Sofia Branco é jornalista e trabalha na Agência Lusa desde 2009. Antes disso passou pelo Público, jornal onde publicou uma das primeiras reportagens que abriu o debate político sobre a Mutilação Genital Feminina. Dar voz às mulheres é o mote que a acompanha.
Já é jornalista desde 1999, quando começou a trabalhar no Público. Como é que descobriu que o jornalismo era a profissão para si?
A resposta é básica. Eu queria mesmo era escrever, depois o jornalismo veio como opção lógica – até porque não achava que iria ser escritora, no sentido ficcional do termo. Queria escrever, mas sobre a realidade. E acho que tenho algumas características que acho fundamentais para um jornalista que é a curiosidade, o querer saber mais, a capacidade de ouvir as pessoas. E tinha também a hipótese de traduzir o mundo, fazendo uma espécie de filtro entre as pessoas e o que se passa de uma forma mais simples, mais curta para que as pessoas consigam entender realmente o que se passa numa realidade que é muito complexa. Então foi nessa base de querer escrever. Fiz um curso normal e só na Universidade optei por jornalismo.
Já é jornalista desde 1999, quando começou a trabalhar no Público. Como é que descobriu que o jornalismo era a profissão para si?
A resposta é básica. Eu queria mesmo era escrever, depois o jornalismo veio como opção lógica – até porque não achava que iria ser escritora, no sentido ficcional do termo. Queria escrever, mas sobre a realidade. E acho que tenho algumas características que acho fundamentais para um jornalista que é a curiosidade, o querer saber mais, a capacidade de ouvir as pessoas. E tinha também a hipótese de traduzir o mundo, fazendo uma espécie de filtro entre as pessoas e o que se passa de uma forma mais simples, mais curta para que as pessoas consigam entender realmente o que se passa numa realidade que é muito complexa. Então foi nessa base de querer escrever. Fiz um curso normal e só na Universidade optei por jornalismo.
Nessa altura considerava a luta pela igualdade de género?
Isso veio um pouco mais tarde. Eu tive uma educação nessa base, onde não fui propriamente tratada como uma “menina”. Eu e a minha irmã (7 anos mais nova) costumamos dizer a brincar que fomos educadas como “rapazes” no sentido em que a minha mãe sempre fez tudo em casa e não nos quis ensinar nada daquelas coisas de que as mães às vezes querem ensinar às filhas. Ela teve uma história em que realmente ela tinha de fazer isso tudo. Eram muitos irmãos e ela não tinha propriamente uma relação muito próxima com os pais, era assim daquelas famílias muito grandes onde as irmãs faziam tudo – Porque os rapazes não faziam absolutamente nada. E ela, para contrariar um bocado isso, educou-nos de outra maneira.
Fui intervindo (em relação à igualdade de género). Mas acho que assim de uma forma mais séria, racionalmente pensando, é só como jornalista que começo a manifestar interesse. Comecei a procurar falar com mulheres quando só se fala com homens, procurar diversificar fontes nesse sentido e isso tem de se fazer todos os dias, o que dá muito trabalho. Há muito pouca gente a fazer, por isso é que as pessoas se queixam que os jornalistas falam sempre com os mesmos. E ir convencê-las a elas ainda mais trabalho dá. Porque as mulheres quando são boas naquilo que fazem, são muito difíceis de convencer a falar sobre aquilo que fazem. Não estão habituadas a fazê-lo, desconfiam imenso, acham que podem fazê-lo menos bem e isso trará consequências e portanto não arriscam tanto. Já os homens não querem saber, falam de qualquer maneira, até do que não sabem. Isto é um bocado estereotipado e generalista. Mas é muito assim, o espaço público que é muito dominado por homens.
Na altura em que começou a trabalhar como jornalista podia fazer a diferença na luta pela igualdade de género?
Sim, completamente. Acho que qualquer pessoa pode fazer a diferença, porque a diferença começa a título individual, quer no jornalismo e na forma como se faz jornalismo quer nos temas que se trata. Eu acho que os jornalistas muitas vezes dizem “Eu tenho de fazer o que me pedem” e isso não é bem assim. O jornalismo até é das profissões que mais margem tem para isso. Tem-se sempre a opção de dizer “eu não vou falar com essa pessoa, conheço outra que é muito mais interessante e vou tentar falar com essa”. Tem-se sempre de convencer os editores mas acho que há sempre uma hipótese de fuga, no sentido de fazer outra coisa. Nós temos de facto esse poder de seleção, o poder de perguntar, o que é enorme. Temos de ter noção disso porque nos dá muita responsabilidade. A forma como se pergunta e o que se pergunta condicionam as respostas que vamos obter. Imaginando que vou falar com um ministro qualquer e o assunto não é esse (quanto à igualdade de género) mas eu posso fazer-lhe uma pergunta sobre isso ligando ao assunto em questão. Sempre que vem a propósito nunca deixo cair uma pergunta sobre igualdade de género. Só para dar um exemplo, fui acompanhando a eleição do Guterres para Secretário-geral da ONU e eu continuei sempre a dizer que havia uma grande parte da população que queria uma mulher naquele cargo. Isso deixou de ser dito porque de repente ele era o Português que estava lá – mas esse argumento não me é suficiente-. Portanto ele próprio foi-se comprometendo com a igualdade, escolhendo mulheres para os cargos logo a seguir ao dele, as pessoas de confiança dele são todas mulheres, de diferentes geografias. Ele foi respondendo a isso também. Mas é preciso fazer este “vigiar”.
