Magdala de Gusmão emigrou do Brasil para Portugal há mais de 10 anos e com ela trouxe o seu filho de 6. Hoje, com 49 anos, sabe que venceu as adversidades de quem chega a uma terra estranha.
Estudou Marketing em São Paulo e Desigualdade e Desenvolvimento Sustentável em Madrid. Como é que veio parar a Portugal?
A primeira etapa em Portugal – que não foi a única – foi motivada pelo meu ex-marido, já falecido. Ele emigrou primeiro e eu vim ao encontro dele. Foi assim que eu vim parar a Portugal. Foram esses primeiros passos que me deram a grande lição e a grande experiência de estar imigrante com um filho de seis anos, sem emprego – mesmo com um nível superior da melhor universidade da América Latina.
Qual foi o seu principal desafio quando decidiu deixar o Brasil e vir para a Europa?
Desde menina que eu já sabia que não ia permanecer para sempre no Brasil. Eu sabia que ia ter várias experiências, mas as oportunidades não chegavam.
Eu vim um pouco anestesiada, um pouco desconhecedora e com um monte de ignorância. E essa coisa do desconhecimento profundo e de algumas decisões que a gente toma, fez a saída do Brasil não ser dura. O que foi duro mesmo foi a permanência. Os primeiros momentos, em menos de um ano, é muito difícil. Realmente emigrar é muito para corajosos e corajosas. Não é, de facto para qualquer um! (Risos) Parece até que é. Emigrar é sempre um desafio. Tem esse momento de uma entrada pesada num deserto. Era um deserto de relações, era um deserto de tudo, até a língua! Chegar a uma terra estranha e não ter onde resolver as questões.
E porque é que acha que uma pessoa com as suas habilitações, não consegue arranjar emprego?
Acho que no primeiro momento esse deserto das relações e da desinformação. Eu não tinha ninguém. A única pessoa que eu tinha aqui era um marido, mas um marido é muito pouco! O núcleo familiar é insuficiente. Eu vim para o nada. Outras pessoas não, já vêm com suporte, já tem outras pessoas da família, já tem amigos que prometem (e não cumprem!). Eu não tinha nem promessas, e até agradeço. Em terceiro plano, houve uma altura que fiquei indocumentada e vivi um pouco da chamada “imigração ilegal” – eu não gosto de chamar ilegal-. Quando ia buscar os empregos tinha toda essa experiência. Eram só trabalhos muito precários. Estive em dois trabalhos terríveis, mas tive a sorte de terem sido experiências muito curtas.
Eu imigrei em 2005, e vim com um filho de seis anos. Fui uma das mais malucas! Não sei, de facto, onde é que eu estava com a cabeça. Foi de uma ingenuidade, de um desconhecimento tão imenso. Muitas mulheres que vejo, independentemente do nível socioeconómico, poucas emigram com os seus filhos. Não foi um trajeto nada tradicional, e isto foi uma grande barreira. Em todas as entrevistas de emprego que tive, eu assumia que tinha um filho. Ouso dizer que mais do que os documentos, a história de ter um filho ao meu encargo pesou mais [para não arranjar trabalho]. Eu sentia um peso muito grande nessa história da maternidade por ter tomado uma decisão que o meu filho não podia tomar. Fiz isto sem calcular todas as variáveis, tudo o que poderia acontecer. E insistia em dizer “Eu me recuso a abdicar da minha maternidade”(Risos).
E depois a questão da idade, eu já estava com 39 anos.
O meu primeiro emprego mesmo foi um emprego muito mal remunerado, mas também foi uma opção minha. Era um emprego com contracto, na igreja católica portuguesa. Eu fazia tudo, da sacristia ao secretariado! Era a pessoa que dinamizava as iniciativas da igreja, eu atendia as pessoas desesperadas – ficava, acompanhava e organizava as celebrações religiosas. E brincavam comigo, diziam que eu só não era um padre porque tinha nascido mulher. Foi incrível! Foi na igreja que eu conheci a gestão de uma organização não lucrativa e a força do patriarcado – ver aqueles homens todos e o aparato feminino em torno deles todos, a voz deles é a única que manda e a que é ouvida.
E foi na altura em que deixou de trabalhar na Igreja que fundou a ComuniDária?
A ComuniDária eu fundei sem nada. E fundei ainda antes de trabalhar na igreja. Eu casei pela segunda vez, continuava desempregada mas continuava a fazer voluntariado. Entreguei o meu curriculum para várias organizações. Nenhuma me respondeu. Eu já tinha experiência a trabalhar com prisões, com marginalização, violência. As únicas organizações que me responderam, por incrível que pareça, foram duas igrejas.
Eu já tinha me jogado no mundo. Antes, eu já estava a atender imigrantes. E aí fui cansando dessa situação que quando eu ia com as imigrantes as pessoas diziam: “A senhora é advogada?”, “A senhora está fazendo o quê aqui?”, me disseram que estava fazendo advocacia ilícita. E tive que formalizar essa situação. Tinha que ter, no mínimo, uma cobertura institucional. E a cobertura institucional sou eu mesma. Aí criei a ComuniDária, com o meu marido e a minha cunhada, que era a rede que eu tinha. Em Portugal não existia, como ainda não existe, nenhuma estrutura em que eu pudesse ser uma empreendedora social. Na época eu teria feito isso, não teria aberto uma associação, nunca. Mas aí dei um passo consciente. Comprei o único livro sobre associativismo, vi a estrutura, vi as restrições, vi a falta de benefícios. Mas não existia solução para mim, fui forçada. E falo com a maior transparência. Realmente teria outra modalidade, de empreendedora social por iniciativa própria. Porque sempre foi isto, não era uma questão de protagonismo.
