Guiomar, uma cigana orgulhosa da característica de resiliência que associa às mulheres ciganas, sonha um dia ter uma associação de mulheres ciganas. Apesar de ter abandonado a escola aos 9 anos, nunca desistiu da sua educação. É ativista feminista e não desiste de o ser porque há, apesar de tudo, apoio e vontade de levar mais mulheres ciganas a conquistar o espaço que lhes pertence.
Como mulher e cigana como foi a tua educação?
A minha educação foi muito fechada. Filha única e com 9 anos tive de sair da escola. Nem sequer na altura me passou pela cabeça saber porquê. As minhas primas também só fizeram até ao 4º ano. O meu irmão é mais velho e foi para o ciclo. Por acaso fiquei muito triste porque gostava muito da escola, mesmo! E era boa aluna, nunca dei problemas ao meu pai por faltas, trabalhos de casa… Mas era uma coisa normal e eu também era uma menina e não fiz questão. Com 9 anos o que é que eu podia fazer? Mas em tudo o resto foi uma educação que julgo normal: em casa, com a mãe… Eles trabalhavam na feira e as vezes acompanhava-os. Depois também comecei a aprender as típicas coisas que as meninas começam a aprender: fazer a comida, tomar conta da casa… Uma coisa tranquila com nada de extraordinário, até porque também cresci numa aldeia onde éramos a única família cigana.
Como achas que é ser mulher cigana em Portugal?
Eu sinto-me igual a qualquer outra mulher. Tenho as minhas dificuldades, claro. Tenho a dificuldade da educação e agora com 35 anos vejo que é muito difícil contrariar porque, eu pelo menos, sinto muita dificuldade para estudar. Eu sai da escola com 9 anos. Quando se segue uma linha e somos jovens as coisas até vão bem e pega bem na cabeça mas com 35 anos não. De resto eu sinto-me como outra mulher qualquer. Já me têm feito essa pergunta mas eu acho uma coisa tão normal e tão básica que é difícil explicar. Agora, acredito que cada mulher tenha os seus objetivos e seguir ou não em frente é uma opção e um tiro no escuro que não sei se vai acertar mas tento. E vou tentando educar os meus filhos o melhor que posso… Não sabendo se sou boa mãe mas tento. Também me pergunto as vezes “o que é ser cigano para ti?”, “o que te faz ser cigano?” ou “o que é especial para ti?” e eu fico a pensar que sou igual a qualquer pessoa. Um dia li uma entrevista de uma advogada espanhola, cigana, e identifiquei-me com alguma coisa: a história que a comunidade cigana tem vindo a fazer ao longo dos anos. A nossa maior magoa é o tempo nazi e pelo que passamos nas mãos deles. E ela contava uma história com que me identifiquei muito e que se baseava no facto de sermos unidos. Há uma história que contam de que numa noite num campo de concentração e onde uma comunidade cigana que sabia que ia ser morta nessa noite decidiu unir-se : “nós não temos nada mas quando eles entrarem o que tivermos à mão: pedras, paus, o que for… vai ser para lutar”. E assim foi, uniram-se e naquela noite não houve mortes da comunidade cigana. Depois claro que os dispersaram ao entenderam que se estivessem juntos eram fortes, mas esta é realmente uma coisa com a qual me identifico. E, se calhar, o que é ser cigano para mim? É ter história, é eu saber o que o meu povo tem sofrido ao longo dos anos e por onde caminhou. Há muita história por aí mas pelos factos históricos, nós viemos da Índia, éramos uma casta baixa e houve essa necessidade de fugir e começaram a dispersar-se pelo mundo na tentativa de ter algo mais. Então é isso, a resiliência. Eu costumo dizer: ser cigano é ser resiliente. E ser cigana e mulher é isso, lutar todos os dias por uma vida melhor. É o básico de qualquer ser humano: lutar por mim e por quem esta ao meu redor.
Apesar de não teres conseguido ter o acesso à educação que gostarias em criança, ao longo da tua vida tens-te esforçado bastante por colmatar essa situação. Como é que isso tem sido aceite dentro da comunidade, da tua família?
Quando casei, nos primeiros anos íamos para as feiras e até conseguíamos alguma coisa. Mas eu sempre tive muita curiosidade e gostava muito de aprender e estudar. Depois houve oportunidade de, através do RSI, tirar o 6º ano. Eu tinha de ir e também gostava. Quando acabou, comecei a procurar formações e ia ao centro de emprego perguntar sempre o que havia e no que me podia inscrever. Tirei alguns cursos. Depois comecei a trabalhar como dinamizadora no projeto Escolhas, no bairro onde moro, a convite da coordenadora. Fui falar com o meu marido e tivemos uma reunião com ela onde explicou que eu tinha que viajar umas vezes com ela e outras sem ela. Eu nunca tinha saído de casa sozinha. Desde aí as coisas começaram a fluir: fui conhecendo outras coisas, entrei no ativismo… Conheci pessoas de quem conhecia projetos, como a tia Olga da AMUCIP. A tia Olga Mariano é uma referencia porque é mulher, cigana e viúva. Uma mulher cigana, viúva que juntou meia dúzia de mulheres e criaram uma associação. Conheci pessoas que se tornaram minhas amigas e quando há alguma coisa tentamos encaixar algo que eu possa fazer. Ainda este ano participei no Ribaltambição. Temos vídeos no youtube de histórias de 7 mulheres ciganas através da culinária. Para os ciganos a culinária é muito importante. Fizemos um vídeo de cada uma onde fazíamos uma receita típica cigana e onde falávamos também sobre a mulher cigana em Portugal.