Quando começou a trabalhar era, de alguma forma, fácil escrever sobre a igualdade de género ou ser feminista numa redação na altura em que começaste?
Não. Ainda agora não é muito, mas agora é mais politicamente incorreto não se deixar que isso aconteça. No início era muito difícil. O “lá vens tu com essa coisa das mulheres” era uma frase que eu ouvia muitas vezes mesmo. Acho que na maior parte dos casos ainda pensam mas já não dizem, porque já não é politicamente correto dizer.
Havia algum assunto completamente tabu?
Eu apanhei o primeiro referendo do aborto e o segundo. E essas alturas não foram fáceis nas redações – são situações que dividem muito, desde logo as mulheres e as feministas, que se posicionam de maneira muito diferente sobre o assunto. Os argumentos que usam, embora possam defender a interrupção voluntária da gravidez são muito diferentes entre grupos feministas, portanto aquilo dava questões de meia-noite. Mas havia obviamente um conservadorismo maior entre os homens da redação. Essa altura foi interessante, porque eles não colocavam a questão como direitos das mulheres, mas podiam colocar como saúde pública. A história do direito ao corpo era algo que eles não suportavam ouvir e isso dizia-se nas redações.
A primeira mulher a ter carteira de jornalista em Portugal, Manuela de Azevedo, morreu no dia 10 de Fevereiro. Ela teve alguma influência no seu trabalho?
Eu confesso que não a conheci. Conheci-a só agora numa homenagem que lhe fizemos em Agosto exatamente no dia em que ela fazia 105 anos e nós fizemos lá uma homenagem no sindicato em conjunto com o Museu Nacional de Imprensa onde esteve presente o presidente da república. Mas ela era uma figura! Tinha uma memória inacreditável aos 105 anos – Eu não vou estar assim daqui a 10 anos, nem agora estou assim! Ela era incrível, lembrava-se de coisas com um detalhe impressionante. Ficámos todos de boca aberta. Era uma pessoa que estava muito atualizada, não era apenas aquela coisa das memórias do passado, ela contava coisas com muita piada e usava aquilo para conselhos futuros. Ela disse lá uma frase que me marcou: “O jornalista diz o que pensa e pensa no que diz”. O que eu acho que é uma máxima ótima porque aí está a noção de responsabilidade mas de liberdade também. Porque não é de facto um cidadão como os outros, é um cidadão com direitos especiais e deveres especiais. Haviam muitos jornalistas que estavam lá por causa do Presidente da República mas que acabaram por ficar a ouvi-la também porque eram muito mais novos e porque são relatos de um outro tempo. Ela trabalhou até aos 80 anos. Não propriamente no ativo de redação já, mas trabalhou e além disso escreveu vários livros, escreveu poesia – era uma mulher incrível.
Acha que é muito possível mudar as coisas através do jornalismo?
Claro! Este papel é fundamental, principalmente se bloqueares a discussões para certos assuntos. Agora o foco é neste lado económico e haverá uma nova discussão sobre a introdução de cotas. Portanto, vem aí daquelas discussões fantásticas sobre mérito para as quais eu não tenho paciência nenhuma. Confirma-se, com as cotas da política, de que elas eram precisas. Não adoro cotas, não é uma ideia muito agradável, mas a cota é temporária. É até criar o hábito.
A Sofia foi eleita presidente do Sindicato de Jornalistas em 2014. O que é que isso te trouxe? Foi um passo importante para as mulheres jornalistas?
Trabalho! (risos) Acho que nenhum de nós tinha grande noção do que isto implicava. Hoje em dia já só se pode participar nisso com muito esforço pessoal, porque a lei concede muito poucos direitos a quem faz este tipo de trabalho. Nós só temos direito a um dia de dispensa por semana. Estamos constantemente a negociar com os sítios onde trabalhamos. Ainda bem que trabalho num sítio semipúblico. Nos privados é muito mais difícil de o fazer. Os jornalistas deixaram cair um bocadinho isso porque muitas vezes dá problemas.
Dá mesmo muito trabalho, mas é mesmo importante que se faça. Acho que já conseguimos alterar um bocadinho a imagem de um sindicato que era visto, pela nova geração, como muito desfasado da realidade. Continuo a achar que há um pensamento na nova geração que não percebe muito bem a importância dos sindicatos, da mesma maneira que não percebe bem os partidos políticos. Já não se reveem em estruturas tradicionais e um pouco mais antigas. E é importante mudar isso. Não tenho nenhuma receita milagrosa, mas há coisas que só os sindicatos é que podem fazer. Não quer dizer que os sindicatos não se devam adaptar, e nós tentamos fazer um bocado isso, como com os trabalhadores independentes que não existiam para o sindicato – até porque a precariedade é o grande assunto-. E depois conseguimos fazer o congresso com muito esforço.
