Daniela Filipe é engenheira de software e astrofísica. Integra atualmente a Direção da ILGA, coordenando o Grupo de Reflexão e Intervenção Trans, onde não se poupa à desconstrução das estruturas sexistas e patriarcais numa lógica de intervenção comunitária transfeminista.
Fala-me sobre ti. Quem és, o que fazes, como te sentes?
O meu nome é Daniela Filipe. Neste momento trabalho como engenheira de Software, sou estudante de astrofísica e adoro fotografia, arte e escrever. Participo em vários projetos como a “Capazes” e o “Esqrever”. Sou atual membro de Direção da ILGA e sou coordenadora do GRIT, que é o Grupo de Reflexão e Intervenção Trans da ILGA.
O que é o GRIT?
O GRIT já passou pelo período em que era o Grupo de Reflexão e Intervenção para a Transsexualidade, mas já se fez esse upgrade. O GRIT em si é um grupo, mas damos apoio direto a pessoas que pedem ajuda dos mais variados tipos por e-mail ou telefone. Temos também um grupo de partilha, que se organiza tipicamente de três em três semanas no Centro, que é um grupo só para pessoas trans ou pessoas que estejam a descobrir a sua identidade, onde podem esclarecer todas as questões e desconstruir-se num espaço seguro. Ainda me lembro que na primeira reunião era só eu e um meu colega, mas neste momento já somos mais de 40 pessoas, um crescimento brutal. Depois também organizamos grupos de trabalho constituído pelas pessoas do grupo que têm interesse em entrar no ativismo, ou que querem começar a criar documentação ou algo que seja útil para outras pessoas. E temos também aquilo que é a parte pública, de comunicação. Todos os meses tentamos organizar uma tertúlia sobre temáticas de género. É que a ideia do GRIT é também ser um grupo de empoderamento. Não queremos que as pessoas estejam ali só porque são todas trans e têm uma opressão em comum, mas porque também queremos empoderar pessoas e dar-lhes ferramentas para chegarem à rua e terem mais capacidades.
Portanto, o GRIT tem como objetivo não só um espaço seguro para pessoas trans mas também um sítio de conversa e discussão sobre questões de género mais alargadas. Isto levanta-me uma questão que gosto sempre de fazer: o que faz uma boa aliada?
Todas as pessoas que se aproximam do GRIT aproximam-se com um objetivo, e eu não posso definir o que é que essa pessoa é. O facto é que o mundo trans é muito alargado, é um conjunto de experiências extremamente gigante, é muito interseccional, e muitas vezes procurar aliados é também tocar em assuntos com os quais as pessoas sentem empatia. Lembro-me de discutir coisas sobre expressão de género: porque é que a expressão de género é importante às vezes e porque é que se discute tanto a expressão de género nas questões T? Porque é a maneira que temos de ser reconhecidos socialmente, e quando se discutem questões de género ou comportamento com pessoas que não se identificam como trans, essas pessoas podem chegar à conclusão de que às vezes os seus pensamentos são um bocadinho normativizados e que não fazem muito sentido. E às vezes a maneira ideal de procurar aliados é pegar em coisas que as pessoas conseguem facilmente identificar. Nós não temos dificuldades em arranjar alcunhas para as pessoas e passar a chamá-las por essas alcunhas. Mas temos muita dificuldade em dizer “Eu quero que me tratem por este nome”. As pessoas resistem.
Consegues-me falar um bocadinho sobre o caminho que o movimento trans tem feito?
Sim! A questão trans é muito eurocêntica, americanizada. O termo transexual aparece perto da altura em que surgiu o termo homosexual – que surgiu antes de heterosexual. Depois os movimentos ativistas fizeram o push para falar de pessoas transgénero – porque estamos a falar de género – e a palavra trans acabou por ser a mais inclusiva, porque abarca todas as formas e identidades não normativas que conhecemos. O termo transexual continua a ser muito clínico, e porque é que nos queremos afastar desse termo? Se eu digo que sou trans tu sabes que eu tenho uma identidade não normativa; se eu digo que sou transexual tu sabes logo que eu tenho uma genitália mudada. O que nós temos de aprender é que, por exemplo, nem todas as pessoas trans querem ser operadas, nem todas querem fazer o tratamento hormonal, algumas pessoas trans querem mudar só o nome…. A diversidade é tão grande que nós não podemos resumir a pessoas que fazem operações ou que não fazem operações. Em Portugal, a lei que está em vigor ainda fala em perturbação de identidade de género (ou a disforia de género). E no ideal e utopicamente, o que eu queria era ser uma pessoa com as suas necessidades que as quer ver cumpridas, e quero-me ver respeitada e reconhecida por aquilo que eu sou. O que nós temos são pessoas que de facto, dentro daquilo que é a normatividade de género imposta pela sociedade (lá está, o nosso sistema cis-hetero-normativo), quebram essa caixa e dizem que querem ser muito mais. A nossa genitália não nos determina na sociedade.
