Júlia Duarte: “Com ele muito contrariado comigo, mas levei a minha avante”

Júlia Duarte, pescadora

Júlia DuartePescadora de 68 anos, da Fonte da Telha. Começou a trabalhar como pescadora com 21 anos de idade e foi a primeira mulher a ter a Cédula Profissional do Sul do Tejo.

 

 

Como surgiu a ideia de trabalhar como pescadora? Vem de uma família de pescadores?

Não, pelo contrário, a minha infância nunca foi andar no mar. O meu pai tinha cá, na Fonte da Telha, uma mercearia, taberna, restaurante, tudo junto. E a minha vida foi a ajudá-lo. Eu gostava muito ser cabeleireira ou enfermeira. Mas eu sempre adorei o mar. Quando casei, o meu marido era pescador e quando ele foi para a pesca eu disse que queria ir também. E ele: “não, não vais”. E eu: “Sim, senhor! Se vais, também eu vou!” E fui assim mesmo à pesca, com ele muito contrariado comigo, mas levei a minha avante. E pronto, comecei a andar no mar.

 

E como é que o seu marido fez a sua paz com isto?

Ao fim de uma semana já estava tudo bem.

 

Era a única mulher a pescar?

Naquela altura havia uma ou duas pescadoras, mas só trabalhavam em terra, não andavam no mar como eu andei. Antigamente havia a arte do arrasto e a outra que chamam a arte xávega. Era para puxar, que várias mulheres nessa altura puxavam a rede, com os cintos à cintura. Era tudo assim, manual. E eu ia sozinha com o meu marido num barco a remar, porque naquela altura não haviam cá motores. E comecei a minha vida ali. Ainda pesquei uns sete ou oito anos sem a cédula marítima. Ao fim destes anos, um senhor convenceu-me que como andava no mar, mas sem cédula, era melhor ir fazê-la.

 

Foi difícil fazer a cédula?

Foi muito giro. Tinha que apresentar a escolaridade que tinha, tinha só a quarta classe. Tinha que ter um registo criminal e o atestado médico. Tirar o registo criminal foi muito engraçado. Perguntaram-me porque é que queria, e quando eu disse que queria ser pescadora, eles mal acreditaram: “Pescadora a sério? Para andar no mar?” Depois chamaram lá todos os colegas para mostrar que eu era a primeira pescadora a tirar a cédula marítima. Deram-me os parabéns, acharam engraçado, e disseram que merecia uma garrafa de champagne! Depois fui a Trafaria entregar os documentos necessários e tinha que nadar. Haviam alguns pescadores que não sabiam nadar na altura, o que era muito perigoso. No dia que marcaram estava a chover. Chegamos à porta da agua com o senhor do escritório e ele disse que eu tinha que nadar até uma boia. Eu disse que até aquela boia no ia, que molhar-me para ir ali não valia a pena. Eu só ia se for para nadar até o fundo. E ele respondeu: “Eu sei que a senhora sabe nadar.” E afinal não foi preciso ir ao banho.

 

Júlia Duarte, pescadora

 

É perigoso andar no mar?

É um trabalho muito perigoso. Uma vez quando estava grávida fui ao fundo. E outra vez quando fui pescar com o meu marido, começou a haver muito vento. Cada vez mais mar e vento e ondas. Chegámos a terra, nem durou uma quarta hora e chegou uma tempestade que se tivesse apanhado essa tempestade, a gente tinha ficado no mar. Eram vagas muito grandes e o barco era pequeno. Mas o resto andou tudo bem.

 

Depois sempre continuou a pescar com o seu marido?

Sim, e depois comprámos barco, arrasto, tratores. Eu era a única mulher ali a andar de trator. As outras achavam muita piada eu andar ali sozinha de trator com tantos homens.

 

Continua a trabalhar no mar?

Fui operada a um rim e sou reformada por invalidez por isso não posso fazer esforços. A minha idade já não mo permite. Porque é um trabalho que exige muito da gente, é um trabalho de muito esforço. E é preciso gostar. O meu marido também já está um bocado velhote, agora é o meu filho que vai ao mar.

 

Júlia Duarte, pescadora

 

Tem saudades?

Tenho, quando tive de deixar de ir, fiquei com muita pena. No principio tinha um grande desgosto. Quando os via todos à tarde a ir para o mar tinha uma pena grande. Fiquei com muitas saudades daquela força de vontade de ir para o mar, de mandar, daquela labuta com eles todos, daquela convivência, porque nós temos muita convivência. Mas sempre fiquei ligada ao mar e a pesca. Depois fazia grandes parodias com o trator: no meu trator só iam mulheres! Sete mulheres no meu trator! Pronto, seguiu assim a minha vida, acabou e ainda não morri! Mas se fosse necessário, continuava a fazer a mesma coisa.

 

 

Entrevista e fotos: Borbála Kristóf

Leave a Reply