Foi um passo importante para as mulheres jornalistas?
Foi, e foi uma opção deliberada também. Somos três fundadores – um homem e duas mulheres – e eu achava que quem tinha mais perfil até era ele. Mas eles acharam que não, que quem devia concorrer era uma mulher. É uma fase de rutura e ele já se achava muito velho nessa altura para concorrer. Nós somos, de facto, de outra geração e ele achou que eu conseguia melhor fazer a ponte com esta geração mais jovem.
Ao longo da sua carreira, a Sofia deparou-se com a questão da Mutilação Genital Feminina, fizeste reportagens e escreveste um livro sobre isso. Como é que te apercebeste que a excisão é, de facto, uma prática real?
Fui fazer uma conferência de imprensa normal convocada pela UMAR em conjunto com ativistas guineenses que estavam cá. A conferência tinha um visionamento de um filme que me chocou imenso porque nunca tinha visto nada do género. Conhecia o tema, mas assim muito por alto. Acabei por ficar lá a conversar com as ativistas guineenses e uma delas disse-me: “Não te admires que isso aconteça aqui”. Foi como se me tivessem atirado uma pedra à cabeça. Aquela coisa de “temos muita pena do que estamos a ver naquele filme, mas aquilo não é passado aqui, é lá longe”, dá-nos um distanciamento um bocado diferente do que nós pensamos. E isso começou aí, eu comecei a investigar. Concluí que havia tudo para que se passasse, mas eu não vi nada. Ninguém sabe propriamente de nenhum caso, só se ouve falar. Não é como em França ou como em Inglaterra que houve efetivamente casos – e que foram julgados.
A excisão tem a ver com uma tradição e essa tradição faz-se no solo da Guiné. O que acontece muito em Portugal é que eles vão de férias, isso acontece lá e voltam. O que não deixa de ser uma questão.
Isto foi uma investigação que para eu escrever o primeiro artigo levei dois meses e meio. E trabalhei esses dois meses e meio sem falar com ninguém – o segredo é mesmo a alma do negócio-. Quando terminei, Cheguei ao diretor do público e disse: “tens aqui esta investigação. Mas isto é para publicar do princípio ao fim como está, porque senão eu vou publicar noutro sítio”. E deu oito páginas de jornal, que era impensável hoje.
E sente que as pessoas se interessaram pela reportagem?
Claro que sim. Aquilo teve um efeito gigantesco. É nestas alturas que se percebe o que vale o jornalismo. Ninguém sabia do que é que se estava a falar, ficou tudo em choque – e o primeiro choque foi sobretudo político. Foi uma batalha que uniu todos os partidos, ficaram muito chocados com a possibilidade de isso poder acontecer aqui.
Se se pensar no tema da mutilação genital feminina, a atenção que tem é completamente desproporcional à quantidade de pessoas que afeta aqui. Isso levou logo a que universidades fossem estudar o assunto. Houve vários jornalistas que fizeram trabalhos depois de mim, desde logo em televisão. E o tabu foi diminuindo. Há inúmeras coisas que se foram fazendo nas comunidades. Essa foi a grande investigação que fiz, sem dúvida nenhuma.
Em 2015 lançou o livro “As Mulheres e a Guerra Colonial”, no qual ouviu a história de 49 mulheres. O que é que encontrou quando foi falar com elas? De que forma é que viveram a guerra?
Nós já vamos ouvindo (histórias) e a Guerra Colonial está sempre mais ou menos presente. E ouve-se só homens a falar sobre o assunto e, mais uma vez, há esta coisa aqui dentro de se ouvir as mulheres. A guerra é uma coisa que afeta toda a sociedade e nunca houve uma discussão sobre os efeitos secundários. É evidente que os atores da guerra foram os homens, tirando as enfermeiras paraquedistas que foram de facto aos cenários, mas livros sobres as enfermeiras havia. Sobre as outras, as atrizes secundárias. E eu quis contar mesmo pela voz delas e eu fui buscar gente muito diferente quer em termos de classes sociais, com instruções muito diferentes e que contam histórias muito diferentes. Mas a ideia era mesmo dar um retrato de um país daquela altura contado pelas mulheres e que, qualquer mulher que vá ler o livro se encontre ali. E isso tem acontecido. Também foi muito engraçado perceber que vários homens, ex-combatentes, ainda hoje me falam e dizem que foi importantíssimo. A Guerra Colonial afetou muita gente e ainda é muito tabu em Portugal. Passou-se uma espécie de esponja por cima daquilo, mas nunca se tratou psicologicamente estas pessoas. E isto é muito grave. Hoje tem-se efeitos na sociedade que eu acho que têm a ver com pessoas não diagnosticadas e não tratadas na sequência dos efeitos da Guerra Colonial. Foi de facto uma geração que viveu muita violência e que, muitas vezes, trouxe essa violência para o seio da família. A história de uma filha, no fim do livro, é propositada – aquela filha tem a minha idade -. Podia ter acontecido que aquele pai violento tivesse incutido na filha essa história de violência. E gera-se aqui um ciclo de violência.