Patrícia Vassallo e Silva: “Sem dúvida que foi a eletricidade que me tornou feminista”

Patricia Vassallo Silva

Patrícia Vassallo é fundadora do movimento “Por todas nós”. Eletricista de profissão, depois de contar a sua história para as Capazes, decidiu dar a cara e a voz por todas as mulheres, por todas nós.

 

 

Quando é que reparaste que querias ser eletricista?

Quando fui estudar audiovisuais e entrei no curso de produção, há dez anos atrás. Achei que queria ser técnica de iluminação para espetáculos e depois comecei a ver que o que eu queria ser era eletricista. Só que nunca ninguém te mostra que podes ser eletricista. Como mulher não pões essa hipótese. Mas depois, houve um momento em que larguei a produção e fui estudar à noite. Candidataram-se 50 pessoas e apenas 3 mulheres. Pensei que não me iam chamar, mas chamaram. Tirei o curso de eletricidade e comecei logo a trabalhar na área. Juntava-me a colegas que já eram eletricistas e ia com eles, porque ainda não tinha experiência.

 

Sentiste alguma discriminação na tua área?

Onde eu senti mais discriminação foi no mercado de trabalho. Tinha colegas a trabalhar, e até podiam ter a mesma experiência que eu, mas a mim não me chamavam.  Mas durante o curso nem o tratamento era igual. Era: “deixem a Patrícia falar, é a menina…”. E eu também não queria isso, queria igualdade. Há dias que eu sentia que não havia espaço para mim. Mas eu tinha de o conquistar.

Na minha oficina tinha um poster gigante sobre desigualdade, mas para o conseguir pôr tive de ir com outro tipo de conversa: “vocês estão-se sempre a meter comigo e só por causa disso esta é a minha resposta a todas as vossas piadinhas”. O que eu fazia era decorar a minha oficina com mensagens feministas e falava muito do assunto. Mas houve uma vez que senti que me prejudicou um bocado.

 

Porquê?

Porque fui fazer um trabalho a teste durante uma semana e apresentei-me como feminista, e depois não me chamaram. Acho que o feminismo está a assustar cada vez mais os homens. A nível profissional não foi bom para mim, mas de resto sensibilizei aqueles homens para alguma coisa, por isso para mim já valeu a pena ter lá estado e seguir o meu caminho por outro lado.

Quando estás a trabalhar na área da manutenção estás a trabalhar juntamente com as senhoras das limpezas, com os jardineiros…e eu tinha muitas conversas com elas e eles. Lembro-me de falar quando saiu a FemAfro: de repente vejo todas as mulheres negras a agarrar no telemóvel e a perguntar como é que se chamava o coletivo para fazer like no Facebook. Isso para mim já é uma luta. Mas também tive situações desagradáveis, tive de apresentar queixa de um superior. Mas acho que como mulher sou muito privilegiada comparada com outras mulheres e é a mim que me cabe. Há mulheres que não podem fazer nada, estão nos seus trabalhos e têm medo de os perder por se defenderem e eu tomei aquela posição: vou-me defender por mim e por elas. Mas o meu dia a dia é uma luta constante.

 

Já foste recusada em alguns trabalhos pelo facto de seres mulher?

Sem dúvida. No sítio onde eu estagiei tinha um colega que queria muito que eu ficasse. Mas depois soube por teceiros que ele dizia: “não quero aqui uma mulher que não posso dizer palavrões. Não quero aqui uma mulher que não posso falar à vontade”. Na realidade eu achei que se sentiam ameaçados, porque depois de uma mulher hão de vir duas, ou três ou quatro.

E pagam menos, eu era a que recebia menos. Quando comecei a trabalhar por conta própria ia com um colega. E muita gente pensava que eu era a mulher dele, que estava a fazer companhia e a ajudar. Mas é isso todos os dias. Não é fácil, enquanto existir o machismo.

 

Patricia Vassallo Silva

 

Achas que tem havido algum avanço na posição das mulheres relativamente ao trabalho e à representação pública e social?

Eu acho que tem havido avanços. Até podemos ver pela política, já há mais mulheres a dar a cara e há avanços também na sensibilização. Eu tenho 31 anos, e quando falo com as pessoas que têm vinte e poucos acho que são uma geração que foi muito protegida, porque já é privilegiada em vários temas e então não liga. Por exemplo, relativamente ao voto, eu lembro-me de amigas mais novas que não vão votar: eu digo-lhes que houve mulheres que morreram para elas poderem votar e elas respondem que não estiveram lá. Eu digo-lhes: “ Tudo bem, mas olha que alguém lutou para poderes andar de mão dada com a tua namorada em público. Tu por seres negra, claro que sofres discriminação, mas alguém também lutou para não sofreres tanta”. Acho que é responsabilidade nossa pelo menos manter o que as outras mulheres já conseguiram. Mas também devemos dar continuidade. E o Por todas nós ajuda-me a perceber isso. Temos gente que nos apoia e pertence a outros coletivos. Eu tenho a Ana Cansado, da UMAR, que me apoia e me está sempre a ensinar e aprendemos uma com a outra. Tenho a Felipa Mourato das Capazes, a Alexandra Santos do Queering Style…tenho algumas pessoas a quem me posso encostar para me ajudarem, o que é bom.