Podes até sentir mais afinidade com uma caixa mas sem que essa caixa te prenda..
Sim, o que eu quero é que ao longo do tempo as minhas necessidades possam ser correspondidas. Porque as pessoas mudam, descobrem-se ao longo do tempo. Por exemplo, uma das coisas que é muito clássica das questões T é a forma como as pessoas se sentem, o facto de terem o género não conforme desde pequeninas. Mas há pessoas que não sentem isso, há pessoas que só sentem mais tarde… Eu, por exemplo, senti coisas muito diferentes. Vim de um meio muito conservador, ribatejano, onde as pessoas querem é touros, cavalos e vinho. Eu costumo dizer que eu fiz vários coming outs, para aí sete. Primeiro fiz o coming out enquanto pessoa bi. Depois descobri a palavra pansexual, que me fez mais sentido.
Queres explicar muito rapidamente o que é que quer dizer pansexual? E como é que é diferente do bi?
A questão bi também está a ser redefinida, porque os termos também evoluem. Mas antigamente o que acontecia era que a palavra bi estava muito associada ao facto de tu gostares de homens e mulheres. A palavra pan apareceu no contexto dos não binarismos, de uma forma mais genérica para se referir a pessoas. Por exemplo, eu fiz o meu coming out enquanto pessoa bi, mas depois fez-me muito sentido passar a pan porque também me identifico como pessoa não binária. A ideia de bi, hetero, homo, privilegiam a sexualidade – ou a genitália desta pessoa – numa lógica de “tu gostas de alguém na especifidade de ter um pénis ou uma vagina”, e o termo pan para mim é dizer “Aquela pessoa, aquelas características físicas dela, sejam genitais ou não, são tão importantes como outra característica”. Está tudo na mesma linha, e a minha capacidade de gostar de alguém está no facto de olhar para aquela pessoa como integral e é por ela que me apaixono, é a pessoa primeiro e depois as suas características. Nesta sequência fiz o meu coming out enquanto pessoa pan, depois fiz o meu coming out enquanto pessoa trans – rapariga trans, que era aquilo mais próximo do que eu conhecia mais próximo da minha expressão. E depois é engraçado, porque eu lidei muito tempo com comunidades online de pessoas trans e pessoas que faziam cross dressing e eu não sabia o que era ser trans. E eu estava lá, e eu estava a coordenar grupos, tinha encontros todas as semanas com essas pessoas, e falávamos de cross dressing, no desejo disto e daquilo. Mas eu nunca soube realmente o que era o termo trans: para mim aquilo era tão inerente a mim, tão naturalizado, que eu nem sabia nada sobre o que é que era ser trans, ainda que já fosse vivido. E depois comecei a descobrir sobre não binarismos – porque não me sentia totalmente bem em vários espetros – e percebi que sou uma rapariga porque é o que o sistema binário me permite ser, e sou trans e não binária porque é o sistema em que eu acredito. Depois fiz o coming out enquanto pessoa poli e anarco-relacional. Isto para dizer que de facto passar muito tempo nesta desconstrução dá-nos muitas ferramentas, e para muitas pessoas este processo é muito importante.
Sentes que existe confusão entre o que é a expressão e o que é a identidade de género?