O que é que acha que mudou em Portugal relativamente à imigração desde que chegou cá?
Muita coisa. Quando eu cheguei [há 10 anos] havia muito poucas estruturas de apoio institucional para a imigração. Pouquíssimas respostas para as várias situações difíceis. E existia um fluxo grande de imigração de língua portuguesa e do leste europeu. Agora se vê outra presença, do médio oriente, mulheres dos países asiáticos. Nestes últimos três anos mudou muito. E essa questão burocrática, das leis, se via os imigrantes muito mais desesperados com a não-informação.
Nestes últimos anos, a tendência é de fechamento. Quando entrei era tudo mais fácil – para quem conhecia – na documentação. As regras eram melhores, menos rigorosas. Os procedimentos administrativos são cruéis. Mas mesmo com aquilo que precisa ser melhorado, desconheço melhor lei tendo em conta outros países europeus. E Portugal vai continuar a ganhar o Prémio da Integração. E acho que é merecido na lei da expulsão dos imigrantes. Desconheço outro país que seja mais flexível que Portugal na questão das deportações. Mas não é merecido no requisito da integração efetiva, em que os imigrantes têm acesso a oportunidades e de uma inclusão que não seja pelas margens. Eu diria que Portugal tem uma coisa hipócrita: “é bonito receber mas você fica à margem”.
Ouvi a semana passada uma jovem que me disse: “Magdala, eu não quero ficar na prostituição, eu tenho qualificação”. A inclusão não é isto, a integração não é isto. Integração não é uma pessoa chegar como faxineira e morrer como faxineira, e as suas filhas continuarem como faxineiras.
Quando ainda estava no Brasil já tinha uma veia ativista pelos direitos das Mulheres, Imigrantes e Minorias Étnicas, ou foi algo que descobriu mais tarde?
A única relação que eu tinha com a imigração era que quando era menina tinha sido já uma migrante. Migrei de uma fazenda – o meu pai era um grande produtor de tabaco – para a capital, Alagoas. Com 9 anos soube o sentimento de ser estranho. Pode ter o nível socioeconómico que for, mas ninguém fica livre dessa sensação. E depois migrei também para São Paulo. Eu acho que fui uma das primeiras alunas nordestinas da minha faculdade. Era só gente branca, elite, filhos de europeus. Já tinha muitos nordestinos (homens), mas mulheres nenhuma. Tanto que eu era o exotismo em São Paulo.
A minha família paterna é toda ligada à vida comunitária, ao lado extremamente católico e de combate à pobreza. O meu pai, apesar de ter sido um dos maiores empresários do estado de Alagoas, foi um homem que nasceu pobre. A minha primeira ação comunitária foi com 8 anos, quando eu ainda morava na fazenda. Tinha mais de 500 trabalhadores e eu comecei a chamar as meninas, de 7 anos, lá para casa e dava aulas de alfabetização. Isso sempre veio-me seguindo. Depois com crianças marginais, às idas às favelas. Sempre numa relação direta com a desigualdade.
A militância feminista nasceu em Portugal. O feminismo não, já era feminista acho que desde que nasci. Eu nasci numa base em que pude ver com clareza a desigualdade social, isso estava na frente da nossa casa. O meu pai tinha esses valores éticos, nunca criou muros e que deixou os seus filhos interagirem. Montou uma escola pública e colocou os filhos para estudar junto das outras crianças.
Acha que ainda existe um fosso grande dentro do movimento feminista para com a comunidade imigrante e as minorias étnicas?
Acho que há. A raiz do feminismo aqui [Portugal] é branca e académica. Essa origem tem peso, tem força, e talvez ela seja a grande causa desse fosso. Mas eu não vejo, das minhas amigas dos vários grupos feministas, uma falta de sensibilidade, não vejo nelas falta de solidariedade. Mas vejo que falta proximidade. Não faz parte do seu dia-a-dia, não faz parte estar num bairro pobre, ter vivido, ou ter uma amiga – uma relação horizontal. Posso estar a ser ingénua mas eu não vejo a insistência em ser feminismo branco. Vejo, sim, uma origem branca.
E essas outras mulheres [imigrantes] precisam de arrancar um espaço. Mas no feminismo elas ainda encontram o melhor dos espaços. Nos coletivos feministas é ainda onde elas encontram o melhor dos espaços, porque nos outros há mesmo uma barreira nítida. E este lado vai ter que romper, como tem que ser com as opressões. Sou uma mulher misturada e não podemos ter uma posição infantil nem patriarcal. Não podemos esperar que venha a proteção do outro, nem entrar em choque com ele por ele ser branco. É pelas ideias dele.
São raríssimos os grupos de feminismo negro em Portugal.