Tens uma filha, uma menina. Enquanto mãe de uma menina e tendo essa consciência de que temos de capacitar as mulheres, como consegues conjugar a parte étnica, de que te tanto orgulhas, e a educação empoderada de uma menina?
Eu só tenho que fazer uma coisa: dar o exemplo em casa. E é o que tenho feito até agora e tem corrido bem. Acho que deve acontecer naturalmente, sem opressões, sem julgamentos. Ela está na escola e gosta da escola. É super pratica e autónoma. Não penso muito no dia de amanhã nesse sentido mas quero que a minha filha estude e que consiga tirar um curso para que consiga entrar no mercado de trabalho, ser feliz e identificar-se com o que fizer. Não culpo o meu pai por não ter estudado, há uns anos era assim e esta era uma ideia que nos foi incutida. Ele fez isto na ideia de me proteger. Temos uma história de tanta perseguição, mesmo em Portugal, na habitação, no mercado de trabalho, nas escolas… E mesmo sem querer fechamo-nos. Em Portugal, nós não temos muito romanes e agora até já é um bocado espanholado, como costumamos dizer, porque fomos proibidos de falar a nossa língua. Até hoje sinto-me perseguida, não totalmente aceite… Ás vezes até no trabalho quando dizem “onde está isto?”, “ eu nãoo sei disto…” eu já sinto aquele aperto: “Ela é cigana, será que foi ela?”. Mesmo as pessoas não dizendo nada isto já esta tão enraizado e o medo já é tanto da ideia “ foi o cigano” que eu quero que a minha filha me diga assim: “ mãe, eu sou feliz.”. Mesmo que não queira estudar até ao fim, só quero que ela consiga trabalhar para ganhar o sustento dela e, que não pense que casar é o único objetivo de vida dela. E quero mesmo que ela seja empoderada como mulher, que tome atitudes e que se sinta bem com o que ela faz, na área que for.
Sentes esse medo e essa não aceitação.. Além dessas, em que circunstâncias te sentes assim?
Eu tenho tido sorte porque não sou muito morena então não sou a típica imagem estereotipada que há. E a mulher cigana é vaidosa por natureza e eu não sou assim. Na escola sempre fui bem aceite, era a única “ciganinha” da escola com o cabelo muito comprido e a professora adorava-me. Já na adolescência pouco convivi com meninas não ciganas . Agora é verdade que quando casei não consegui alugar casa por ser cigana e aí sim comecei a sentir o racismo que eu até aí nem tinha grande noção. Por telefone estava tudo bem mas o meu marido é muito moreno e olhavam para ele… e mesmo pela minha fala, ás vezes apanhavam-me. E as pessoas diziam que a casa já tinha sido alugada ou já tinham outra pessoa em vista. Tive muitos anos a tentar alugar casa em Espinho e não consegui, não foi 1 nem 2 nem 3. Sempre me era negado. Cheguei ao ponto de desesperar e alugar casa em Ovar, que é muito longe daqui. Tirei o meu filho da escola, do ambiente dele e o meu filho tem dislexia. Eu tive de o tirar do ambiente de segurança dele e ele regrediu. Mas o desespero foi tanto que eu aluguei casa em Ovar, lá numa ponta, completamente sem ninguém. Depois comecei a trabalhar e pensei que tendo folha de vencimento já me facilitava a vida e aluguei com uma imobiliária, eu não conhecia a dona da casa. Até ai tudo bem e marcamos para fazer o contrato, paguei à senhora e enquanto o contrato estava a ser redigido a senhora veio meter conversa comigo. E eu não tenho problema nenhum em dizer quem sou mas também não ando a apregoar que sou cigana, não tenho necessidade disso. E essa senhora já tinha feito voluntariado no bairro e eu disse que era dinamizadora e ela perguntou se eu era cigana e eu disse que sim. No dia seguinte a senhora pediu-me o contrato e eu confiei nela. Disse que tinha que ir ás finanças e depois ligou-me a dizer que já não podia alugar porque a vizinha soube que eu era cigana e não convinha estar a habitar com pessoas não ciganas. Aí senti. Senti muito o racismo por ser cigana.
Como é sentir isso?
É muito mau, nem fazes ideia. Eu tive os primeiros dias super triste . Nunca tinha sentido isto. No final de contas dizem “é cigano…” mas aqui essa cigana foi ela porque ela enganou-me. E uma senhora que até era doutorada, dava aulas e estava agora na reforma… Pelo menos dava-me casa, uma oportunidade. Até entendia que dissesse que não queria barulho, é normal, temos de respeitar quem esta ao nosso lado. Pelo menos que me tivesse dado uma oportunidade. Não me deu.