Houve uma amiga minha que me dizia: “Então, mas tu podes vestir roupa feminina na mesma e ser mais feminina e gostar de homens na mesma, isso não é um problema”. E eu tive de lhe dizer que o problema era que não me identificava como sendo rapaz. Eu identifico-me com pessoa não binária, mas sou muito pró identidades femme. Acho que há um problema enorme sobre as identidades femme, que são sempre consideradas mais frágeis e etc.. Digo sempre que ainda que fosse um rapaz cis acho que uma coisa importante é este push da fragilidade e este combate à ideia de que tudo o que é feminino é frágil. Por exemplo, quando estou muito mais feminina as pessoas dizem que estou a bater certo com o género, porque mudei de nome. Mas há outras alturas em que eu pareço um rapazinho, e isso não anula a minha identidade. É só a minha forma de expressão naquele dia. Isso acontece-me muito na clínica. Na clínica tenho de estar constantemente a dar provas sobre quem é que eu sou, exatamente porque tenho uma expressão de género muito variada, e o facto de não ter um papel normativo enquanto rapariga atrasa-me o processo todo.
Se te sentires confortável gostava de te perguntar sobre esse processo. Quanto tempo, que obstáculos? Como é que funciona esse mecanismo?
Se calhar vale a pena entrar num contexto histórico, do que é a lei em Portugal, porque estamos prestes a discutir uma nova lei. Neste momento estamos sob a alçada da lei de 2011 e antes não havia nada na lei que dissesse que as pessoas podiam mudar de género. O que acontecia era que as pessoas se submetiam a um tratamento, estavam com médicos, tinham de fazer a prova de vida (que significava a pessoa provar que vivia o género que sentia durante dois anos) e o psicólogo depois assinava um relatório para a pessoa poder proceder. Como não havia uma lei em específico arranjou-se este mecanismo, e as pessoas faziam o tratamento, conseguiam que o psicólogo assinasse a declaração, faziam as operações e, no fim de terem as operações feitas, metiam um processo contra o Estado a dizer “Vocês são culpados da minha condição” para poderem validar a sua identidade no cartão de cidadão. E este processo era feito pela medicina legal, eram apresentadas fotos da genitália nova da pessoa em tribunal…
Tens casos ridículos, de pessoas cuja vagina não tinha profundidade suficiente, pessoas que nunca tinham falado de moda e portanto não podiam ser consideradas mulheres. No fim o juiz declarava se aceitava que essa pessoa mudasse ou não. E estamos a falar de pessoas que já tinham as operações feitas, que já tinham uma vivência social mas que tinham ainda o nome original. E na lei de 2011 – que na altura era uma das melhores leis do mundo – deixava de ser necessário todo este processo clínico, e não precisavas de ser operada, não precisavas de fazer tratamentos para mudares legalmente o nome. O que tu precisas agora é de um diagnóstico de perturbação de identidade de género, que na altura era o que estava no DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais). E o que aconteceu nessa altura foi que as pessoas passaram a ter um acesso mais prático à lei, mas ao mesmo tempo foi criada uma lista de médicos que pode assinar esse diagnóstico. Mas hoje em dia o processo é incoerente: por exemplo, muitos dos médicos que assinam estes relatórios estão no privado, o que faz com que muitas pessoas não tenham acesso à clínica, e os médicos que estão no público, muitos deles são conservadores. Tu precisas, supostamente, de um relatório para iniciar tratamentos hormonais e para fazeres cirurgias top, precisas de uma segunda avaliação de uma segunda equipa independente, e depois precisas de autorização da Ordem dos Médicos para se quiseres fazer uma cirurgia de reassignação sexual.
O que nós estamos a dizer é que as pessoas levam duas avaliações, têm uma autorização da Ordem dos Médicos (é o único procedimento clínico em Portugal que a Ordem dos Médicos precisa de aprovar) e o problema é que o diagnóstico é tendencialmente baseado em estereótipos de género, há um processo normalizador. Não há maneira de diagnosticar identidades, mas o que acontece nestes processos clínicos é normalizante: se tu vestes saias, se és heterosexual… E o que é que acontece? Isto basicamente faz com que muitas pessoas, quando chegam à clínica, acabem a contar uma história. É mais fácil contar uma história que bata certo com estes estereótipos todos. Eu acho que a saúde é um bem para toda a gente e deve ser acessível em todas as necessidades que as pessoas têm. E se eu, como pessoa T ou não, sentir necessidade de ter consultas para me acompanhar é uma coisa. Outra coisa é estar em consultas simplesmente para dizerem quem é que devo ser.