Para mim o mais difícil é gerir as pessoas, os diferentes tipos de pessoas. Porque há pessoas que vêm com outros objetivos e tu tens que estar ali numa luta. Eu sou aquela que quer receber toda a gente e acho que toda a gente vem por bem, mas na realidade não é assim. É muito complicado, pois eu não quero discriminar ninguém. O que eu costumo dizer às pessoas é que o Por todas nós não tem uma cara, são várias pessoas que se dedicam e trabalham para isto.

Por exemplo, uma questão que se fala muito é a questão dos partidos políticos. Eu ando a descobrir onde é que os partidos políticos se encaixam aqui ainda. Eles são muito importantes, sem dúvida alguma, pois depois são eles que na realizade conseguem terminar certas lutas, concretizar o que nós queremos ou passar a nossa mensagem.  Eu defendo muito que nós somos apartidárias e defendo que os coletivos, as pessos individuais e o feminismo têm que estar à frente e os partidos têm que nos apoiar. Por exemplo, na Marcha do Orgulho LGBT, os partidos estão lá mas respeitam as pessoas e vão atrás. Não pode ser de outra forma, porque senão a imagem vai ser dos partidos.  Os partidos têm de nos dar voz e mostrar a mulher que está em casa e que não foi trabalhar para cuidar o filho ou que não fez uma carreira. Têm que deixar essas pessoas falarem e aparecerem. Os media vão à bandeira do partido, não vão a essas mulheres. E essa é a minha luta, mais uma. É isso que eu tento com o Por todas nós.

 

Quando começaste a interessar-te pelo feminismo?

Tive uma cliente feminista que me contratou, estava eu ainda a acabar o curso. Conversámos muito sobre desigualdade entre homens e mulheres e não haver espaço para as mulheres. E eu até lhe disse que estava a ser um bocado exagerada,  mas depois comecei a ver as coisas à minha volta de outra forma. Essa pessoa, Felipa Mourato, insistiu em que tinha de escrever a minha história. E a partir do momento em que escrevi começou a sair a dor e a força que eu tinha de ter todos os dias. Senti que havia muita coisa para fazer e comecei a lutar por conseguir o meu espaço como mulher na minha área. Sem dúvida que foi a eletricidade que me tornou feminista.

 

Como é que surgiu a ideia de o Por todas nós?

Quando a REDE fez o Encontro de Jovens Feministas fez uma plataforma no Facebook para trocar mensagens. O Álvaro Ávila, que também está no Por todas nós, perguntou se íamos fazer alguma coisa para o Por todas elas e eu subscrevi, mas vimos que não tínhamos resposta. E ele disse que tinha de ser eu. Então criei o evento e já tinha vários coletivos a contactar assim que o evento saiu, para marcar uma reunião, para preparar as coisas…e aconteceu. É o que eu digo, o Por todas nós é mesmo rua.

 

Achas que o ativismo em Portugal tem relevância ou é preciso mais mobilização?

Eu comecei no ativismo quando fizemos a primeira concentração e senti muita dificuldade em saber para onde é que poderia ir ou a quem é que me poderia juntar para ser ativista. Apesar de ter conhecido a REDE, que foi muito importante para mim, não sabia para onde ir. Sentia que os grupos já estavam criados e acabei por fazer por mim, com o apoio de várias pessoas.

 

Tu conseguiste criar um movimento, um grupo onde ter o teu espaço. Achas que essa é uma possibilidade para quem quer começar a participar no ativismo feminista?

Eu acho que o movimento que criámos é um bom movimento para as pessoas começarem. Neste momento somos mais de 1.000 pessoas na página do Facebook e há muita informação. Hoje em dia já o considero uma base de dados feminista onde por exemplo, a REDE, a UMAR, a ILGA partilham as suas atividades. Imensas associações partilham.

O melhor deste movimento, do Por todas nós, é a diversidade. Há pessoas de partidos políticos, há pessoas que não são de partidos políticos e conseguem conhecer-se umas às outras e perceber o seu caminho. Mas, independentemente do grupo ao qual pertencemos, nós temos que estar unidas e unidos. E isso provou-se quando fizemos a primeira concentração. Ainda não era o Por todas nós, era o Por todas elas. De repente temos a Praça da Figueira cheia, nunca pensei. E várias pessoas a contactar e a quererem participar.

 

Patricia Vassallo Silva

 

E o que pretende o Por todas nós no futuro? Vai ser um movimento autónomo ou irá ser integrado num outro já existente?

O Por todas nós tem a dificuldade de não ser uma associação. Na realidade somos uma marca, existe um logotipo, está registado. Por isso é que nós preferimos dizer que somos um movimento, em vez de dizer que somos um coletivo. Estamos a ganhar estrutura.

