencial. Portanto, há coisas boas a assinalar e coisas onde, infelizmente, ainda temos um longo caminho pela frente. Mas acho que só o facto de se falar abertamente sobre isso e de se começar a perder aquela ideia de que o feminismo é um grupo de mulheres radicais , agressivas e mal amadas … Só a desconstrução dessa ideia arcaica que descredibilizava a própria luta e que era muito preconceituosa e misógina, já é uma avanço. Agora, temos é de ter cuidado com uma banalização ao ponto de ser só um termo vazio e cliché  quase, que está muito na moda mas já não quer dizer nada. E como eu acredito que ainda há muito a fazer, o feminismo tem de continuar a existir com todo o seu radicalismo. E quando eu falo de radicalismo quero mesmo ir buscar o termo “raiz”, e a sua raiz é ser uma luta e não mais um cliché, mais um chavão.

 

Assumes-te como feminista?

Claro que sim. Para aí desde os meus 14 anos. Mesmo que não fosse por uma questão de luta política, organizada ou coletiva, nem que fosse por uma forma de estar que eu não consigo evitar que é esta forma de ser o mais espontânea possível, o menos condicionada possível pelas espectativas , e o mais orgulhosa possível de ser quem eu sou, de fazer o que eu faço e defendendo o meu trabalho com unhas e dentes – o que são características muito subversivas pelo facto de eu ser uma mulher, e as mulheres não são propriamente estimuladas – nem que fosse pela minha própria forma de estar que tem muito a ver com a minha educação e  com esta minha formação política, eu já seria uma feminista.

 

Capicua

 

E nesse mundo mais underground como disseste, sentiste alguma dificuldade por seres mulher?

Nos primeiros anos senti que era muito difícil encontrar um rapaz, um homem, que conseguisse relacionar-se com uma mulher de igual para igual. Mas depois encontrei um grupo de amigos, rapazes e raparigas,  que faziam parte da cultura hip hop e com quem eu me sentia super integrada e super de igual para igual e sempre me senti confortável, porque realmente encontrei pessoas com essa abertura. Depois eu própria também nunca pedi propriamente licença para para existir e sempre achei que se mostrasse o meu valor, o meu trabalho e tivesse orgulho no meu trabalho, que os meus pares iam acabar por tirar o chapéu. E isso acabou por acontecer. Mas não quer dizer que por eu ter conseguido seja fácil para as outras mulheres. Porque não é fácil, de facto nao é fácil. Nos temos que provar 3 vezes mais que o nosso trabalho tem qualidades, que estamos aqui pelas razões certas, que estamos aqui porque gostamos de rap e não porque gostamos de rappers… Mas também devo dizer que o hip hop não é especialmente misógino comparado com outros estilos de música, apesar de se achar que sim porque há sempre uma ideia associada de gangster rap e que o hip hop é tudo aquilo.

 

E como foi a aceitação deste teu percurso por parte da tua família, amigos…?

Eu tenho a sorte de os meus pais terem sempre aceite muito bem as minhas decisões e até as minhas excentricidades e por isso sempre fui acarinhada e sempre me apoiaram muito, e isso foi determinante para seguir com a autoestima necessária para fazer isto que eu faço. Porque acho que é um desporto radical manter uma autoestima sendo mulher nesta sociedade. Isto é engraçado porque eu aprendi com o rap uma das lições mais feministas que posso aplicar na minha vida e que aplico no meu trabalho, que é essa ideia de estar no palco orgulhosamente. Os rappers não pedem licença a ninguém, e de facto tem essa fama de serem arrogantes… E isso é bastante libertador e subversivo porque tens uma mulher em cima do palco, não para ser decorativa ou para entreter ninguém, mas para fazer aquilo que lhe apetece fazer em termos artísticos e dizendo aquilo que ela quer dizer, livre de qualquer tipo de condicionamento.

Em 2014 fui participar num festival de rap no Brasil, organizado por um rapper brasileiro, o Vinícius Serra, e uma das pessoas que participou num dos concertos que nos demos foi a Nega Gizza , que é uma rapper  brasileira que teve lá bastante sucesso e que entretanto já está retirada do rap e dos palcos, embora continue ligada à cultura hip hop. E foi muito importante para mim porque eu nunca me tinha apercebido, até estar à conversa com ela, que me fazia falta falar com uma mulher do rap mais velha do que eu. Aqui em Portugal há um pessoal mais velho do que eu. Mas são todos homens e eu percebi ali que aquele encontro foi muito importante porque eu nunca tinha conversado com uma mulher rapper mais velha do que eu. E nunca tinha falado sobre esta coisa de envelhecer sendo rapper, porque os rappers são sempre muito associados à juventude, e os próprios homens vestem-se sempre como quando tinham 15. Mesmo quando têm filhos mantém essa identidade muito intocada. Mas com as mulheres é um bocado diferente a partir do momento em que começam a ter filhos, porque há a amamentação e deixar os filhos em casa e irem para concertos… E acaba por ainda estar muito do nosso lado a questão do cuidado familiar, pelo menos nos primeiros meses. E também essa ideia de como é que se envelhece sendo mulher, a fazer rap, a ter filhos, a comunicar isso para o público… Aqui em Portugal isso ainda não existiu e eu vou ter de inventar isso. Não sei bem como mas com certeza vai ser sendo eu própria e fazendo o que me for mais intuitivo.

 Capicua

 

E tu, sentes-te uma mulher em realização ou realizada?

Em realização claro. Acho muito difícil dizermos que estamos realizadas, que já cumprimos e que já podemos ir embora porque sentimos que está feito. Não. Há realizações minhas, porque eu imponho sempre metas a curto-médio prazo como fazer mais um disco ou mesmo a nível familiar. Sei lá, há muitas coisas que eu sempre quis fazer: ter este trabalho, os filhos, ter uma casa no campo que é uma coisa que eu amo, e até tenho uma horta e gosto muito de mexer na terra e criar os meus próprios alimentos. Gostava de ter uma horta. Não como estilo de consumo mas como estilo de vida, digamos assim. Há sempre outras metas e outras coisas. É um processo, não é um estado.

 

Entrevista: Joana Torres | Fotos: Nélida Cardoso

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