Pois, até com a tomada de hormonas, por vezes oiço que pode ser um processo durante o qual as pessoas querem ser acompanhadas…
Mas lá está. Mesmo nessas alturas queres ser acompanhada por alguém que te entenda, mas não, tens sempre de ter um tratamento com um médico autorizado. Eu por exemplo já sou acompanhada em terapia há alguns anos e perguntei porque é que não podia ser a minha terapeuta e o meu médico que já me acompanhavam há anos a assinar relatórios, porque eles já me conhecem desde sempre. Mas não, eles não podem fazer nada. A opinião deles não vale de nada. E no entanto são as pessoas que me conhecem e me acompanham. Isto é muito crítico. Um médico que me vê de mês a mês, ou de dois em dois meses durante quinze minutos, o que é que ele vai avaliar ali? Por exemplo, eu tenho muita dificuldade, porque a minha experiência não se enquadra naquele discurso em que eu sempre vivi super disfórica com o meu corpo e etc. Mas eu simplesmente quero fazer um tratamento ao meu ritmo para aprender com o meu corpo em vez de fazer tudo de repente. Claro que para outras pessoas é urgente fazer mais rápido, mas lá está, o tratamento deve ser de acordo com cada pessoa. Estamos a falar de uma população que tem uma taxa de depressão e suicídio muito alta, exatamente porque não se trata só de a pessoa se sentir mal e ter de perceber o que é que pode fazer em relação a si no seu processo desconstrutivo, como passa também por desconstruir a questão clínica e esse processo de normalização clínico, aos quais se acrescenta a enorme pressão social. Eu lembro-me de passar muito mal quando fiz o meu coming out no trabalho. Passei de um registo em que era rapaz engenheiro de software e de repente era uma rapariga e tinha de cumprir com tudo. Reclamavam até por andar com coisas nos bolsos. Porque o facto de seres trans dá-te um policiamento enorme por parte das pessoas. No primeiro dia em que apareci no trabalho já com o nome mudado, apareci basicamente com a mesma roupa que tinha antes. Porque sou eu. E as pessoas pensavam que eu ia aparecer com lantejoulas, com uma peruca ou assim. E basicamente a política de inclusividade foi criar um gueto para mim. Por exemplo, eu ia à casa de banho das raparigas e elas não diziam que era a casa de banho das raparigas, diziam que era a minha casa de banho.
Realmente a comunidade trans tem taxas assustadoras de tudo o que é mau: violência, discriminação… Consegues-me falar um bocadinho sobre o que é que é ser trans em Lisboa?
Eu tenho uma questão de interseccionalidade grande. Mas para mim é claramente diferente viver aqui ou viver em Santarém, porque em Santarém não podes fazer exploração identitária e aqui podes. Quer dizer, podes mas com alguns limites. Mas ainda assim a comunidade aqui em Lisboa não tem muitos espaços trans friendly. Começam a aparecer alguns espaços queer, o que é fantástico, mas realmente ainda temos muitos poucos espaços trans-friendly que sejam efetivamente espaços queer e espaços pan realmente inclusivos. O único sítio onde tive um problema numa casa de banho foi num bar LGBT: começaram a bater à porta e a fazer um estrondo quando estava na casa de banho das raparigas, e estava vestida de forma feminina e tudo… Mas lá está, a tua capacidade de te integrares tem muito a ver com a tua passabilidade. Lembro-me que eu comecei a ir à casa de banho das raparigas sem ter o meu BI mudado, mas havia alturas em que eu pensava “Mas eu hoje pareço um rapaz” e ia para outro lado, porque também é uma questão de proteção pessoal. Aquela altura em que eu tive o meu cartão de cidadão mudado foi a primeira vez que olhei de frente para o espelho numa casa de banho das raparigas. Reentrei para o ginásio aqui há um tempo, e com o cartão de cidadão no feminino significa que posso ir para o balneário das raparigas. E aos poucos estou a tentar conquistar o meu espaço: não me dispo integralmente, o que para mim é irónico tendo em conta que não tenho problemas nenhuns com a nudez. Mas vês-te no meio de pessoas que estão nuas, a confiar que não está lá nenhum rapaz, e eu estou ali com a toalha e a pensar “OK, espero que não percebam que eu sou um corpo masculino aqui”, porque ninguém sabe como é que eu me chamo. As pessoas ainda confundem muito orientação sexual com identidade de género. E vem uma pessoa que é trans e a primeira coisa que lhe chamam é paneleiro ou traveca… Lá está, um rapaz pode ser super feminino e ser hetero na mesma, ou whatever. As pessoas são como são. Temos de aprender a dissociar isto tudo, porque são questões diferentes. E depois existem imensas pessoas trans que devem conviver connosco todos os dias e nem sabemos. Existem pessoas que se calhar querem a oportunidade de explorar a sua identidade e não têm esse espaço.