Achas que na tua vida te foram negadas oportunidades por seres cigana?
Eu não posso dizer para me darem trabalho porque eu também tenho de me capacitar para isso. Eu sei de antemão que não posso pedir um emprego porque primeiro, pedem experiência, depois porque pedem pelo menos algum conhecimento na área. Por isso, para pedir emprego também temos de ter a noção de onde vamos pedir e se temos capacidade. Eu sei de muita gente que tem sido negada mas eu ainda não senti isso. Neste momento trabalho numa escola como auxiliar e já estou lá há 6 meses. Foi uma novidade para toda a gente porque eu nunca escondi que sou cigana até fiz questão de dizer. Depois os meninos no recreio primeiro acharam-me estranha e perguntavam se eu era espanhola e aos poucos explicava-lhes que era cigana. Os miúdos não se acreditavam e até diziam que eu era branquinha. São crianças e agora esta tudo bem, sou acarinhada. E se elas falam é porque não tem conhecimento de causa e falamos do que é e do que não é. Agora vou ter de sair no dia 13 e as pessoas já dizem que vai custar muito eu ir embora.
E os projetos de ativismo, achas que estão a ir bem na comunidade cigana?
Eu acho que sim. Vou dar alguns exemplo. Há Opré Chavalé. A coisa está a ser positiva, está-se a fazer alguma coisa. Depois acabamos por nos conhecermos uns aos outros. Eu tenho uma amiga no Algarve, que conheci por causa do ativismo, e ela é bombeira: a única bombeira cigana em Portugal. E também estuda educação Social na faculdade. Depois temos a Vanessa a trabalhar no projeto de Sta Tecla. Começou por ser lá dinamizadora e agora também está a estudar na faculdade. E a Maria Gil que é cigana e atriz. E a Toya e o Bruno que fizeram agora o projeto com Soutelo e que também estão na faculdade. Então é positivo e claro que o ativismo está a fazer muito sentido. Dizem que há cerca de 3 anos, desde que as mulheres começaram a entrar no ativismo, a coisa desandou. O que eles não conseguiram fazer em 20 anos, as mulheres desde que entraram no ativismo estão a conseguir. E isso é muito bom.
E como é que a comunidade reage a ter uma mulher a fazer estas coisas todas?
Há coisas boas e más. Se eu disser que toda a gente me dá palmadinhas nas costas estou a mentir. Não me dizem diretamente mas há sempre pessoas a quem incomoda. Mas isso a mim não incomoda. Incomodaria se eu tivesse de deixar de as fazer. Uma vez fui a um seminário falar sobre o percurso da mulher cigana em Portugal e uma senhora de uns 60 e tal anos, no fim, veio falar comigo e disse que as mulheres, de forma geral, em Portugal já fizeram este caminho há uns 50 anos atrás, disse : “- as nossas mães já foram julgadas pelas nossas avós ou até mais pelas vizinhas. Elas ficaram em casa a cuidar dos filhos ou a trabalhar com os maridos mas elas queriam outras coisas para nós, não este tipo de vida. Muitas meninas foram para a cidade estudar e essas vizinhas diziam que elas se iam perder”. Por isso o que estou a fazer agora, é claro que há gente a torcer o nariz e que me julga. Mas também há gente que me aplaude, apoia e ganha força para fazer igual.
Guiomar, quais os próximos projetos e sonhos?
Eu gosto muito de trabalhar no ativismo, mas não há remuneração. Eu quero trabalhar no que gosto mas preciso de remuneração no fim do mês. Adorava trabalhar como mediadora da comunidade cigana. Trabalhar na câmara junto das pessoas e nas coisas que mais precisam que são, neste momento, a habitação e a educação. É o mais grave no nosso país, neste momento, a habitação em primeiro lugar e depois a educação. Há algumas condições tão más que não podemos exigir educação enquanto essa habitação não esteja modelada. Assim, um dos meus objetivos é trabalhar na área social. Sei que não posso trabalhar em certos patamares porque não tenho estudos mas quero pelo menos estar ligada a isso. Quero ir lá e levantar a voz e servir de exemplo. Também quero fazer projetos e criar uma associação que,na brincadeira, até já a identifico como Movimento das Mulheres Ciganas em Portugal. Quero mesmo um dia que isso vá em frente. A rede já está feita, temos boas pessoas, agora é ir tentando.
Como mulher cigana, o que gostavas de ainda ver acontecer ás outras mulheres ciganas?
O que já está a ser feito, as mulheres ciganas nas universidades. Mulheres em qualquer área de trabalho. Uma mulher bombeira e cigana, não é normal. Uma mulher cigana a fazer teatro, como a Maria Gil. A Toya tem um sonho, que agora já não pode acontecer por causa da idade, queria ser médica. Mas quem sabe a filha dela não o vai ser?