Há uns tempos acreditava que isto é para toda a gente, mas não é. Infelizmente há pessoas que não têm os mesmos princípios que nós e se aproximam do grupo. Portanto acho que estamos numa fase em que o ideal é juntarmo-nos a outras forças. Estamos, por exemplo, na Rede 8 de Março, juntamente com outros coletivos. Não é que o Por todas nós não tenha uma iniciativa própria, mas para já estamos a tentar seguir “a união faz a força”. Mas não deixamos de ser o Por todas nós. Acho muito importante, quando estamos na rua, mostrar que há vários coletivos, grupos e pessoas.  O Por todas nós também é um espaço para quem não quiser pertenecer a nenhum coletivo. Há pessoas que não querem estar associadas a um grupo.

Na realidade nós só existimos desde junho, mas crescemos muito rápido. E espero que continue a crescer, essa é a nossa força. Mas realmente, assim para já, nós não queremos nada para nós ou para mim Patrícia. Queremos é conseguir fazer a nossa luta, juntarmo-nos a outros grupos, a mais pessoas, chamar pessoas. Para mim o mais importante é sensibilizar as pessoas para o feminismo, para a importância do feminismo. E o Por todas nós consegue isso. Eu acho que o Por todas nós é na realidade um movimento de sensibilização feminista e que dá espaço e voz às mulheres e aos homens.

 

Por todas nós é um movimento muito abrangente. A diversidade existente é difícil de gerir?

É muito difícil. Há gente que já saiu do grupo. Eu e as pessoas que estão no núcleo duro do movimento somos a favor da diversidade mas há pessoas que não lidam bem com isso. Eu já falei com pessoas que não se sentiam representadas e disse-lhes para mostrar no grupo como é que nós as poderíamos representar. Eu dou muito o exemplo da minha profissão e que eu acredito que a profissão não tem género e me sinto muito sozinha neste tema. Mas quero sensibilizar as pessoas, e sou a pessoa que mais publica esses artigos e esses vídeos. Eu tenho crescido imenso como pessoa com o grupo e espero que outras pessoas também. Mas a diversidade é difícil de gerir, muito.

 

E as pessoas coolaboram ativamente no grupo ou há muitas desistências?

Há, por isso é que eu tento ver as coisas não ligadas ao grupo em si, mas ao projeto. É dar a liberdade às pessoas de participarem da forma que podem, que querem e que conseguem.

 

Achas que as redes sociais ajudam ao crescimento deste tipo de coletivos e movimentos?

Imenso. O Por todas nós vem de uma rede social, senão nem existia. É super importante. No Por todas nós as associações, os coletivos e mesmo as pessoas individuais vão lá partilhar as coisas e eu fico muito feliz com isso.

 

Achas que se tem que haver um espaço para os homens no feminismo?

Acho que tem que haver um espaço dos homens no feminismo, mas eles têm de perceber melhor o que é que é o espaço dos homens no feminismo. Por exemplo, na Marcha contra a Violência Contra as Mulheres, uma coisa que eu senti foi que a voz deles se ouvia por cima da nossa. E isso não pode ser. É muito importante estarem lá a apoiar-nos, mas o apoio deles não era gritar mais alto, era deixar-nos gritar. Por acaso, no Por todas nós, uma coisa de que eu me orgulho muito é termos homens no grupo e eles respeitarem muito o nosso espaço. Eles próprios já sugeriram entre eles terem reuniões à parte. Para discutirem entre eles o que é que podem fazer e como é que podem fazer. Porque, como o Álvaro Ávila e o Bruno Góis dizem, ainda não estamos numa fase que podemos estar lado a lado. Primeiro ainda temos que dar espaço às mulheres, elas virem e sentirem-se à vontade, criarem a sua luta, as suas raízes e depois aí é que eles entram. Porque senão o que vai acontecer é que eles vêm mas nós vamos a continuar a sentir-nos como nos sentimos, abafadas por eles. Vão haver mulheres que não vêm porque não se vão sentir à vontade, vão se sentir oprimidas só pela presença de um homem. Eu acho que o apoio dos homens é super importante. Agora, a maior parte deles precisa saber onde é o seu lugar. É só isso. E não é menos ou mais que o nosso lugar, é o lugar deles.

 

O que dirias a uma jovem mulher que está a descobrir o feminismo e o ativismo feminista?

Há mulheres que dizem que são feministas mas não ativistas, a sentirem-se menos que outras. Elas são ativistas da sua forma, ao seu ritmo. O que eu digo sempre a estas mulheres é: “ tu vens ao nosso lado quando tu quiseres; o teu feminismo é no teu dia a dia e tu, dia a dia, vais descobrir o que é que tu queres fazer mais”.

O feminismo é um vírus bom, porque é um virus que não sai e que cresce. Só temos de dizer: “segue o teu caminho, continua a defender o que tu achas” e elas vão-se tornar ativistas porque já vão dar mais atenção às coisas. Aconteceu comigo. Temos de abrir os olhos a outras mulheres mas sem exigências, porque somos todas diferentes. É essa a mensagem que eu tento passar: “Há lugar para todas. Também na eletricidade”.

 

Entrevista: Marta López | Fotos: Rebeka Dávid

 

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