Fala-me do ativismo LGBT em Portugal: como o descreverias?
Maioritariamente tem sido um ativismo mais G do que LGBT. Não esqueçamos que todo o movimento LGBT começou por uma luta de pessoas trans negras e muitas delas trabalhadoras sexuais em Stonewall. E nós comemoramos todos os anos a marcha do orgulho, e estas pessoas quase que perderam a visibilidade ao longo destes anos todos. E acho que o movimento tem sido muito à volta daquilo que é a questão G, ainda que já comecem a aparecer questões L. As questões Bi continuam muito invisíveis, mas começam finalmente a ganhar alguma visibilidade. Mas lá está, as questões T têm especificidades de lei, de saúde diferentes das outras. Enquanto, por exemplo, as questões LGB são muitas vezes questões mais políticas as questões T têm muitas preocupações com saúde envolvidas. E só nos últimos anos é que realmente se começou a ouvir falar de grandes movimentações à volta da questão T. Eu comecei no ativismo não há muito tempo, mas a verdade é que isso é uma demonstração de como a informação estava escassa, porque eu passei anos e anos a trabalhar com comunidades trans e não sabia sequer o que era ser trans, porque não havia essa visibilidade. É uma coisa que eu acho que em termos de ativismo, para além de ser difícil pela diversidade da comunidade, é estrutural. É estrutural porque mexe com uma problemática que temos que é a questão do género, a diferença de género, a desigualdade de género. Os transferminismos mexem com todo aquele conservadorismo de género, e aqui há uma resistência muito grande, e é preciso uma grande pressão para que as coisas mudem.
Tem-se dito que tem havido um grande progresso a nível de políticas públicas nos últimos anos a nível das questões LGBT. Onde é que estamos, o que é que falta, o que é que correu bem e onde é que queremos chegar?
Eu acho que, por exemplo, a lei de identidade de género de 2011 na altura parecia um marco, e até foi uma coisa positiva. Disse que as pessoas trans deixavam de ter de fazer processos contra o Estado para terem a sua identidade reconhecida, mas essa lei já está ultrapassada. Neste momento estamos a discutir uma nova lei, que é a lei da autodeterminação. E o facto é que nas questões T em particular nada mais tem sido feito. Acho que o casamento entre pessoas do mesmo género, a questão da PMA foram particularmente importantes, assim como a adoção, a coadoção. De facto começou-se a reduzir a discriminação legal. Do ponto de vista das questões T não têm havido tantas coisas novas a nível legal: ainda falta pôr na Constituição a proteção da identidade de género. Só em 2014/2015 é que a identidade de género entrou como critério de discriminação no código de trabalho. Mas depois, por exemplo, temos tudo aquilo que é político, e o político tem de se transformar em social. Temos de pôr as questões da sexualidade e da identidade como parte dos manuais escolares, falta chegar à educação, às forças de segurança… Nós temos o Observatório da Discriminação, e sabemos que as pessoas muitas vezes não fazem queixa por receio de discriminação por parte das forças de segurança. É preciso transformar o político em comunitário, em pessoas.
Achas que o transferminismo é o futuro?
Eu acho que em parte pode ser muito bom as pessoas começarem a pensar em moldes de transfeminismo. Porque o transfeminismo obriga-nos a desconstruir uma série de conceitos sobre as pessoas, e também tem uma história. O transfeminismo veio do feminismo interseccional, que veio por sua vez do feminismo negro. É o transfeminsmo que em si já inclui todas as intersecções de pessoas e opressões diferentes. Nesse sentido acho que é um passo, porque é super inclusivo. Claro que se calhar mais tarde vão existir outros feminismos que vão incluir o transfeminismo e que vão ser extensões dele.