Enóloga sem que nada o fizesse prever, Gabriela fugiu da tradição familiar que a levava às artes e escolheu uma outra forma de exprimir a sua criatividade, fazendo vinho. Uma apaixonada pelo Douro, habituada a mover-se num mundo tradicionalmente de homens e a conquistar o seu espaço. Sente os vinhos como filhos, numa vida dedicada a estes.
Como chegou à enologia?
É engraçado e foi um bocadinho diferente do que era habitual. Grande parte dos enólogos da minha geração vieram para o setor do vinho por ligações ou tradições familiares ao setor do vinho. E de facto, a minha envolvência familiar era para seguir artes. Cheguei a estar em arte e design, depois cheguei à conclusão, no 9º ano, quando tive encontro com colegas dessa área, que tinha muito pouco talento. E medíocre não me apetecia ser.
Na altura falei que queria ir para a área agrícola, o que foi um choque. A família não tinha nenhuma ligação. Tínhamos uma quinta em Penafiel, mas que nem encaramos como produtiva. E os meus pais acharam que se eu fosse para a Escola Agrícola de Santo Tirso se calhar ia perceber que não era isto e que não decidiria só na faculdade. O que aconteceu foi exatamente o contrário: adorei. E aí notava-se imenso que as mulheres eram poucas. E quase não se falava em enologia. Eu lembro-me que quando cheguei para o primeiro dia de aulas, os rapazes estavam a ver na listagem dos alunos quantas raparigas havia nesse ano. Então éramos 13 na Escola Agrícola Conde de S. Bento, em Santo Tirso, onde tirei regência agropecuária. Nesse período tive um problema de saúde que me levou a um ortopedista, o Dr. Asdrúbal Mendes, que me falou no curso de enologia porque durante as consultas ele apercebeu-se que eu teria um bom nariz. Eu detetava alguns aromas dentro do ambiente hospitalar que ele achou curioso e, então, falou do curso e perguntou se eu sabia o que era a enologia; e eu dizia que vinhos já cheirara muitos anos (tinha treze anos) mas não sabia que havia formação específica de enologia e ele deu-me as informações todas. E então vim para Vila Real para enologia e foi um crescendo de paixão. Eu acho realmente que as mulheres estão mais vocacionadas até para esta área do que os homens potencialmente, porque nós somos treinadas desde jovens nos aromas, nos cheiros, nos perfumes, muito mais do que os homens. A memória olfativa é uma coisa que se treina e, de facto, nós as mulheres começamos esse trabalho, inconscientemente, mais cedo do que os homens. Mas depois há um lado não tão romântico de cheirar e do trabalho de adega, que é um trabalho muito duro. Mas, ainda assim, acho que as mulheres incrementaram um lado, não de força física, mas de trabalho com a cabeça. Porque nós normalmente não temos tanta força física e então puxamos mais pela força criativa para arranjar soluções que nos poupem fisicamente. E esse tem vindo a ser também um fator de sucesso das mulheres na enologia, o reinventar.
Quando eu comecei, era muito raro uma mulher na enologia; saíram meia dúzia de fornadas da faculdade e grande parte delas tinha ido ou para o ensino ou para os laboratórios. Então, o dia a dia na adega criou algum choque aos colaboradores, embora pelo menos comigo, senti que se criou uma situação muito interessante, que foi tornarem-se as adegas mais serenas, mais calmas e mais bem educadas, porque havia sempre aquela situação de não haver uma voz mais alta ou uma palavra mais agressiva, porque havia uma senhora presente. E, portanto, acho que também viemos trazer essa delicadeza.
Quais as principais dificuldades neste mercado de trabalho para uma mulher na sua posição?
É evidente que havia uma estranheza muito grande. Principalmente quando lidávamos com equipas mais envelhecidas. Na Taylors, não senti isso, porque é uma casa já com uma leitura e abertura completamente diferentes, mas quando entrei para uma casa portuguesa já senti um bocadinho isso. Depois, ainda hoje, numa ou outra situação noto alguma resistência a haver liderança por mulheres mas de forma mais disfarçada, o que torna tudo mais perigoso porque podemos ser levadas em situações que se revelam de repente.
Nota mais essas situações em que patamares da organização? Nos trabalhadores, nas chefias…?
Os trabalhadores têm um primeiro impacto razoável, mas se mostrarmos conhecimento e capacidade é rapidamente resolvido e passam a respeitar. Eu considero que a resistência maior e a mais disfarçada está nas chefias intermédias e ao meu nível: aí sim. Embora já estejamos a falar de sangue fresco, é uma geração mais recente e então disfarça essa postura, mas ela está lá.
Considera que há diferença entre as quintas portuguesas e as estrangeiras?
Sim, embora haja empresas aqui que, por regra e pelo menos em cargos de chefia, não contratam mulheres, inclusivamente as da família. Elas não têm acesso à empresa. Já acontece pouco, mas tenho conhecimento de uma, que é uma casa inglesa, onde em cargos de chefia não entram mulheres. Eu só trabalhei numa casa inglesa, a Taylors, mas neste caso notava uma igualdade muito grande. Para mim foi um choque mudar, achava que era um setor à parte porque nunca me tinha sentido diferente e, afinal, notei diferença quando vim para as casas portuguesas. Isto é um bocado geral, porque no Douro aceita-se que haja a distinção de “trabalho de mulher” e “trabalho de homem”, o que eu acho absurdo. Eu sou uma acérrima defensora da luta contra isso. Ouve-se constantemente a pergunta “quer mulheres ou quer homens?”. E há um preço. As mulheres ganham menos que os homens, supostamente porque as mulheres fazem o trabalho mais leve e os homens o trabalho mais duro. E eu digo que isso para mim não existe. Inclusivamente, todas as faturas que me são passadas por empreiteiros agrícolas vêm com trabalho discriminado e não com trabalho de mulher ou homem. Eu recuso-me. Se eu tiver mulheres a pegarem num ferro e abrir buracos para plantar, não ponho a hipótese de lhes pagar um preço inferior, o preço de “trabalho de mulher”. Para mim, se a pessoa faz um trabalho mais pesado e mais exigente fisicamente então tem que receber mais, sendo homem ou mulher.